Princípios do Qigong

Se preferir, assista ao vídeo desta postagem no nosso canal no Youtube.

Introdução

Neste artigo, compartilho os conteúdos da masterclass online “Princípios do Qigong: o segredo da prátida bem sucedida”. Nossa conversa hoje é sobre princípios gerais, não sobre as instruções para praticar uma sequência específica. Primeiro, explicarei o que é Qigong. Em seguida, desnvolverei os seguintes aspectos:

  • Como e de quem aprender?
  • Quando, o que e com que frequência praticar?
  • Onde praticar?
  • Postura, alinhamento e ritmo corporal
  • A atitude mental

Depois, falarei dos benefícios do Qigong. E, no final, contarei um pouco da minha história, para você entender como aprendi o que compartilho aqui.

Que é Qigong?

Qìgōng (pronuncie Tchi kung em português) é um termo moderno geral para toda prática que trabalha, treina ou cultiva (gōng 功) o Qi. Geralmente traduzido como energia, Qì (氣 ou 炁) é nossa potência de vida e movimento. Existem diversas escolas, de origem taoista, budista, confucionista, médica e marcial, etc. Os exercícios mais antigos provém da alquimia interna taoista e da medicina tradicional e já eram praticados antes da era cristã, como podemos constatar pelos achados arqueológicos de Mawangdui, datados da dinastia Han (200 a.C.-220d.C.), e de Guodian, datados do período dos Reinos Combatentes (475-221 a.C). Há referências a eles também em textos importantes como o Clássico do Caminho e da Virtude (Dàodéjīng) e no  Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng). Respectivamente, o primeiro é o mais famoso texto filosófico taoista e o segundo o mais famoso texto antigo de medicina chinesa.

Os dois pictogramas para Qì: à esquerda o fogo original do Céu representa o Qi pré-natal. À direita, a combinação de vapor e arroz represetna o Qi pós-natal, que provém da respiração e dos alimentos.

Como e de quem aprender?

O primeiro princípio do Qigong é saber de quem aprender. Uma pessoa é confiável porque está qualificada para ensinar. Ela recebeu a transmissão de uma linhagem autêntica. E praticou e vivenciou os benefícios dos métodos que ensina. Além disso, conhece os princípios do Qigong. Sabe explicá-los e tem paciência, e tempo, para ensinar e tirar dúvidas. Aprendemos por imitação, repetição, treinando junto, escutando as instruções e corrigindo os erros conforme as orientações que recebemos.

O professor ou professora ideal, no nível mais elevado, é um mestre ou mestra que realizou o Tao, alguém de vasto conhecimento, compaixão e sabedoria. Estas pessoas são muito raras. Então, de modo mais realista, basta um instrutor ou instrutora experiente, com permissão de seu mestre ou mestra para ensinar.

Atenção! O conhecimento nunca está completo nos livros. Sempre há detalhes fundamentais que só aprendemos diretamente com uma pessoa mais experiente.

No Qigong, além das posturas e movimentos visíveis, há também a intenção. Com ela, direcionamos a circulação de Qi. Assim, também precisamos de explicações sobre o aspecto invisível da prática.

Quando e com que frequência praticar?

O segundo princípio do Qigong diz respeito ao momento da prática. Preste atenção nos horários do dia e nas estações do ano para escolher o que praticar. Por exemplo, exercícios respiratórios, só da madrugada até 11:00 da manhã. Evite exercícios pesados no meio do dia. Não pratique sob as árvores à noite. Evite praticar durante tempestades. E leve em consideração seu estado de saúde e o momento do seu ciclo de vida. Por exemplo, alguns treinamentos são desaconselhados durante o período menstrual e a gestação, outros são mais importantes quando estamos convalescentes, ou quando queremos prevenir determinadas doenças, e assim por diante.

Treine regularmente, de preferência todos os dias. Pois não há progresso sem regularidade. Após 49 a 100 dias de treinamento contínuo, você começa a perceber diferenças na sua vitalidade.

Se você conhece vários tipos de treinamentos, então pode organizar a prática de duas maneiras, dependendo do horário.

De manhã, siga esta sequência:

  • meditação,
  • respiração de limpeza,
  • qigong estático,
  • qigong de movimento
  • e arte marcial.

À noite, inverta a sequência, retirando a respiração.

Onde praticar?

O terceiro princípio do Qigong diz respeito ao local da prática. Há duas opções básicas: ao ar livre ou dentro de casa.

Se você quer treinar em contato com a natureza, evite expor-se a condições climáticas extremas: calor, frio, umidade, vento e secura excessivos. Por exemplo, não se exponha ao sol forte, à chuva, ao vento. E evite pisar descalço num terreno frio ou molhado.

Além disso, escolha um ambiente natural com Qi abundante e de boa qualidade: ar puro, água límpida, árvores, montanhas, clima ameno. Se isto não é possível, onde você mora, recomenda-se viajar periodicamente para ter contato com a natureza. Os antigos taoistas viajavam para florestas e montanhas remotas para obter o ambiente com o fengshui mais propício para treinar.

Quando você pratica na cidade, ao ar livre, é melhor praticar em parques e jardins, mas ao abrigo do sol forte, do vento e da chuva. Evite ambientes movimentados, barulhentos e poluídos.

Em casa, pratique em um cômodo limpo, iluminado e com ventilação, mas sem se expor diretamente a correntes de ar.

Mas qualquer que seja o ambiente, é importante ter suficiente conforto térmico, acústico, luminoso e segurança, para que possamos relaxar durante a prática, temporariamente sem desconfortos, preocupações e interrupções.

O Corpo

O quarto princípio do Qigong diz respeito ao corpo: sua postura, alinhamento e ritmo.

A prática do Qigong de longa vida visa promover a circulação do Qi correto no nosso corpo, a eliminação do Qi patogênico e a captação do Qi límpido da natureza. E para isso, é importante manter o corpo alinhado e relaxado. Pois o alinhamento favorece a ligação com o Qi do Céu e da Terra. Observe, também, as Seis harmonias entre as articulações: ombros-quadris, cotovelos-joelhos, pulsos-tornozelos. Por sua vez, o relaxamento favorece a livre circulação de Qi e Sangue no corpo. Mas, relaxar não é desabar, a postura continua estável e alinhada.

No Qigong taoista de longevidade, o tônus muscular vem da postura e dos movimentos, não contraímos os músculos com força, deliberadamente. Por isto, é importante usar apenas a força necessária.

Além disso, praticamos com atenção à nossa consciência corporal. Perceba  a distribuição do peso do corpo: nos dois pés, predominante em um dos pés ou apenas em um só pé. Faça alongamentos suaves, respeitando os limites do corpo. A repetição suave e consciente desenvolve e mantém a flexibilidade.

Já a respiração é natural, pelo nariz, movendo a barriga como um bebê. Exceto em exercícios respiratórios com instruções específicas. Nào confunda Qigong com um sinônimo de exercício respiratório.

O ritmo dos movimentos é lento, contínuo e fluido. Por que mover-se “em câmera lenta”? Por vários motivos! Porque isso favorece a circulação equilibrada de Qi e Sangue. Remove bloqueios. Previne lesões (causadas por movimentos bruscos combinados à má postura). Acalma a mente e desenvolve a consciência corporal.

E, por fim, o Qi se manifesta como sensação corporal (calor, formigamento, eletricidade, frio, magnetismo, pulsação, etc). O conhecimento do Qigong não é apenas conceitual. É baseado na experiência e sentido no corpo, não um um mero conceito ou crença..

A mente

O quinto princípio do Qigong diz respeito ao papel da mente. Um dito clássico da medicina chinesa afirma que a Intenção guia o Qi e o Qi guia o Sangue. Portanto, Qigong não é apenas uma ginástica, o efeito depende de nossa consciência presente. Os movimentos são acompanhados por um direcionamento da consciência.

Qigong se pratica com atenção, não é um exercício mecânico, pois precisa de consciência para ser totalmente eficaz. Por isto mesmo, além de prática para saúde é também meditação em movimento.

Antes de começar, fazemos uma preparação interior, tomando consciência do eixo e do centro do corpo. Após concluir, fazemos uma pausa, levando a atenção para o centro do corpo.

Repare que uma sessão de prática reproduz a antiga cosmologia chinesa: partimos do Wújí (無極), para o Tàijí (太極), para as “dez mil coisas”; ao final retornamos ao Tàijí e finalmente ao Wújí. Ou seja, do Vazio, para a unidade dinâmica dos opostos, que se manifesta de mil formas diferentes, e de volta ao Vazio. Logo, esta sequência implica diferentes formas de posicionar nossa consciência durante a prática, alternando entre ficar focado/a e ficar vazio/a.

Outra filosofia do exercício

O Qigong taoista tem outra filosofia do exercício. A prática correta é relaxante e revigorante, gera calma e bem estar. Podemos suar levemente, o coração pode bater um pouco mais forte. Mas não precisamos sentir dor, exaustão, nem ficar ofegantes após os exercícios.

Aqui, a instrução chave é: “sem forçar”. Respeitamos nossos limites corporais e psicológicos. À medida que praticamos com paciência e nos familiarizamos com os exercícios, o corpo vai ficar mais forte, vigoroso e flexível, a mente vai ficar mais calma. Com o tempo, aprendemos a diminuir a tensão física e mental habitual, relaxando o esforço desnecessário.

Praticando assim, podemos vivenciar experiências de fluxo: uma sensação de unidade entre corpo, consciência e ação sem esforço.

Benefícios do Qigong

Ao entrevistar dezenas de praticantes no meu trabalho de campo, foram frequentes os relatos de melhoras nas condições de saúde, inclusive em doenças crônicas graves (Bizerril, 2007).

Quando praticamos regularmente, percebemos um aumento de vitalidade, melhora na digestão, na respiração, no ciclo menstrual das mulheres, no equilíbrio, flexibilidade, coordenação motora. Constatei isso também por experiência própria.

Um efeito ainda mais sutil é sobre nossos estados de humor e paisagem mental. Com o tempo, a mente fica mais calma. As emoções ficam mais estáveis e equilibradas. Até as dificuldades e problemas da vida abalam menos.

Devido ao coração mais sereno e ao corpo mais relaxado, reagimos de forma mais adequada e proporcional às situações desafiadoras. Pois aprendemos a usar apenas a força necessária, com mais sensibilidade ao contexto e à ação necessária.

Qigong e filosofia taoista

A  prática bem orientada do Qigong tem também profundas consequências existenciais. E pode produzir mudanças de estilo e de ritmo de vida. Depois de praticar por algum tempo, começamos a sentir que a pressa, a agitação e o estresse habitual não são benéficos nem necessários.

E tem também consequências filosóficas. Pois a experiência corporal permite compreender conceitos filosóficos difíceis, como Caminho Natural (Dào 道), Taichi (Tàijí 太極), não ação (wúwéi 無為), vacuidade (wú 無, xū 虛), Qi (氣)… Isto acontece por meio do processo que a antropologia da corporeidade chama de “corporificação” (embodiment).

É assim porque os conceitos da filosofia taoista são indicadores de experiências. A naturalidade, a integração dos contrários, a fluidez, a ação sem esforço ou identidade, podem ser vivenciadas por meio de prática corporal regular.

Como tudo começou?

Mestre Liu Pailin (劉百齡 Liú Bǎilíng) (Tianjin,1907- São Paulo, 2000), pioneiro da divulgação do Taichi, do taoismo e da medicina chinesa no Brasil

Em 1998, parti para São Paulo, em trabalho de campo antropológico para minha tese de doutorado. Lá conheci o mestre Liu Pai Lin, em seus últimos anos de vida. Utilizando um metodologia participativa, aprendi e pratiquei intensivamente o Taichi Pai Lin, entrevistei e convivi com praticantes de todos os níveis, observei o cotidiano e anotei, como faz um etnógrafo em pesquisa de campo.

O encontro com o mestre foi tão impactante que, ao voltar para casa, continuei a praticar e nunca mais parei. Havia algo diferente naquele senhor de pouco mais de 90 anos. Uma alegria de viver, uma energia que parecia inesgotável, a velhice sem sinais de decrepitude, os olhos brilhantes de uma inteligência viva, uma grande flexibilidade de corpo e mente. E, pela primeira vez na vida, aprendi a importância de relaxar e fluir, em vez de usar a força de vontade e lutar.

Quem sou eu?

Defendi minha tese de doutorado, O Retorno à Raiz: uma linhagem taoista no Brasil, em janeiro de 2001. No período de 2001 a 2018, publiquei artigos, capítulos de livro e o livro da tese, sobre a tradição taoista no Brasil. Iniciei carreira como professor universitário e pesquidador, função que exerci até julho de 2017.

Paralelamente a isso, passei anos praticando diariamente, seguindo a orientação dos mestres, e sob supervisão de professores/as. Aprofundei minha compreensão do Qigong, Taijiquan, Espada Taiji, Baguazhang, Daoyin, meditação taoista, medicina chinesa e filosofia taoista. Em 2016, tornei-me instrutor certificado de práticas taoistas. Em 2015, viajei a Taiwan pela primeira vez e tornei-me discípulo da linhagem taoista Kunlun Xianzong. Fiz outras viagens para visitar meu professor de meditação taoista desta linhagem e continuar aprofundando a minha prática. Tornei-me também acupunturista. Após 17 anos de carreira acadêmica e cerca de 20 anos de estudos acadêmicos e prática pessoal da tradição taoista, decidi me dedicar a ensinar estes conhecimentos tradicionais chineses.

O resultado disso é o projeto Qigong Taoista, presente nas redes sociais e neste sítio web.

O Elogio à inutilidade

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Esta é mais uma postagem sobre taoismo e mundo contemporâno. A pergunta que desejo responder é: como a crítica anti-utilitarista do taoismo pode ser relevante nos dias de hoje? Em outras palavras, qual o benefício de ser inútil? O elogio à inutilidade é uma conversa sobre o anti-utilitatismo taoista e sua relevância hoje. Revisitaremos, como imagem chave, a “árvore inútil”de Zhuangzi.

Se preferir assistir em vídeo, está aqui. 😉

Por que é preciso saber ser inútil?

Em tempos de ideologia do empreendedorismo, de obsessão pela atividade incessante, pela produtividade, pelo excesso de informação, é preciso fazer um elogio à inutilidade. Em primeiro lugar, o ensinamento do Tao e as recomendações básicas da medicina chinesa para a saúde apontam a necessidade de equilíbrio entre atividade e repouso, ou entre movimento e quietude.

O excesso de estímulos e demandas

Um dos grandes males contemporâneos se traduz como inquietude em todos os níveis. Tanto o trabalho quanto o lazer se caracterizam hoje pela exigência de uma atenção dispersa multitarefa. A conectividade incessante das tecnologias portáteis de comunicação e informação agravaram essa situação. Por causa dela, estamos diante de uma demanda constante de interação. Se não desligarmos o celular, podemos estar 24 horas à disposição. Não apenas de nosso trabalho e relações, mas também das notificações das mídias sociais.

Além disso, estas mídias sociais nos bombardeiam com um excesso de estímulos sensoriais e de informação irrelevante. É preciso saber desconectar-se, desabilitar as notificações, para ter alguns momentos diários de paz.

Seus algoritmos mapeiam nossas preferências, em busca da fórmula para nos engajar pelo maior tempo possível. Há uma lógica viciante na forma pela qual as postagens aparecem numa timeline, ou os aplicativos nos fazem sugestões de novos conteúdos, sem falar dos anúncios publicitários, plantando falsas necessidades, a solução para problemas imaginários.

Por isso, é preciso fazer um elogio à inutilidade. Precisamos saber como não sermos arrastados por esta avalanche de estímulos e informação. Recuperar nosso próprio ritmo natural é um primeiro benefício de ser inútil.

O convite à auto-exploração

O empreendedorismo promove uma ilusão: basta esforçar-se para garantir prosperidade e sucesso. É como se não houvesse desigualdades nas oportunidades, nem exclusão estrutural. Ao omitir este detalhe, convida a uma corrida incessante, como uma “rodinha de hamster”.

Além da exploração que toda pessoa que trabalha é submetida pelo sistema capitalista, há agora um novo tipo de exploração, aquela praticada por nós mesmos, por ambição e suposto investimento no próprio sucesso e felicidade. O tempo antes dedicado ao descanso e ao lazer se tornou um tempo disponível para aceitar mais trabalho, ou para investir nos estudos em busca de melhor qualificação profissional. No passado, a melhor formação do trabalhador era responsibilidade do patrão, mas agora passou a ser uma responsabilidade individual, para se manter “competitivo no mercado”.

O resultado de tudo isso é a síndrome de Burnout, a depressão e a ansiedade. Porque não sabemos apreciar o descanso, o lazer, o ócio como parte necessária da vida, acabamos nos esgotando. Em alguns casos, inclusive, pode ocorrer uma morte súbita precoce, por pura exaustão. Como uma chama que se extingue porque queimou todo o combustível rápido demais.

No Daodejing, texto fundante da filosofia taoista, Laozi aconselha:

知足不辱,
zhī zú bù rǔ, 
知止不殆
zhī zhǐ bù dài, 
可以長久
kě yǐ cháng jiǔ.
“Sabendo se contentar, não se humilha,
Sabendo parar, não se arrisca,
Pode por meio disso durar muito tempo”
(Daodejing, poema 44).

Mestre Liu Pailin, pioneiro do taoismo, do Taichi e da medicina chinesa no Brasil, aconselhava: “pessoas de meia-idade, andem devagar [a caminho do cemitério]”. Um segundo benefício de ser inútil é saber se preservar. Não desperdiçar nem encurtar a própria vida por causa de ambições excessivas é mais um motivo para fazer um elogio à inutilidade.

A árvore inútil de Zhuangzi

“A árvore inútil” é um importante tema nos escritos de Zhuangzi, o segundo personagem fundante da filosofia taoista, depois de Laozi. Há várias versões desta história. Vou mencionar apenas algumas edições em português, caso leitores e leitoras queiram estudá-la de perto, o que recomendo.

Na minha tese de doutorado, publicada como O Retorno à Raiz (Bizerril, 2007), cito as versões traduzidas por Thomas Merton e por Burton Watson. Publicada mais recentemente, uma edição interessante é a de Giorgio Sinedino. No capítulo IV, intitulado “Autoconfiança”, vemos duas versões desta história. Como é uma anedota importante para fazer um elogio à inutilidade, vou comentar as duas aqui. A primeira se chama “O espírito do Carvalho”(Sinedino, 2022, p. 212-215). E a segunda, “O fedor que salva”(Sinedino, 2022, p. 218-219).

“O espírito do carvalho”

Nesta primeira história, que reconto aqui com minhas palavras, o mestre artesão Shi Bo viajava com seus aprendizes, quando avistou um carvalho colossal, consagrado na região como Altar da Terra (社). Alto como uma montanha, com um tronco de duzentas braças de largura, caberiam milhares de bois na sua sombra.

Depois de uns instantes maravilhado, Shi Bo se retirou imediatamente, sem olhar novamente. Mas um dos aprendizes mais jovens ficou para trás, contemplando a árvore. Lembrem que o olhar de um carpinteiro para uma árvore é utilitário. Pois ele enxerga que objetos poderia fazer com a madeira, em qual quantidade e de que qualidade.

O jovem aprendiz, que ficara para trás, correu para reencontrar o mestre. E perguntou, surpreso, porque ele ficou indiferente diante daquela maravilha. O mestre, impaciente, respondeu: a árvore era inútil! Pois sua madeira não servia para construir barcos, que afundariam; nem caixões, que apodrederiam; nem utensílios, que rachariam; nem portas, que ficariam manchadas pela seiva; nem pilares, que seriam comidos pelos cupins. Enfim, uma árvore completamente inútil.

A lição a aprender

Após a longa jornada de volta ao lar, Shi Bo adormeceu, exausto. Então sonhou com o espírito do carvalho gigante, que lhe contou o destino das árvores úteis. As árvores frutíferas são violentadas e humilhadas quando seus frutos são colhidos, tendo seus galhos torcidos e quebrados. Por isso não podem viver a duração dos anos concedidos pelo Céu. Generosamente, o carvalho explicou a Shi Bo sobre o benefício de ser inútil: exatamente porque ninguém o cortou nem arrancou seus frutos, ele pôde tornar-se tão grande e frondoso, desenvolver-se plenamente e viver até o fim da duração natural de sua vida.

Árvores e humanos existem entre o Céu e a Terra, mas os humanos tratam as árvores como coisas, em vez de seres. E como também tratam outros humanos como coisas, daí a vantagem para as pessoas de saberem ser inúteis, escondendo suas habilidades de caça-talentos, gestores e políticos, para não serem exploradas.

Essa imagem faz mais sentido se lembrarmos que, na China antiga, os governantes saíam em busca de pessoas sábias e talentosas para empregar como ministros e conselheiros. Caso aceitassem o encargo, tais pessoas se veriam enredadas nas intrigas da corte e exaustas com inúmeras tarefas de grande responsabilidade. Por causa disso, muitos mestres taoistas esconderam sua sabedoria, fingindo ser pessoas simplórias e até loucas, para evitar este destino e ter a liberdade necessária para continuar cultivando o Tao.

“O fedor que salva”

Nesta segunda história, também narrada com minhas próprias palavras, o imortal Guo Ziqi encontra uma árvore assombrosamente gigante, tão grande que poderia esconder mil carros de guerra em sua sombra.

Examinando-a com mais cuidado, reparou que os galhos eram finos e retorcidos. Assim, não serviriam para fazer vigas. Suas raízes grossas e arrendondadas estavam rachadas no meio. Por isso, não serviam para fazer caixões. Suas folhas, em vez de ter propriedades medicinais, feriam a língua de quem as provar. Por fim, em vez de aromáticos, os ramos eram tão fedorentos que ele desmaiou ao cheirá-los e só acordou vários dias depois.

Em casa e ainda de cama, Guo Ziqi elogiou a árvore que conseguira crescer até tocar o Céu, graças a sua inutilidade.

A lição a aprender

Aqui também se trata do benefício de ser inútil. Esta árvore gigantesca pôde alcançar um tamanho colossal porque seus galhos, raízes e folhas e ramos não serviam para absolutamente nada, de modo semelhante ao carvalho da história anterior.

Assim, quem deseja cultivar o Tao, que também não serve para nada, exceto para o mais importante que é saber bem viver, precisa se desprender do utilitarismo, pois ele nos rouba o mais importante na vida, substituindo a serenidade e o contentamento por ambições desnecessárias e preocupações evitáveis.

Claro que tudo isso não se refere a nós desconsiderarmos as nossas responsabilidades sociais básicas, de garantir nosso sustento, de cuidar da nossa vida, da nossa casa e das pessoas que dependem de nós. Mas, sim, é um antídoto para esse excesso, na vida contemporânea, de ambição, de vontade de fama, de sucesso e de riqueza, de ter dinheiro para desfrutar prazeres. E, neste processo, nós arruinamos nossa sanidade mental, a saúde do nosso corpo e a tranquilidade do nosso coração.

Aprender práticas taoistas na era do imediatismo

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

As práticas taoistas são a expressão de um modo de viver a vida. São métodos não só para atingir finalidades pragmáticas, como curar doenças, preservar a boa saúde, atingir a longevidade. Mas são também meios para compreender pela experiência conceitos filosóficos complexos: Tao, não ação, espontaneidade, Vazio. E, porque não, também para realizar o Tao, o estado natural. Mas como fazer para aprender práticas taoistas na era do imediatismo? Como tornar relevantes no mundo de hoje estes métodos milenares? Esta é mais uma postagem da série taoismo e mundo contemporâneo.

Assista aqui a versão em vídeo desta postagem.

Parece que, para muitas pessoas, a vida cotidiana normal precisa ser vivida em velocidade crescente. O filósofo Byul Chung-Han descreveu a sociedade contemporânea como uma Sociedade do Cansaço. Nela, o sujeito da performance explora-se a si próprio voluntariamente, pois acredita que deve se mostrar constantemente produtivo, bem sucedido e feliz, mesmo às custas da sua saúde e sanidade.

Como instrutor de práticas taoistas, tenho encontrado uma situação curiosa. Pessoas têm me perguntado sobre cursos de formação para instrutor de Qigong. Em si, esta é uma boa notícia. Mas o curioso é querer ser instrutor sem antes ser aprendiz. Algumas pessoas nunca praticaram e já pensam em como seria ensinar. Esta vontade de “queimar etapas” é uma característica do nosso tempo. Então como ensinar práticas taoistas na era do imediatismo?

A formação tradicional

Como é a formação tradicional? Resumidamente: iniciante, estudante, praticante experiente, e só então instrutor, professor, e talvez mestre.

Mestre Liu Pallin (1907-2000), pioneiro do taoismo, da medicina chinesa e do Taichi.

Primeiro, somos iniciantes. Quer dizer, não sabemos nada, ou quase nada. Então, depois de um tempo como aprendizes, começamos a nos familiarizar com os princípios das artes taoistas. O treino traz consigo uma mudança de hábitos, primeiro motores e posturais, depois das atitudes habituais. Para isso, basta ter 1 professor/a qualificado/a e um pouco de dedicação e interesse em aprender.

Depois, com mais algumas semanas ou meses de treino, começamos a sentir os benefícios de praticar. Primeiro, nossa vitalidade aumenta. Gradualmente, alguns problemas crônicos de saúde começam a melhorar. Algumas dores que tínhamos no corpo não nos visitam mais. Percebemos também que o estresse diminuiu. Se continuarmos a praticar, esses benefícios se aprofundam. Além disso, começamos a memorizar as sequências de exercícios. E aprimorar nossa consciência corporal.

E, quando memorizamos as sequências, podemos também treinar fora das aulas. Veja bem, quanto mais repetir o treino, maior o benefício. Isso é, se tiver compreendido como praticar corretamente.

Turma da formação em espada Taichi com o professor Ronaldo, Brasília, 2000-2001. O professor Ronaldo está agachado, ao centro. O autor está de pé, logo atrás dele.

Como me disse um dos meus professores: “o treino começa a se revelar para você depois de aprender a sequência”. A partir deste momento a prática se baseia mais na experiência de mover e sentir o corpo. É neste contexto que aprendemos a sentir o Qi. Esta percepção se manifesta primeiro como sensações no nosso próprio corpo.

Mas é um processo lento. Leva alguns anos até integrar todos os conhecimentos e experiências no nível necessário para conseguir ensinar adequadamente. E, além de praticar muitos anos, é importante a orientação de uma pessoa qualificada, mais experiente.

Pois no passado, treinava-se todos os dias com um mestre, ano após ano. Um belo dia, chegava um momento que o mestre promovia o estudante a instrutor, para auxiliar na transmissão dos conhecimentos. E com mais maturidade, poderia então partir para abrir sua própria escola. Mas mesmo entre praticantes avançados/as, nem todo mundo se aprofundaria no caminho a ponto de se tornar mestre.

Treino de Qigong, seminário com mestre Liu Chihming, São Paulo, 2000. O autor é a segunda pessoa à esquerda. (foto da organização do evento).

Que alternativas temos no mundo contemporâneo? A formação na era do imediatismo

Nas nossas vidas urbanas agitadas, cheias de ocupações, atividades e distrações, como começar este caminho? Para começar, encontre tempo em sua agenda conturbada. Pelo menos uma aula por semana é um bom começo. E alguns minutos por dia é uma necessidade, se você deseja progredir.

Tenho uma sugestão, se você sente que não tem tempo. Quem sabe você pode substituir o tempo perdido com distrações excessivas, por alguns minutos de foco e relaxamento. Como resultado, você vai dispor de mais energia para empregar no que realmente importa.

Mas tome cuidado para não cair na armadilha da produtividade infinita. Nem tudo é trabalho, lucro, performance. O momento para treinar uma prática taoista é um momento para o cultivo de si. Mas, paradoxalmente, não é para produzir um eu maior e melhor, justo o contrário. Praticamos Taijiquan, Qigong, meditação para recuperar a capacidade de relaxar. Esta é uma capacidade natural, mas muitas vezes perdida devido a uma vida muito estressante. Quanto a isso, um fator particularmente gerador de estress é a necessidade de cultivar, defender e fortalecer nossa identidade pessoal. A necessidade de ser alguém, alguém especial, é uma das grandes fontes de sofrimento. E com o aumento da individualização no mundo atual, esse sofrimento se tornou ainda maior.

Também praticamos para recuperar nossas energias. É preciso manter o equilíbrio entre atividade e repouso, ou em termos taoistas, movimento e quietude, Yang e Yin. A prática correta deve revigorar, em vez de cansar, ao contrário da ideia convencional de “fazer exercício”. E acima de tudo, quando o corpo está em equilíbrio, é mais fácil ter uma mente calma.

Praticando Baguazhang com mestre Liu Chihming e professor Ronaldo Fernandes, São Paulo, 2000. (foto da organização do evento).

Como conciliar a formação tradicional nas práticas taoistas na era do imediatismo?

Para a maioria das pessoas, talvez não seja mais possível praticar com um mestre dia após dia, por anos a fio. Ainda assim, tendo encontrado uma fonte confiável, é possível aprender com ela. Basta fazer os devidos ajustes na nossa rotina e na nossa ambição por resultados mirabolantes e rápidos.

Encontre espaços em sua rotina, para fazer das práticas taoistas de sua preferência, um hábito diário, nem que seja por alguns minutos. Faça aulas regulares com uma pessoa qualificada, que aprendeu de um mestre autêntico e tem paciência e generosidade para responder de forma clara às suas dúvidas e dificuldades. Treine individualmente para se apropriar dos treinos, memorize as técnicas, repita e aperfeiçoe os movimentos, descubra os seus efeitos com sua experiência. Pois o benefício sentido é o melhor incentivo para continuar a praticar.

É fundamental ter um/a professor/a de referência, que pode acompanhar o seu desenvolvimento, fazer correções e tirar dúvidas. Mas afora isso, é possível aprender com outras pessoas, inclusive utilizar as novas tecnologias de aula ou curso online.

Depois de ter amadurecido sua própria prática e colhido seus frutos, aí então é o melhor momento para compartilhar este tesouro com outras pessoas. Converse com sua professor ou professora, para avaliar se já pode ensinar o que aprendeu.

Se deseja seguir este caminho, vale a pena fazer uma formação para instrutor/a, ou passar pela avaliação certificada por sua escola.

A minha própria experiência aprendendo as práticas taoistas

Como aprendi as práticas taoistas na era do imediatismo? O começo da minha caminhada com as práticas taoistas também foi marcado pela era do imediatismo, só que por outro motivo. Em 1998, estava em trabalho de campo antropológico na escola taoista de mestre Liu Pai Lin em São Paulo. Minha metodologia era participativa e incluía aprender o Taichi e outras práticas como parte do processo de minha etnografia. Eu era um sujeito jovem, ambicioso, experiente nas artes marciais e em dedicação exclusiva. Resultado: aprendi a sequência do Tai Chi de 37 movimentos em apenas 30 dias. E fiquei orgulhoso do meu feito. Ainda não tinha entendido que o verdadeiro aprendizado é para vida toda!

O que começou como pesquisa antropológica virou, contudo, um caminho de vida. Assim, nunca mais parei de treinar. Aprendi novas técnicas e sequências, ano após ano. Em primeiro lugar, para resistir ao estresse e desgaste da vida de professor. E anos mais tarde, porque compreendi que, além dos benefícios óbvios para saúde, havia muito mais. Era uma aprendizado sobre o viver.

Para continuar a aprender e aprofundar o que já sabia, foi um longo percurso. Fiz aulas particulares (de taichi, espada, Baguazhang, meditação), frequentei seminários com os mestres sobre práticas e filosofia taoista e cursos de formação (Taichi Pai Lin, Espada Taichi, I Ching Taoista), fiz as provas de certificação para instrutor de Taijiquan e Baguazhang. Em 2015, fui a Taiwan receber uma iniciação para tornar-me oficialmente discípulo da linhagem Kunlun, uma das várias linhagens do mestre Liu Pailin. Ao todo, foram mais de 20 anos de aprendizado, estudo e prática para poder me considerar um instrutor da minha escola.

Participantes do seminário com mestre Liu Chihming, São Paulo, 2017. O autor está sentado próximo ao canto inferior esquerdo. (foto da organização do evento)

Retorno à Primavera com uma semana de aulas abertas gratuitas

A primavera chegou, trazendo o impulso de renovação do elemento Madeira. Começamos um novo ciclo, aproveitando o movimento do Qì na natureza. E para comemorar, na semana de 4 a 8 de outubro, teremos aulas abertas gratuitas em todas as nossas turmas regulares. Veja o calendário acima e inscreva-se nas aulas de seu interesse na página de aulas no nosso site!

Para as aulas online, enviaremos às pessoas inscritas um link para o encontro virtual no Zoom.

Para as aulas presenciais, estaremos ao ar livre, no Espaço Mandala do Parque Olhos d’Água, mas seguiremos todas as medidas de segurança habituais: uso obrigatório de máscara e distanciamento social. Traga sua própria garrafa de água e frasco de álcool 70. Por favor, faça sua inscrição para estabelecermos um canal de comunicação eficaz, em caso de algum imprevisto, como chuva.

Novo Canal no Youtube

Você que nos acompanha aqui no site e em nossas redes sociais pode também nos encontrar no nosso novo canal Qigong Taoista no Youtube, basta clicar na imagem abaixo. Lá disponibilizaremos vídeos sobre filosofia e práticas taoistas, além de medicina chinesa.

Como a compreensão do Daodejing e outros clássicos antigos pode contribuir para a boa prática da acupuntura?

Essa é uma pergunta que exige uma resposta cuidadosa e precisa. Obviamente, quem já leu o Clássico do Caminho e da Virtude (Dàodéjīng 道德經) sabe que este não é um texto médico, mas sim um texto filosófico. Lá não há nenhuma receita, nenhuma técnica terapêutica, nenhuma referência explícita à medicina chinesa.

Contudo, é um texto sobre o Caminho Natural (Dào 道). Essa palavra se refere à natureza das coisas, se preferirem, aos processos da natureza. Quem entende o Caminho, age com o mínimo de intervenção. Daí o uso da expressão paradoxal “não ação” (wúwéi 無謂). Compreender a natureza e intervir de forma não invasiva são habilidades que com certeza interessam ao/à acupunturista.

Embora esse conceito de Caminho, ou Tao, venha acompanhado de adjetivos como insondável, profundo e misterioso, a tradição oral taoista facilita nossa compreensão:

“Tao é Taichi. E Taichi é Yin e Yang em harmonia”.

A harmonia de Yin e Yang é o princípio básico para definir saúde no contexto da medicina chinesa. E resume o objetivo da prática terapêutica. E para isso, precisamos entender melhor Yin e Yang.

Nessa tarefa, o estudo dos clássicos chinesas traz uma grande contribuição. Pois a medicina chinesa é baseada em um tipo de raciocínio que se desenvolveu na civilização chinesa, bem diferente do pensamento ocidental que deu origem à ciência moderna. A medicina chinesa também se baseia em milênios de observação sistemática da natureza e no desenvolvimento de tratamentos por meio da experiência clínica de gerações de profissionais. Mas a linguagem que organiza esse raciocínio e informa a prática clínica é outra. Seus fundamentos são a filosofia Yin-Yang e a teoria dos Cinco Movimentos.

É aqui que entra o interesse pelo Daodejing. Seu autor, Laozi, nos explica com poemas, como funciona a natureza e como uma pessoa sábia deveria atuar, baseando-se nessa compreensão.

Vou ilustrar como este texto é rico, citando dois trechos de seus poemas:

“Existência e inexistência geram-se uma a outra,
Difícil e o fácil completam-se um ao outro,
Longo e curto estabelecem-se um pelo outro,
Alto e o baixo inclinam-se um pelo outro” (Daodejing, poema 2).

O que fica evidente neste trecho é que Yin e Yang, ao contrário da crença comum, não são duas coisas, que existem independentemente uma da outra. Em vez disso, são aspectos contrastantes e complementares de um fenômeno, que aparecem na nossa percepção. Assim, um termo só faz sentido em relação ao outro. Não existe algo difícil ou fácil em si, longo ou curto em si, alto ou baixo em si. Tudo isso depende de um termo de comparação, de um critério de medida. E é desse jeito para todos os pares de opostos que a imaginação humana possa criar.

Neste outro trecho, vemos a tendência natural à autorregulação:

“O Tao do Céu é como retesar o arco:
A parte superior abaixa, a parte inferior sobe.
A parte que possui sobra é diminuída,
A parte não suficiente é completada”
(Daodejing, poema 77).

O equilíbrio decorre de diminuir o excesso e suprir a falta. E esse processo é justamente representado de forma genial pelo símbolo do Taichi ☯: quando algo chega ao máximo se transforma no seu oposto. O movimento não pode seguir incessantemente, então se transforma em quietude, que por sua vez se transforma em movimento. Ao expandir até o máximo, é preciso contrair; ao contrair até o máximo, só nos resta expandir. Entendendo profundamente esse princípio, a civilização chinesa desenvolveu todas as suas artes e conhecimentos tradicionais, incluindo a medicina. Adquirindo maestria nesse entendimento dos movimentos da natureza, é possível reduzir nossos esforços e intervenções ao mínimo necessário, de tal modo, que parece que quase não fizemos nada especial, mas que tudo aconteceu sozinho, da melhor forma. E isso é a chamada “não ação”.

Esta pequena introdução é meu convite para estudarmos mais esse clássico precioso, o texto chinês mais traduzido para outras línguas em todo o mundo.

I Ching taoista: uma introdução ao Clássico das Mutações

No processo de desenvolver o novo curso online, I Ching Taoista: um introdução ao Clássico das Mutações, lembrei do meu primeiro contato com o I Ching, ainda adolescente. Com a tradução para o português da edição de Wilhelm e Jung nas mãos, tentava usá-lo como oráculo. Fiquei fascinado com sua profundidade e sabedoria. Mas só com a leitura do livro, sem um/a professor/a qualificado/a, nem nenhum conhecimento taoista, era como tatear no escuro. Era antes da internet. Assim, as fontes de informação eram muito mais raras e difíceis de obter. (Hoje as coisas podem parecer diferentes com o excesso de informação disponíveil, mas o problema permanece o mesmo. Sem a chave de leitura que vem da tradição oral, continuamos tateando no escuro, ainda que nos consideremos experientes autodidatas.) Lembro de imagens como: “é preciso atravessar a grande água”, “pisa no rabo do tigre, mas ele não morde”, “você recebeu dez cascos de tartaruga, suprema boa fortuna”… Sabia que tinha algo importante ali, mas era difícil entender. Por onde começar? Como avançar?

Alguns anos depois, nos final dos anos 90, decidi estudar taoismo no meu doutorado em antropologia, ainda sem saber do que se tratava ao certo. Era a combinação exótica da antiga civilização chinesa que me atraía: poesia, arte marcial, meditação, medicina tradicional. Queria fazer um trabalho antropológico mais clássico, lidando com uma diferença cultural mais marcada, e estudar ao mesmo tempo vários temas que me interessavam: corpo, espiritualidade e poética.

Mestre Liu Pailin (1907-2000), pioneiro da tradição taoista no Brasil, famoso por sua compreensão filosófica do I Ching.

Por sorte, meu orientador de doutorado conhecia uma pessoa na própria universidade que poderia abrir a porta de acesso ao grupo, uma aluna do mestre. Foi assim que ouvi pela primeira vez o nome do mestre Liu Pailin, que na época vinha a Brasília dar cursos de formação taoista na Unipaz. O rosto desse ancião chinês estava estampado em cartazes espalhados pela cidade. Se bem me lembro, assisti uma palestra pública do mestre em 1998, com tradução consecutiva do chinês. Mestre Liu já estava no Brasil desde 1977, divulgando os conhecimentos tradicionais taoistas. Foi pioneiro do Taichichuan, da massagem Tuiná, da meditação taoista e do ensino dos textos clássicos, como o I Ching.

Em setembro de 1998, parti para São Paulo, para o meu primeiro período mais intensivo de trabalho de campo. Foi neste contexto que escutei o mestre Liu falar do I Ching, como um texto filosófico que revelava os segredos do caminho taoista. Por exemplo, ele utilizava os hexagramas para explicar algum detalhe de um treinamento importante, ou para falar do ciclo da vida humana. O mestre enfatizou muitas vezes que o clássico não apenas um oráculo, mas que continha uma explicação profunda dos segredos da natureza, as relações entre o Céu e a Terra, os ciclos de yin e yang e como isso afetava a vida humana.

Antonio Moreira, discípulo do mestre Liu Pailin e especialista no I Ching.

No mesmo período, conheci Antonio Moreira, discípulo do mestre Liu, e talvez o maior especialista no estudo do I Ching entre os discípulos do mestre. Antonio foi um dos maiores colaboradores na pesquisa de doutorado sobre a linhagem taoista Pailin. Concedeu longas entrevistas, apontou outros/as possíveis participantes com belas histórias de vida e inclusive sugeriu a algumas dessas pessoas que me dessem entrevistas. À medida em que me aprofundei nos treinamentos taoistas como parte do meu caminho pessoal, Antonio se tornou também um amigo e um “irmão mais velho de treinamento”, de quem aprendi bastante sobre meditação e I Ching. Ele tinha também um visão refinada das relações interpessoais e políticas dentro da escola e esteve sempre disponível quando necessitei de orientação.

Ele já atuava profissionalmente com o oráculo há alguns anos quando o conheci. E foi ao final de segundo período trabalho de campo em São Paulo, em 1999, que fiz com ele uma primeira consulta oracular bastante profunda. Comecei a perceber todo o potencial do I Ching como oráculo.

Em 2003, Antonio esteve em Brasília, ministrando seu curso O I Ching Taoista, em três módulos, a convite do NEPT, um grupo de praticantes que organizou alguns eventos de formação da linhagem Pailin no início da década. Nele, recebemos de Antonio uma introdução sistemática ao I Ching, baseada na tradição oral taoista, nos estudos pessoais desenvolvidos por esse verdadeiro aficcionado pelo Clássico das Mutações e em sua longa experiência profissional com a consulta oracular. De posse dos fundamentos corretos para a compreensão do I Ching, uma porta se abriu para mim.

A partir dali, meu interesse e compreensão do I Ching aumentaram bastante. Estudei minhas anotações pessoais do curso do Antonio, os escritos dos mestres Liu Pailin e Liu Chihming, e os livros de outros comentaristas e especialistas, como o mestre Wu Jyhcherng, sacerdote que fundou a Sociedade Taoista do Brasil. Com a chave de leitura da transmissão taoista, o clássico fez cada vez mais sentido.

Mais de dez anos se passaram, enquanto continuei a estudar, um pouco de cada vez. Em momentos de crise, fazia consultas ao oráculo, buscando mais clareza sobre a direção a seguir. A elegância e precisão do oráculo me fascinaram. Com o coração sereno e alguma familiaridade com o simbolismo, as respostas eram tão adequadas à situação!

Em 2015, mais uma vez graças à ajuda de Antonio, recebi a iniciação da linhagem taoista Kunlun Xianzong, em Taipei, com um pequeno grupo de peregrinos/as brasileiros/as. A partir desse ponto, os conhecimentos taoistas foram ocupando um espaço ainda maior na minha vida diária. Foi como parte desse movimento que comecei a desenvolver um curso de introdução à leitura taoista do I Ching, que começou a ser ministrado em 2018. Meu objetivo era oferecer uma introdução abrangente e acessível para iniciantes, mas fiel à profundidade do clássico e da leitura tradicional. Após algumas edições presenciais desse curso, em Brasília e Goiânia, fizemos em 2020 a primeira edição do curso em formato online, combinando um fim de semana ao vivo, exercícios e mentoria em sala de aula virtual e outras ferramentas.

Como etapa mais recente desse percurso, acabamos de concluir uma nova versão do curso I Ching Taoista: uma introdução ao Clássico das Mutações, agora inteiramente EAD, disponível nesse link. São os mesmos conteúdos (dos fundamentos à prática oracular), mas ficam disponíveis mais tempo que um curso presencial e cada participante pode fazer o curso no seu tempo, ao mesmo tempo em que conta com o suporte do professor.

I Ching Taoista: uma introdução do Clássico das Mutações, curso EAD.

Nova Fase: cursos online

Vida é movimento, praticar o Tao é aprender a se adaptar às circunstâncias. Em tempos de mudança e incerteza, é nossa estabilidade interna que nos permite fazer silêncio para estar sensível aos acontecimentos e nos posicionar de forma harmônica. Após tantas postagens sobre o mundo contemporâneo, surgiu a necessidade de adaptar, mais uma vez, as possibilidades de compartilhar os conhecimentos taoistas.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Em tempos de recomendações de isolamento social, pânico coletivo diante de uma pandemia global, ansiedade, incerteza e solidão, nada como o antídoto da meditação. Ela acalma o coração e recarrega nossas energias dispersas. Com coração sereno e vitalidade plena, é mais fácil ser compatível, ter empatia e cuidado.

Atendendo à sugestão do público interessado, além das aulas e cursos presenciais, agora teremos também aulas e cursos online. Isso permitirá tornar os conhecimentos taoistas acessíveis a um público de outras cidades. Nosso primeiro projeto, dentro dessa iniciativa, é o curso online de introdução à meditação taoista. Os conteúdos serão basicamente os mesmos do curso presencial, apenas em um outro formato. Para inscrever-se basta clicar nesse link.

O desafio nos cursos e aulas online édisponibilizar material adequado à/ao praticante contemporânea/o. E, ao mesmo tempo, respeitar a profundidade da transmissão oral tradicional.

Durante todo o período da pandemia, teremos também aulas online regulares de práticas taoistas: Daoyin, qigong e meditação.

Se quiser participar, preencha o formulário de inscrição abaixo: