O Tao e o corpo contemporâneo

As preocupações com saúde e longevidade na civilização chinesa estão documentadas pelo menos desde o primeiro capítulo das Questões Simples (素問), livro que compõe o Clássico da Medicina Interna do Imperador Amarelo (黃帝內經): nele, Huangdi, o Imperador Amarelo, um dos soberanos míticos fundadores da civilização chinesa, pergunta ao seu conselheiro médico, Qibo, porque as pessoas no passado viviam até os cem anos com saúde enquanto “atualmente” (no terceiro milênio a.C.) vivem apenas algumas décadas e adoecem frequentemente. Desde os primórdios da tradição taoista, uma das expressões de um estado de equilíbrio com a natureza foi viver bem, o que inclui a saúde, vitalidade e longa vida. Talvez este seja um dos aspectos que permitiram esses conhecimentos terem um espaço no mundo contemporâneo globalizado. No entanto, aqui a preocupação com o corpo atingiu um novo patamar, uma verdadeira obsessão com a perfeição corporal…

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Obviamente, generalizações de larga escala falam mais de uma norma ou prática cultural, ou de uma tendência sistêmica que pode ser percebida e descrita. É uma estratégia útil para perceber certos fenômenos, mas não esgota as particularidades e contradições concretas do mundo.

“Decay”, foto de Julia Wang , licenciada para uso público por Creative Commons, CC BY-NC 4.0

Ainda assim, o que se pode concluir de diversos estudos das ciências sociais sobre o tema do corpo nas sociedades globalizadas contemporâneas é a emergência de uma nova “cultura somática” ou até mesmo uma espécie de “corpolatria”. Embora a justificativa seja a saúde, o que está em jogo é a boa forma, ou seja o valor da aparência corporal em conformidade com certos ideais estéticos quase inalcançáveis, como um indicador do caráter do sujeito. O “corpo perfeito”(sic.) se torna um objetivo em si, a ser alcançado por meio de uma combinação de fitness, dieta, recursos farmacológicos e modificações cirúrgicas. E, claro, a exibição dessas conquistas nas redes sociais, por meio de imagens digitalmente corrigidas. Nesse sentido, essa norma corporal é a contraparte da subjetividade contemporânea descrita na postagem anterior, marcada pelas mesmas angústias em torno da visibilidade.

Detalhe de pintura em papel, da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Na contracorrente disso, o corpo na tradição taoista não tem valor como base para uma identidade pessoal, porque essa é vista como fonte de preocupação e desgaste. Em vez disso, cultiva-se o corpo como um “pequeno universo”: suas estruturas e as substâncias que o compõem são as mesmas do mundo. Assim, o cultivo visa colocar-nos em harmonia com o Tao, com a natureza. E disso decorre a saúde e a longevidade. Os cinco movimentos (fogo, água, madeira, metal e água) que compõem o corpo, estando em harmonia, são a base para um equilíbrio existencial. Esse equilíbrio facilita a prática contemplativa, mas também relações harmônicas com o mundo. Por isso, a civilização clássica chinesa entendia que uma pessoa sábia, apenas com sua presença, podia influenciar beneficamente os seres à sua volta. O Clássico da Pureza e da Serenidade (清靜經) diz: “embora se fale em realizar o Tao, não há nada a atingir. Simplesmente os seres começam a se transformar por si mesmos”.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *