Na postagem de hoje continuamos a desenvolver a temática do modo de vida taoista. É comum na tradição taoista o elogio ao estado natural ou a valorização da natureza, seja nas suas expressões artísticas, seja nos textos clássicos. Mas o que significa isso?
Como qualquer pessoa com alguma sensibilidade antropológica já deve ter se dado conta, não é possível saber o que é a natureza “em si”, mas essa compreensão é sempre mediada por artefatos culturais. Assim, em vez de opor natureza a cultura ou sociedade, prefiro pensar em termos de naturezas-culturas, como propõe Bruno Latour.
No caso, como os antigos chineses perceberam o que, em línguas ocidentais, traduziríamos por natureza, percepção essa que está presente na tradição taoista? Ao menos na linhagem que pratico, a noção de natureza está diretamente relacionada ao que os Estudos Chineses chamam de “cosmologia Huang-Lao”, cujo fundamento é a combinação da filosofia yin/yang à teoria dos Cinco Movimentos (五行). A própria noção de Tao (道), ainda que impossível de descrever plenamente – pois tem a qualidade de “maravilha” (妙) e “mistério” (玄) conforme é dito no primeiro poema do Daodejing (道德經) – traz consigo uma sensação de movimento ordenado, cujos princípios podem ser apreendidos por observação direta, por contemplação, pelo cultivo de um modo corporificado de consciência e pelo estudo dos clássicos. Movimento circular, no microcosmo, e cíclico, no macrocosmo. A presença de padrões espiralados em inúmeras formas naturais, sejam os movimentos do ar ou da água, ou a própria estrutura dos seres vivos e seus padrões de movimento corporal. Movimento contínuo. Afinal, vida é, por definição, movimento, ainda que, de tão sutil, possa ser imperceptível a olho nu.
Então, em primeiro lugar, poderíamos dizer que harmonia com a natureza é desenvolver uma sensibilidade sutil a estes padrões. Isto é, sintonizar-se com o movimento do qì no universo, como o caso de 1 praticante experiente de qigong que desperta naturalmente de manhã cedo, sentido a ascensão do yang, quando o sol nasce e sua luz e calor banham a terra, nutrindo as plantas e despertando os animais de hábitos diurnos. Além da sensibilidade aos horários do dia, poderíamos incluir também às fases da lua, às estações do ano, às condições climáticas, etc. No princípio, é uma sensibilidade fabricada: tentamos prestar atenção deliberadamente a esses fenômenos e inclusive ajustar nossos treinamentos e demais atividades a eles. Mas com o tempo, torna-se uma percepção intuitiva aliada a uma resposta espontânea de autorregulação em relação a essas circunstâncias.
Mas um outro sentido do “natural” refere-se a um estado que combina plena atenção e relaxamento, que proporciona um senso de ação sem esforço, acompanhada da sutil alegria de abrir mão de toda tensão desnecessária. Paradoxalmente essa condição de espontaneidade e naturalidade, que nada tem a ver com a ação impulsiva movida por um condicionamento, é um tipo particular de liberdade que resulta de um longo período de treinamento, no qual nos dedicamos a aprender a relaxar e fluir.