O Clássico Interno do Imperador Amarelo: 02. preservar a saúde nas estações do ano

Dando continuidade às postagens sobre os clássicos da medicina chinesa, o tema de hoje é a relação entre o ciclo das estações do ano e os cuidados de saúde. Para os antigos chineses, há uma correspondência entre os cinco movimentos (wǔxíng 五行) e as estações do ano. Isso quer dizer que nessas épocas predomina o que lhe é característico e que, portanto, podem ser mais ou menos propícias para certas atividades.

crédito da imagem: needpix.com, 2019

A primavera corresponde à madeira (mù 木). Em harmonia com isso, o capítulo dois das Questões Simples (素聞) do Clássico Interno do Imperador Amarelo, afirma que esse é “o momento apropriado de nascimento e expansão”. Em uma região de clima temperado, é o momento em que as plantas brotam e tornam a ficar verdes após o frio do inverno. O clássico recomenda dormir e acordar cedo, caminhar ao ar livre e inspirar ar fresco pela manhã, exercitar os músculos e tendões. Ao ficar em desarmonia com o da primavera, o fígado, órgão interno correspondente à madeira, será afetado. E como consequência, pode se manifestar uma doença no verão.

Montanhas no verão, pintura em seda de Qu Ding, acervo do Metropolitan Museum of Art, New York.

O verão corresponde ao fogo (huǒ 火). Por isso, é uma época de florescimento e frutificação, de apogeu do Yang. O clássico também recomenda acordar e dormir cedo, tomar sol, suar para permitir a saída do excesso de calor e não ficar frequentemente com fome. Ao ficar em desarmonia com o do verão, o coração, órgão interno correspondente ao fogo, será afetado. E assim pode surgir uma doença no outono.

Três Plantas do Outono, pintura de Zhou Xian, acervo do Walters Art Museum
Paisagem com figura, pintura de Xugu, acervo do Art Institute of Chicago

O outono corresponde ao metal (jīn 金). Por isso é uma época de amadurecimento e colheita. O clássico recomenda deitar mais cedo e proteger-se do frio, acordar cedo e apreciar o ar outonal, conservar o espírito tranquilo. Ao ficar em desarmonia com o do outono, o pulmão, órgão interno correspondente ao metal, será afetado. E pode surgir uma doença no inverno.

O inverno corresponde à água (shuĭ 水). Num clima temperado como o da China, uma época de congelamento da água, de hibernação dos animais, portanto uma época de recolhimento. O clássico recomenda manter-se aquecido e proteger-se do frio para não perturbar o Yang qì, deitar-se cedo, levantar-se cedo para ter contato com a luz solar, manter o coração em repouso, evitar a transpiração e o consumo e exaustão do Yang. Ao ficar em desarmonia com o do verão, o rim, órgão interno correspondente à água, será afetado. E pode surgir uma doença na primavera.

Ainda que essas observações e instruções tenha sido desenvolvidas na antiguidade chinesa tendo em vista uma região de clima temperado, se observarmos com atenção as transformações das estações em nosso clima tropical, também encontraremos as propriedades específicas dos cinco elementos. Assim como os sábios do passado aplicaram esses conhecimentos para preservar a própria saúde e para ensinar pacientes a prevenir o surgimento de doenças, podemos também fazer o mesmo.

As energias de todas as coisas da terra surgem na primavera, crescem no verão, dão passagem no outono e se ocultam no inverno; são todas geradas pela lei de variação das energias do Yin e do Yang das quatro estações. Dessa forma as energias Yin e Yang das quatro estações são as energias-raiz de surgimento e crescimento de todas as coisas (Questões Simples, capítulo 2).

O Clássico Interno do Imperador Amarelo: 1. a eficácia das agulhas de acupuntura

A postagem de hoje inaugura uma nova série sobre os clássicos da medicina chinesa. Desejo destacar como funciona essa medicina segundo a sua própria racionalidade. Como o método mais emblemático dessa medicina é a acupuntura e o Huangdineijing é o texto clássico fundamental, começaremos por ele. O Clássico Interno do Imperador Amarelo é dividido em dois livros: Questões Simples (素聞) e Eixo Espiritual (靈樞).

Página da edição chinesa do Suwen, que forma parte do Huangdineijing. Acervo da World Digital Library.

Como se sabe, esse clássico é escrito na forma de um diálogo entre o legendário Imperador Amarelo, um dos fundadores míticos da civilização chinesa, e Qibo, seu conselheiro para assuntos de medicina. é um texto que traz tanto os fundamentos filosóficos dessa antiga tradição médica, mundialmente reconhecida, mas também contêm conhecimentos técnicos que de algum modo norteiam a medicina chinesa até hoje. A medicina chinesa foi descrita como uma medicina de equilíbrio, porque a noção de Tao é o ponto de partida para sua compreensão da saúde.

Um aspecto importante presente no primeiro capítulo do Eixo Espiritual (靈樞) é que a eficácia da acupuntura depende do que às vezes se traduz como “sensação de acupuntura”; as expressões em chinês no texto são “chegada do qì” (Qìzhì 氣至) ou “obtenção do qì” (Déqì 得氣). Essa sensação é um indicador que o chegou ao ponto onde a agulha foi inserida e que, se a técnica for usada corretamente, fluirá da forma desejada pelo canal correspondente. O curioso é que não apenas o/a paciente deve sentir um campo de sensações características da ação terapêutica da agulha, descritas na literatura clássica, mas também em pesquisas modernas, em termos de calor, dormência, peso, eletricidade, fluxo, vibração, etc. Mas também, o/a acupunturista experiente deve desenvolver sua sensibilidade para perceber a chegada do e sua manifestação, antes mesmo que o/a paciente lhe comunique sua experiência ou que seu corpo reaja ao estímulo. Classicamente, a sensação de quem manipula a agulha é descrita como semelhante a um peixe que fisga o anzol. Mas para que ocorra essa experiência, o/a acupunturista deve aprender a inserir a agulha e manipulá-la em um estado de serenidade e atenção.

Agulha inserida no ponto Neiguan (PC6), foto do autor.

Em poucas palavras, uma vez que o ponto punturado está ativo, é possível incrementar o afluxo de ali, em doenças caracterizadas por deficiência; ou remover o excesso, seja ele resultante de um bloqueio no fluxo por estagnação, decorrente de um desequilíbrio interno (alimentar, emocional, constitucional), seja da invasão de um fator patogênico externo. O Eixo Espiritual afirma ainda que, quando tonificamos, o/a paciente deve sentir que “ganhou” algo. E, do mesmo modo, quando dispersamos, o/a paciente deve sentir que “perdeu” algo. Ou seja, a tonificação ou dispersão devem produzir sensações perceptíveis.

Compreender o Tao: 5. Intelecto x experiência

Embora o taoismo tenha vários textos clássicos, há algo de errado com a ideia de que é uma filosofia, no sentido acadêmico ocidental do termo. Isso fica evidente já no primeiro capítulo do maior texto clássico taoista, o Dàodéjīng: o grande Tao não pode ser nomeado. Ou seja, está além da capacidade humana de conceituar, definir em palavras. Logo, está além do intelecto. Compreender o Tao não é uma tarefa intelectual. Por isso, no Dàodéjīng também se diz que o caminho do estudo é aumentar a cada dia, mas o caminho do Tao é diminuir a cada dia, até chegar à não ação (wúwéi)

Mas também não é algo em que se deva acreditar. Compreender o Tao não é sobre “fé”. O Caminho Natural, é simplesmente como as coisas são, o funcionamento da natureza. Existe uma maneira de compreender por meio do sentir, da experiência direta sem palavras.

Assim, os mestres e mestras do Tao apontaram o caminho, indiretamente, por meio das artes (poesia, música, caligrafia, pintura, artes marciais) e diretamente, ensinando métodos de cultivo do e de meditação. A ideia aqui é que é mais fácil apreciar o Tao quando estamos em sintonia com os ritmos da natureza. E quando os cinco movimentos, ou elementos, presentes no nosso corpo estão em equilíbrio, quando nossa capacidade de autorregulação está no seu pleno potencial, é mais fácil estar em harmonia com a natureza.

Naturalmente o coração está mais sereno, a vida fica mais simples sem desejos desnecessários e emoções tempestuosas. E com o coração regulado, é mais fácil repousar no silêncio e na quietude. Nesse estado, o Tao é fácil de compreender, por experiência pessoal, com a sensibilidade, não com o intelecto.

Na prática, como se faz isso? Treinando diariamente os métodos para o cultivo da vida e para a serenidade, como explicado por um professor ou uma professora devidamente qualificado/a. É a prática que nos leva a descobertas pessoais a transformações palpáveis.

O Tao como vida em relação

“Tao é Taichi, e Taichi é harmonia de yin e yang”. Essa afirmação tradicional tem uma consequência no entendimento do caminho taoista como a unidade de uma compreensão sobre a vida e de uma arte de viver. A vida é percebida como um jogo dinâmico de aspectos complementares, opostos, alternados, sempre organizados em relações. E o bem viver seria um exercício de sensibilidade e ajuste às condições e relações do momento, visando o equilíbrio, a fluidez e a ação eficaz com o mínimo de desgaste. Compreendendo corretamente o funcionamento da natureza, ou do Céu e da Terra, e desenvolvendo pela prática uma sintonia com esse funcionamento, a vida fica mais simples. Assim, “filosofia” e “treinamento” taoista não são coisas separadas, mas os dois lados do caminho. Em uma época de tantas experiências de solidão, isolamento e excessivo individualismo, talvez os antigos sábios chineses tenham algo a nos ensinar…

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Certamente, há todo uma dimensão social nessas experiências, uma desagregação do espaço público, o desmantelamento de políticas de bem estar e seguridade social, associados a uma desregulamentação que favorece o mercado e prejudica as vidas das pessoas comuns, a ausência de projetos para o bem comum, tudo isso associado a uma excessiva individualização nos ambientes urbanos globalizados. Então, a solidão está associada uma instabilidade nas condições sociais, a um enfraquecimento da profundidade e diversidade de vínculos significativos e, ao mesmo tempo, a um aumento da importância individual e da necessidade de visibilidade e popularidade.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

No entanto, se voltamos à concepção taoista sobre a vida, nunca estamos de fato separados/as do mundo nem das demais pessoas. Estudando a filosofia taoista e a medicina tradicional chinesa, podemos nos dar conta disso em um nível intelectual. Praticando meditação e qigong podemos nos dar conta disso pela experiência vivida, de conexão com o mundo à nossa volta e seus habitantes. Um corpo vivo é feito dos mesmos materiais que a natureza. E é sua permeabilidade ao ar, à água, aos alimentos, ao que torna a vida possível. A metáfora ocidental fundadora da identidade pessoal – eu como algo dentro, enquanto o mundo está fora – induz a um erro de percepção, com consequências existenciais. O mundo não está fora de nós, nós sempre estivemos dentro do mundo. E os seres humanos vivem graças às relações: não teríamos chegado à idade adulta sem cuidados, ajuda e aprendizagem oferecida por outras pessoas; a maioria de nós não poderia sequer sobreviver sem o trabalho e os conhecimentos de outras pessoas. Resumindo, assim como não poderemos viver se destruirmos o ambiente natural, a vida também não é possível sem solidariedade e cuidado mútuo. Ou até é possível, mas às custas da nossa sanidade e até mesmo de nossa humanidade.

Certamente direitos e liberdades individuais são um ganho, mas se tornam uma maldição quando não vem acompanhados de responsabilidades coletivas e respeito aos mesmos direitos e liberdades das demais pessoas. A convivência íntima se torna uma tirania e as relações sociais se tornam formas de exploração e opressão.

O que aprendi de meus mestres é que o cuidado de si, o cultivo da vitalidade e da serenidade, a conquista da saúde e da longevidade, o despertar da sabedoria, é parte do processo de aprender a cuidar dos/as outros/as. É porque temos equilíbrio que podemos ser uma presença benéfica. Só tem sentido uma vida longa se com ela podemos beneficiar nossas comunidades e partilhar conhecimentos e experiência acumulada.

Benefícios do Taichi: uma explicação simples para iniciantes e pessoas interessadas

Quem ainda não conhece o Taichi (Tàijí 太極) mas já viu alguém praticando sozinho ou em grupo ao ar livre, pode ter se perguntado sobre qual o sentido de repetir movimentos lentos e circulares, que poderiam lembrar uma dança em câmera lenta. Por que será que milhões de pessoas, de diferentes gêneros, classes sociais, etnias, faixas etárias, nacionalidades e estilos de vida praticam essa arte chinesa pelo mundo afora? Será isso um exercício físico? Uma arte marcial? Uma meditação em movimento?

Quando falamos em Taichi, antes mesmo de referir-nos a uma prática corporal que contém, de fato, aspectos de arte marcial, técnica de longa vida e meditação, estamos falando de um dos conceitos centrais do pensamento chinês: a união de dinâmica de aspectos opostos e complementares presentes em todos os fenômenos do universo. A prática do Taichi, portanto, tem como fundamento filosófico essa intuição genial da civilização chinesa sobre o funcionamento da natureza, incluindo o corpo humano, como um processo dinâmico contínuo.

Em outras postagens, expliquei em mais detalhes os benefícios objetivos da prática, conforme evidências de pesquisas científicas recentes na área médica: melhorar o equilíbrio, a respiração e a saúde do coração; redução de dores e desconfortos; saúde mental e cerebral. Portanto, aqui quero acrescentar mais algumas informações sobre essa característica definidora dos exercícios de Taichi: o movimento lento, rítmico e circular.

Em primeiro lugar, mover-se devagar nos habitua a algo que raramente temos o privilégio de vivenciar nos tempos acelerados da vida urbana contemporâneo, rica de agitação, informação, compromissos, atividades e exigências de desempenho. Por alguns instantes por dia, podemos desacelerar, relaxar e nos livrar do estresse de cada dia. A capacidade de relaxar, de não fazer esforço, que é algo natural, inerente ao nosso organismo, está sendo perdida por alguns e algumas de nós, que não sabemos mais parar nosso movimento incessante. Considerando o papel do estresse em muitas doenças modernas, dispor de uma ferramenta para manejo e redução do estresse diário pode ser um importante recurso de medicina preventiva.

Em segundo lugar, o movimento lento proporciona um exercício de baixo impacto, que pode ser praticado por qualquer pessoa, independente de seu nível de condicionamento físico. Um exercício que fortalece e alonga com menor risco de lesões. Um exercício que tonifica a musculatura de sustentação, sem ser extenuante e doloroso. E melhora a respiração e a circulação de forma gradual. Os movimentos lentos e circulares, têm uma riqueza particular, por isso melhoram nossa coordenação motora, principalmente a capacidade de coordenar as diversas partes do corpo para um movimento mais econômico e integrado. Por isso, a transmissão oral do Taichi diz: “a força é gerada pelos pés e pernas, comandada pela cintura e expressa pelos braços e mãos”.

Por fim, o movimento em câmera lenta nos permite desenvolver a consciência corporal, mais precisamente, a consciência do alinhamento postural, da distribuição do peso, da posição no espaço, do tônus, e, nos exercícios a dois, da intenção e postura do parceiro/a de treino. Aprendemos a sentir o encadeamento entre um movimento e outro. Em vez de gestos isolados, em staccato, a movimentação passa a ser percebida como um ciclo infinito de alternâncias: avançar e recuar, erguer e descer, expandir e recolher, leve e pesado, cheio e vazio. O símbolo do Taichi (☯️) então é vivenciado como uma experiência no corpo e não mais como um conceito abstrato. E é essa vivência que proporciona a quem pratica, e comunica até a quem observa, um certo senso de harmonia e serenidade.

A combinação de todos esses fatores beneficia ao mesmo tempo o aparelho locomotor, o funcionamento dos órgãos internos e a saúde psicológica. Além disso, é uma atividade agradável para praticar quando desejamos estar sozinhos/as em silêncio, ou em contato com amigos e amigas. Praticar continuamente sob orientação de um instrutor ou uma instrutora competente pode nos tornar pessoas mais saudáveis, mais longevas, mais equilibradas e, quem sabe, até sábias.

O Tao e as emoções

Estar vivo é ser capaz de sentir, perceber e tomar decisões. Logo, as emoções são parte integrante da vida. Podemos entendê-las, num sentido prático, como uma disposição para a ação e, num sentido mais psicológico, como as cores da nossa paisagem subjetiva. Para a civilização chinesa clássica, cada conjunto de emoções é expressão do de um dos cinco movimentos (wǔxíng 五行): madeira, fogo, terra, metal, água. Em si, portanto, isso é natural. No entanto, quando as emoções se tornam excessivas na sua intensidade e duração, tirando-nos do nosso eixo e centro, tornam-se para a medicina chinesa um fator patogênico interno, simultaneamente causa e sintoma do desequilíbrio do , que pode ficar estagnado ou fluir em direções contrárias à circulação normal do organismo saudável, além de apresentar condições de excesso ou deficiência, onde deveria haver proporção e equilíbrio dinâmico. No princípio, o desequilíbrio é sutil e relativamente simples de corrigir, mas quando se torna uma condição repetida ou persistente, que segue sem medidas corretivas, pode evoluir para enfermidades graves e difíceis de tratar. Em nossos tempos de incerteza, instabilidade, velocidade e agitação, uma relação sábia com as emoções se torna crucial.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Não é que a agitação e a angústia sejam algo novo, pois o contrário é testemunhado por Laozi, no poema 12 do Dàodéjīng. Mas, como disse em outras postagens, isso chegou a um novo patamar no mundo contemporâneo globalizado. Uma característica das sociedades urbanas contemporâneas é a coexistência paradoxal de um estado de insensibilidade/apatia coletiva e de uma excessiva agitação. Resumindo, é como se o excesso de estímulos sensoriais e exigências de desempenho, sem falar dos medos e angústias coletivas acabassem por nos embrutecer e dessensibilizar. Consequentemente, e como compensação, a busca por sensações cada vez mais intensas, no prazer, no lazer, no entretenimento. Além disso, é claro, também a tendência ao manejo dos estados de humor por meios farmacológicos. Não é casual o aumento das demandas coletivas por intensidade: o aumento estatístico do consumo de substâncias psicoativas legais e ilegais; a mudança na estética dominante na indústria do entretenimento para uma narrativa cada vez mais rápida e para uma expressão mais gráfica/explícita de conteúdos de violência e crueldade; a popularização dos esportes de risco e aventura entre pessoas que tem condições objetivas de vida marcadas pela segurança; o aumento do número de decibéis nos grandes espetáculos musicais; a indústria dos aditivos químicos realçadores de sabor; dos odores artificiais para perfumar corpos e ambientes; as promessas da indústria do sexo de prazeres novos e mais intensos; etc. Um mundo mais vertiginoso e mais intenso. E quando a intensidade se torna insuportável, a demanda por anestesia: analgésicos, reguladores de humor, medicação para dormir.

A alegoria taoista clássica: saboreando o Vinagre.

Um aspecto do caminho taoista como arte de viver, é o governo de si. Isso não tem nenhuma relação com ideias de autocontrole, mas sim, com aprender a favorecer os mecanismos naturais de autorregulação do corpo, manter o coração sereno diante dos acontecimentos e cultivar a simplicidade. Embora se diga que o cultivo é lidar com o mundo real sem agitar o coração, isso não tem nada a ver com insensibilidade ou indiferença. Ao contrário, é desenvolver uma sensibilidade inteligente, que nos permite reagir de forma apropriada ao que as situações da vida demandam. A prontidão para uma ação rápida e eficaz, que não se confunde com uma reação impulsiva. Estar vivo/a é ser capaz de sentir, desfrutar as belezas da vida, sem avidez nem compulsão, comover-se com o sofrimento alheio, mas sem sentimentalismo ou desespero. Daí a alegoria clássica taoista, ainda que um tanto tendenciosa, sobre as três grandes correntes civilizatórias da China clássica: taoismo, budismo e confucionismo, representadas por seus respectivos fundadores. Ao provar o vinagre, apenas Laozi sorri. A vida tem suas características naturais, e isso não é bom nem ruim.

Tao: o silêncio entre as palavras

Compreender o Tao é paradoxal. Por isso Laozi disse: “Minha palavra é bastante fácil de compreender/ bastante fácil de praticar/ mas, sob o céu, ninguém consegue compreendê-la/ ninguém consegue praticá-la” (Dàodéjīng, poema 70) . O que os antigos chineses chamaram de Caminho ou Caminho Natural é algo que está sempre presente a cada experiência, simplesmente como as coisas são. Mas está tão perto, é tão simples, que, por isso mesmo, está aquém ou além das palavras. Daí, no contexto taoista, desde a antiguidade aos dias atuais, pessoas sábias utilizaram termos como “indescritível”, “sem nome”, “profundo”, “grande”, “misterioso” ou “maravilha”, na tentativa de apontar a direção, de ensinar-nos a reconhecer do que se trata, por meio de nossa própria experiência.

Imortal voando num dragão, detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.
Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, setembro de 2018.

Não é algo que o intelecto consegue apreender, não é algo que possa ser explicado, mensurado, provado. Mas é algo que pode ser percebido, treinando a sensibilidade. E quando isso acontece, e temos a sorte de contar coma orientação de 1 mestre ou mestra competente, temos uma experiência nítida e livre de dúvida. Lendo as biografias de mestres e imortais do passado, podemos encontrar tanto perfis mais contemplativos, pessoas que se recolheram em montanhas e florestas para cultivar o Tao, quanto pessoas que tiveram uma existência comum, com uma vida simples em família e ganhando seu sustento com uma profissão. Se não temos o desejo de viver reclusos/as nas montanhas, ou a condição para fazê-lo, podemos praticar na vida que vivemos, na cidade. Mais importante dos que as condições externas ideais para praticar – como as que foram buscadas por eremitas, monges e monjas ao longo da história da China – é a capacidade de encontrar o silêncio em nós mesmos/as, pelo menos alguns instantes todos os dias. Uma maneira estruturada para fazer disso um hábito é aprender um método confiável de meditação. Mas se diz que a base para praticar, antes mesmo de aprender qualquer técnica, é regular o coração (Tiáoxīn 調心): isso significa simplificar a vida, reduzindo desejos, necessidades e ambições desnecessárias.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, setembro de 2018.

E de posse dessa simplicidade básica, não só a meditação, mas qigong, artes marciais, pintura, caligrafia, música, medicina, enfim todas as artes tradicionais praticadas por taoistas, podem ser um porta de entrada para o Tao. Todas elas valorizaram o aprendizado prático, o refinamento da sensibilidade, a fluidez do gesto, a atenção combinada ao relaxamento, o ajuste à situação concreta do presente. Na quietude da meditação formal; nos movimentos lentos e circulares do qigong; nos movimentos ágeis e precisos das artes marciais (seja o combate com as mãos livres, ou com armas, como a espada); no pincel que traça paisagens ou palavras entremeadas de espaços vazios; nas notas musicais que ressoam ritmicamente entre silêncios; na acuidade dos métodos diagnósticos e no uso eficaz dos tratamentos (com massagem, agulhas, ventosas, moxabustão). etc. Em todas essas situações está presente o potencial para entrar em contato com as qualidades do estado natural, a união de quietude e movimento contínuo. Mas além de todas as artes tradicionais, com sua beleza, cada atividade trivial do cotidiano também é uma preciosa oportunidade para perceber o estado natural, desde que estejamos vivos/as, relaxados/as e atentos/as.

O Tao e a ação na vida

Existe um motivo para que os antigos textos taoistas tenham atravessado tantas gerações, é a sabedoria que eles contêm. Há algo a aprender com as experiências desses seres humanos extraordinários que habitaram épocas, paisagens e mundos culturais tão distantes dos nossos. Os clássicos taoistas preservaram uma compreensão profunda sobre o viver, nascida da capacidade de ficar em silêncio e observar a natureza, nela incluída a humanidade. Observando as mudanças e seus ciclos, presentes em todos os níveis, sintetizaram seu entendimento refinado em símbolos, como o do Taichi (Tàijí ), ou os hexagramas do Yìjīng, ou em versos, como os do Dàodéjīng, porque o que havia a dizer sobre a vida não cabe muito bem na linguagem linear do intelecto. A reflexão de hoje trata do que podemos aprender com o Tao sobre a ação.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.
Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

E, ao pensar em ação numa abordagem taoista, haveria duas direções a seguir: os princípios que orientam a conduta e a importância da espontaneidade. Falar em conduta poderia nos levar a pensar em termos de moral, e até de uma moral religiosa, visto que o taoismo tem sido objeto de estudo no campo da religião comparada, da história e da antropologia da religião. Mas sem ir nessa direção, acho mais interessante apontar para o essencial. A inspiração que encontro nos clássicos como orientação para a conduta são três princípios que vimos em postagens anteriores, e descritos por Laozi como três tesouros: amorosidade, simplicidade e não querer ser o primeiro sobre a terra. Esses princípios dão o tom de uma atitude existencial, mas não equivalem a regras ou mandamentos. Inclusive, o apelo ao moralismo é sintoma da perda de contato com as qualidades naturais do Tao, como podemos ver no poema 18 do Dàodéjing: “Quando se perde o Grande Caminho/ Surgem a bondade e a justiça/ Quando aparece a inteligência / Surge a grande hipocrisia / Quando os seis parentes não estão em paz / Surgem o amor filial e o amor paternal / Quando há desordem e confusão no reino/ Surge o patriota”.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

O Huáinánzĭ, que também está entre os mais importantes clássicos taoistas, ilustra a atitude taoista marcada por um certo relativismo moral, mas que não se confunde com cinismo. Pelo contrário, reflete um senso de adequação à situação, que depende de uma sensibilidade contextual , que oferece uma alternativa ao moralismo. Para dar uma ideia do que se trata, alguns fragmentos: “Certo e errado são situacionais. Na situação apropriada, nada é errado. Sem a situação apropriada, nada é certo”. Ou ainda: “O que é certo em um caso não é certo em outro, o que é errado em um caso não é errado em outro”. E mais adiante, na mesma sessão, conclui: “Portanto, líderes esclarecidos não impõem leis inúteis ou ouvem palavras ineficazes”.

Por fim, o tema da espontaneidade é central para o taoismo, sendo essa uma das características dos seres iluminados. Mas não se trata de espontaneidade, como frequentemente entendemos, no sentido de seguir os próprios impulsos sem discernimento, de fazer o que der na telha. A espontaneidade do Tao, é não ação, no sentido que a ação brota do vazio, da serenidade do coração e da receptividade que responde perfeitamente à necessidade da situação. Acontece assim, porque naquele instante não há uma identidade pessoal que protagoniza a ação como marca da sua presença no mundo. Não é um eu que age, há apenas o agir em harmonia com as circunstâncias, por isso, parece que nada foi feito, ou que ninguém agiu, mas ainda assim, ocorreu o que era necessário e eficaz. Quem sabe cada 1 de nós pôde experimentar isso, ainda que brevemente, mesmo uma única vez. Que isso possa nos inspirar a praticar formas de esquecermos de nós mesmos/as, para o bem de todos/as nós.

Tao, natureza e cultura

Uma das traduções mais frequentes para Tao (Dào 道) é caminho ou, mais precisamente, “o caminho natural”. E o taoismo seria, portanto, uma tradição que ensina a seguir o Tao, portanto, a estar em harmonia com a natureza. Mas de que estamos falando quando usamos os termos “natural” e “natureza”?

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.
Pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor, setembro 2018.

Ao falar em natural, ou natureza, num sentido taoista, a primeira imagem que surge é a alternância de yīn e yáng, observável nos ciclos do mundo natural: dias e noites, movimentos dos astros, fases da lua, estações do ano, marés. Isso também é observável nas formas pelas quais animais e plantas respondem a esses ciclos. E no próprio corpo humano: a grande circulação diária do pelos doze canais ordinários, correspondentes aos órgãos e vísceras, e o próprio ciclo de vida, do nascimento à morte, conforme descrito pela medicina tradicional chinesa. Baseada numa longa observação desses e outros processos durante muitas gerações, a tradição taoisa desenvolveu estratégias para manter o equilíbrio de yīn e yáng no ser humano, adaptando-se de modo inteligente às circunstâncias do mundo natural, em vez de se prejudicar por causa delas. O primeiro sentido da expressão “caminho natural” é bastante literal: o modo como as coisas funcionam na natureza, seus ciclos e fluxos. E estar em harmonia com a natureza é, portanto, adequar o modo de vida a esses processos. Por exemplo, quanto a que tipos de treinamentos fazer em que horário do dia ou época do ano.

Mas será que esse amor à natureza, o valor do natural, precisa ser inimigo dos desenvolvimentos tecnológicos? Ao longo da história da China, justamente por seu gosto em observar a natureza, muitas inovações técnicas foram desenvolvidas por taoistas. Aqui, basta pensar nos desenvolvimentos significativos no campo da medicina chinesa, uma das tradições médicas mundiais reconhecidas pela OMS. Ou seja, o respeito à natureza não está em contradição com o desenvolvimento técnico. Por outro lado, não se trata de uma narrativa cosmológica do privilégio humano sobre os outros seres, como a que caracterizou a tradição judaico-cristã e seus desdobramentos na modernidade, não apenas em nações ocidentais, mas pelo mundo afora.

Foto de satélite dos incêndios na Amazônia visíveis do espaço em 13 de agosto. Fonte: Nasa Earth Observatory.

Num momento como o atual, em que a relação predatória com o meio ambiente chega a níveis trágicos e catastróficos, como é ilustrado pela crise climática global, pelas toneladas de plástico poluindo os oceanos e mais recentemente pelo incêndio devastador na floresta amazônica, é preciso questionar as bases dos modelos de desenvolvimento e de relação com a natureza que têm movido esse movimento coletivo insano e suicida nas sociedades globalizadas e, especificamente, em nosso país. O descaso com a vida do planeta, inclusive com as vidas humanas, movido por uma ganância irracional, produziu uma infraestrutura de exploração que funciona de forma automática na geração de lucro, sem limites éticos nem preocupação com danos e consequências, uma verdadeira máquina de autodestruição. O que está em jogo é o ar, a água, o solo, os animais e plantas que dividem o planeta conosco, nossa própria sobrevivência, ameaçada por um processo que trouxe consigo uma crescente desigualdade econômica. Recursos vitais que pertencem a todos os seres estão sendo esgotados e destruídos para o enriquecimento de poucos e a pobreza de muitos.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

Neste sentido, dar ouvidos a outras vozes, ao saber acumulado de outras civilizações pode justamente inspirar uma atitude existencial mais respeitosa e abrangente com o mundo natural do qual fazemos parte, sem uma oposição entre o mundo humano e a natureza. Foi justamente a suposição de uma supremacia humana que tem justificado moralmente a devastação do meio ambiente, a extinção de outras formas de vida, a perturbação do delicado equilíbrio entre os diversos seres. Não se trata de negar o desenvolvimento tecnológico, mas de orientá-lo desde uma perspectiva de cuidado com a vida, de harmonia com a paisagem, de solidariedade entre seres humanos, fazendo uso dos recursos de uma forma mais sensata, que atente às gerações futuras, a reverter os danos causados até o presente e a gerar formas de extrair os recursos necessários sem exaurir a Terra.

Aqui faço essa reflexão inspirado pelas gerações de contemplativos taoistas que observaram com admiração o Céu, a Terra e os dez mil seres, no seu funcionamento cíclico, e buscaram meios para habitar o cosmo em harmonia com o fluxo da vida. Mas do mesmo modo, podemos buscar inspiração na sabedoria tradicional dos povos da floresta em nosso próprio país, que travam uma dura batalha pela sobrevivência.

O Tao e o corpo contemporâneo

As preocupações com saúde e longevidade na civilização chinesa estão documentadas pelo menos desde o primeiro capítulo das Questões Simples (素問), livro que compõe o Clássico da Medicina Interna do Imperador Amarelo (黃帝內經): nele, Huangdi, o Imperador Amarelo, um dos soberanos míticos fundadores da civilização chinesa, pergunta ao seu conselheiro médico, Qibo, porque as pessoas no passado viviam até os cem anos com saúde enquanto “atualmente” (no terceiro milênio a.C.) vivem apenas algumas décadas e adoecem frequentemente. Desde os primórdios da tradição taoista, uma das expressões de um estado de equilíbrio com a natureza foi viver bem, o que inclui a saúde, vitalidade e longa vida. Talvez este seja um dos aspectos que permitiram esses conhecimentos terem um espaço no mundo contemporâneo globalizado. No entanto, aqui a preocupação com o corpo atingiu um novo patamar, uma verdadeira obsessão com a perfeição corporal…

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Obviamente, generalizações de larga escala falam mais de uma norma ou prática cultural, ou de uma tendência sistêmica que pode ser percebida e descrita. É uma estratégia útil para perceber certos fenômenos, mas não esgota as particularidades e contradições concretas do mundo.

“Decay”, foto de Julia Wang , licenciada para uso público por Creative Commons, CC BY-NC 4.0

Ainda assim, o que se pode concluir de diversos estudos das ciências sociais sobre o tema do corpo nas sociedades globalizadas contemporâneas é a emergência de uma nova “cultura somática” ou até mesmo uma espécie de “corpolatria”. Embora a justificativa seja a saúde, o que está em jogo é a boa forma, ou seja o valor da aparência corporal em conformidade com certos ideais estéticos quase inalcançáveis, como um indicador do caráter do sujeito. O “corpo perfeito”(sic.) se torna um objetivo em si, a ser alcançado por meio de uma combinação de fitness, dieta, recursos farmacológicos e modificações cirúrgicas. E, claro, a exibição dessas conquistas nas redes sociais, por meio de imagens digitalmente corrigidas. Nesse sentido, essa norma corporal é a contraparte da subjetividade contemporânea descrita na postagem anterior, marcada pelas mesmas angústias em torno da visibilidade.

Detalhe de pintura em papel, da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Na contracorrente disso, o corpo na tradição taoista não tem valor como base para uma identidade pessoal, porque essa é vista como fonte de preocupação e desgaste. Em vez disso, cultiva-se o corpo como um “pequeno universo”: suas estruturas e as substâncias que o compõem são as mesmas do mundo. Assim, o cultivo visa colocar-nos em harmonia com o Tao, com a natureza. E disso decorre a saúde e a longevidade. Os cinco movimentos (fogo, água, madeira, metal e água) que compõem o corpo, estando em harmonia, são a base para um equilíbrio existencial. Esse equilíbrio facilita a prática contemplativa, mas também relações harmônicas com o mundo. Por isso, a civilização clássica chinesa entendia que uma pessoa sábia, apenas com sua presença, podia influenciar beneficamente os seres à sua volta. O Clássico da Pureza e da Serenidade (清靜經) diz: “embora se fale em realizar o Tao, não há nada a atingir. Simplesmente os seres começam a se transformar por si mesmos”.