Benefícios da prática em detalhes: 4. respirar melhor

Na postagem de hoje dessa série, o tema é a respiração. Respirar faz parte do fluir fundamental da vida, como tantos outros ritmos e pulsações indispensáveis à existência corporal, expressões da alternância de yin e yang no nosso microcosmo pessoal. A qualidade da respiração está diretamente relacionada à saúde e disposição vital, consequentemente à longevidade, mas também ao nosso equilíbrio emocional. Um respiração curta, entrecortada e superficial está associada não apenas a baixa vitalidade e mesmo a certos processos de adoecimento, como também correspondente a estados de agitação mental e angústia.

Ainda que, nas linhagens taoistas que pratico, a transmissão oral não descreve muitas formas de qigong e o próprio taijiquan como “exercícios respiratórios”, pois o cultivo do qi nem sempre está associado à troca gasosa, ambos têm um efeito benéfico sobre a respiração, por desenvolverem o hábito da respiração abdominal lenta, o que afeta positivamente a capacidade respiratória, a saúde cardiovascular, a regulação do sistema nervoso e o refinamento da percepção. Além disso, do ponto de vista tradicional, o fluxo harmônico do beneficia a circulação do sangue e propicia a autoregulação de todos os sistemas do corpo.

Referindo-me mais uma vez às pesquisas médicas sobre respiração e os benefícios do taijiquan e práticas análogas (como qigong), o Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard faz relações entre capacidade e saúde respiratória e expectativa de vida, bem como ressalta a diminuição potencial da função respiratória devido ao envelhecimento. Isso resulta de alterações na estrutura da caixa torácica, na diminuição da elasticidade do pulmões, ambos fatores contribuindo para redução da qualidade da troca gasosa. E, em todas as idades, alterações emocionais e estresse podem impactar negativamente na qualidade da respiração.

Além disso, a mesma fonte explica de que modo esses exercícios chineses podem ser benéficos para a respiração. O aspecto fundamental é que o padrão respiratório que se transforma em hábito por meio da prática regular desses exercícios é a respiração abdominal (com foco no dantian inferior) lenta e suave, favorecida pelo ritmo dos exercícios executados com consciência e pelo uso da imaginação associada à respiração. Além da troca gasosa, a respiração também massageia os órgãos internos e equilibra o sistema nervoso e consequentemente as emoções. Pesquisas médicas citadas pelos autores sugerem que a prática de Taiji melhora e retarda perdas da função respiratória, inclusive sendo benéfica no tratamento de doenças respiratórias como asma e doença pulmonar obstrutiva crônica. O aspecto meditativo da prática é eficiente na redução do estresse, no aumento do relaxamento e em promover melhorias no humor.

Benefícios da Prática em Detalhes: 3. cuidar do coração

Nessa nova postagem da série, damos continuidade ao detalhamento de alguns dos inúmeros benefícios da prática. E dessa vez o assunto é o coração. Na medicina tradicional chinesa, o coração é descrito como o “monarca” dentre os órgãos e vísceras, e a sede da consciência, ou termos chineses do shén (神). Dada a sua importância, um dito taoista afirma que “todas as doenças se iniciam no coração”, recomendando cautela diante de qualquer desequilíbrio que atinja esse órgão, seja por fatores externos, por desequilíbrio do do demais órgãos, por alimentação inadequada ou por desequilíbrios emocionais.

De modo análogo, o Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard ressalta que, além das suas óbvias funções relativas à circulação sanguínea, a medicina ocidental tem também reconhecido as relações do coração com o sistema nervoso, endócrino e imunológico. Não é por acaso que os problemas cardiovasculares sejam uma das maiores causas de doença e morte em escala mundial. E disso decorre a recomendação que se adote um estilo de vida favorável à saúde cardiovascular, prevenindo fatores de risco como hipertensão, colesterol alto, estresse, etc. A mesma fonte aponta o taiji (e podemos acrescentar, mais uma vez, exercícios com princípios similares, como o qigong de longevidade) como uma eficaz forma não medicamentosa de prevenção e reabilitação de doenças cardiovasculares, por combinar exercício, redução de estresse, equilíbrio emocional, capacidade respiratória e por sua prática coletiva proporcionar um espaço de convívio social. E menciona várias pesquisa médicas que corroboram essas afirmações.

Resumindo os argumentos, há alguns aspectos notáveis: 1) o taiji (e o qigong) é uma forma segura de exercício aeróbico, cuja intensidade (dependendo do ritmo e das posturas) é adaptável a praticantes com diferentes níveis de condicionamento físico (do paciente de cardiopatia ao atleta); executado de forma moderada, seu impacto comparável a uma caminhada. 2) por suas qualidades meditativas, o exercício reduz o estresse, a depressão e a ocorrência de explosões de raiva, pois tem um efeito regulador do humor e das emoções. 3) a respiração profunda característica do exercício favorece a atividade conjunta do coração e dos pulmões, bem como contribui para reduzir a pressão arterial, melhorar a circulação e acalmar.

Benefícios da Prática em detalhes: 2. redução de dores e desconfortos

Dando continuidade a série dos benefícios da prática, a postagem de hoje aborda seu efeito sobre dores e desconfortos. Do ponto de vista da medicina chinesa, a dor e diversos tipos de desconforto corporal estão associadas à estagnação e ao bloqueio da livre circulação de e sangue. Tais bloqueios podem ser causados por traumatismos e lesões, mas também por fatores climáticos, alimentação inadequada e desequilíbrios emocionais. Dentre os diversos métodos tradicionais (acupuntura, moxabustão, ventosaterapia, guasha, massagem, etc.) utilizados para aliviar o problema, estão os exercícios terapêuticos, como taijiquan e qigong, por sua notória capacidade de incrementar a boa circulação, a quantidade e qualidade de , um aspecto importante para manter a saúde, segundo a medicina chinesa.

O Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard menciona pesquisas na área médica que reforçam a ideia que movimentos podem ser um tratamento eficaz indicado para dor, inclusive em casos crônicos. Particularmente movimentos suaves, como os dos exercícios terapêuticos chineses ou do yoga indiano, por aumentarem a força, a flexibilidade, melhorarem o alinhamento, a respiração e produzirem bem estar. A mesma fonte afirma que a dor é um dos motivos mais frequentes para se buscar médicos e a maior razão para uso de medicamentos. Enquanto a dor aguda é um recurso evolutivo para proteger a integridade do organismo, a dor crônica é disfuncional, mais difícil de explicar e de tratar do ponto de vista da medicina ocidental convencional. Resumindo uma discussão complexa, digamos que as dores crônicas podem resultar de uma combinação de lesão, inflamação, hipersensibilidade de certas áreas do corpo e enrijecimento do tecido conjuntivo, além de componentes psicossomáticos. Embora analgésicos possam aliviar a dor, podem também ter efeitos colaterais desagradáveis, além de não tratarem a causa da dor.

O alongamento e fortalecimento dos tecidos, combinados à melhoria da circulação no local doloroso são alguns dos benefícios dos movimentos lentos e suaves dos exercícios citados acima, além de melhorar a respiração e o estado de humor. O cultivo do alinhamento postural e consciência do peso, o princípio de abrir a articulação do quadril (kuà 胯), o alinhamento dos pés, o princípio de “não forçar”, o movimento coordenado a partir do centro de gravidade do corpo – característicos do tajiquan e do qigong de longevidade -, tudo isso pode prevenir o desgaste das articulações e fortalecer os músculos e tendões sem expor esses tecidos a lesões por esforço excessivo ou movimento abrupto. A respiração abdominal tem efeito relaxante, além de melhorar a circulação. Além disso, o aspecto meditativo da prática tem um efeito de redução de estresse favorável à redução da dor.

Em particular, no caso de nossa linhagem, ainda que todo treino de movimento de seu repertório tenha benefícios globais semelhantes, além do taijiquan e das diversas formas de qigong, destaco também os “Exercícios para a Flexibilização das Nove Dobras” e “As Oito Formas para Alongamento dos Tendões”, da transmissão do mestre Liu Pailin, como exercícios destinados ao público em geral para recuperar a flexibilidade dos tendões e músculos, bem como a mobilidade das articulações, eficientes na remoção de bloqueios e limitações de movimento, ao mesmo tempo simples e de fácil execução.

Benefícios da prática em detalhes: 1. Equilíbrio

A postagem de hoje inaugura uma nova série, na qual os benefícios da prática de qigong e taijiquan serão tratados em mais detalhes. O primeiro ponto a ser tratado é a questão do equilíbrio. Um aspecto central do aprendizado das práticas chinesas de longevidade é o refinamento da consciência corporal. E um de seus aspectos é a consciência da postura, do alinhamento e da distribuição de peso do corpo. A capacidade de manter o equilíbrio é fundamental para a saúde, mas também pode ser vista até mesmo como um fator de sobrevivência, visto que quedas podem causar lesões graves, especialmente fraturas. E a gravidade de suas consequências aumenta com a idade justamente porque o envelhecimento muitas vezes traz consigo simultaneamente uma redução das habilidades motoras e o enfraquecimento de ossos e articulações.

O Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard indica os benefícios da prática do Taiji tanto para melhorar o equilíbrio como a densidade óssea, mencionando várias pesquisas na área médica. Os autores do livro elencam quatro componentes do equilíbrio: 1) a força e flexibilidade do sistema músculoesquelético; 2) a precisão da ação combinada de visão, propriocepção e do ouvido interno na percepção da posição do corpo e das condições do ambiente circundante; 3) a sinergia neuromuscular; 4) os processos cognitivos necessários a manter o equilíbrio, prever situações perigosas, coordenar atividades motoras simultâneas e reagir a situações de desequilíbrio. Todos esses fatores tendem a declinar em pessoas idosas e podem ser trabalhados pela prática regular do Taiji e técnicas afins.

O Taijiquan e outras artes marciais internas, bem como formas de qigong de longevidade que seguem os mesmos princípios motores e posturais – movimento lento, circular e suave, consciência do eixo e do centro de gravidade – podem ser uma excelente solução para os problemas de equilíbrio, ao fortalecer as pernas, aumentar a flexibilidade, cultivar o alinhamento postural. Os movimentos em “câmera lenta”, característicos dessas formas de exercício, tanto fortalecem a musculatura de modo gradual, como desenvolvem a consciência postural e a sensibilidade visual e tátil às condições do ambiente. Ao que parece, a prática continuada melhora a organização sensorial, o controle do equilíbrio, a coordenação motora e a capacidade de se recuperar de um desequilíbrio. Além disso, a redução geral da ansiedade e o aumento da autoconfiança com relação à própria destreza também têm um efeito benéfico sobre o equilíbrio.

O hábito de relaxar (fàngsōng 放鬆) que se desenvolve na prática tem um sentido bem específico. Diferente de simplesmente deixar o corpo mole e sem tônus, significa soltar o peso para baixo, descer o centro de gravidade, “sedimentar”, “enraizar-se”, ao mesmo tempo mantendo o alinhamento vertical e cultivando a consciência do terreno sob as solas dos pés. Essa é uma metáfora antropomórfica bastante eficaz: cultivar o corpo centrado e alinhado tem também um efeito existencial.

Modo de vida taoista: 13. harmonia com a natureza

Na postagem de hoje continuamos a desenvolver a temática do modo de vida taoista. É comum na tradição taoista o elogio ao estado natural ou a valorização da natureza, seja nas suas expressões artísticas, seja nos textos clássicos. Mas o que significa isso?

Pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor, setembro de 2018.

Como qualquer pessoa com alguma sensibilidade antropológica já deve ter se dado conta, não é possível saber o que é a natureza “em si”, mas essa compreensão é sempre mediada por artefatos culturais. Assim, em vez de opor natureza a cultura ou sociedade, prefiro pensar em termos de naturezas-culturas, como propõe Bruno Latour.

No caso, como os antigos chineses perceberam o que, em línguas ocidentais, traduziríamos por natureza, percepção essa que está presente na tradição taoista? Ao menos na linhagem que pratico, a noção de natureza está diretamente relacionada ao que os Estudos Chineses chamam de “cosmologia Huang-Lao”, cujo fundamento é a combinação da filosofia yin/yang à teoria dos Cinco Movimentos (五行). A própria noção de Tao (道), ainda que impossível de descrever plenamente – pois tem a qualidade de “maravilha” (妙) e “mistério” (玄) conforme é dito no primeiro poema do Daodejing (道德經) – traz consigo uma sensação de movimento ordenado, cujos princípios podem ser apreendidos por observação direta, por contemplação, pelo cultivo de um modo corporificado de consciência e pelo estudo dos clássicos. Movimento circular, no microcosmo, e cíclico, no macrocosmo. A presença de padrões espiralados em inúmeras formas naturais, sejam os movimentos do ar ou da água, ou a própria estrutura dos seres vivos e seus padrões de movimento corporal. Movimento contínuo. Afinal, vida é, por definição, movimento, ainda que, de tão sutil, possa ser imperceptível a olho nu.

Então, em primeiro lugar, poderíamos dizer que harmonia com a natureza é desenvolver uma sensibilidade sutil a estes padrões. Isto é, sintonizar-se com o movimento do no universo, como o caso de 1 praticante experiente de qigong que desperta naturalmente de manhã cedo, sentido a ascensão do yang, quando o sol nasce e sua luz e calor banham a terra, nutrindo as plantas e despertando os animais de hábitos diurnos. Além da sensibilidade aos horários do dia, poderíamos incluir também às fases da lua, às estações do ano, às condições climáticas, etc. No princípio, é uma sensibilidade fabricada: tentamos prestar atenção deliberadamente a esses fenômenos e inclusive ajustar nossos treinamentos e demais atividades a eles. Mas com o tempo, torna-se uma percepção intuitiva aliada a uma resposta espontânea de autorregulação em relação a essas circunstâncias.


pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Mas um outro sentido do “natural” refere-se a um estado que combina plena atenção e relaxamento, que proporciona um senso de ação sem esforço, acompanhada da sutil alegria de abrir mão de toda tensão desnecessária. Paradoxalmente essa condição de espontaneidade e naturalidade, que nada tem a ver com a ação impulsiva movida por um condicionamento, é um tipo particular de liberdade que resulta de um longo período de treinamento, no qual nos dedicamos a aprender a relaxar e fluir.

Modo de vida taoista: 12. mínimo esforço = máxima eficiência

Na postagem dessa semana, damos continuidade aos temas do modo de vida taoista. Se é importante reduzir o esforço desnecessário e aprender a relaxar, isso não se confunde com uma espécie de elogio à preguiça nem com a suposição equivocada de que o universo irá prover tudo sem que se tome as medidas necessárias. Obviamente, dentre as medidas necessárias, podemos incluir a paciência, para agir apenas no momento certo. E a sensibilidade para perceber o que fazer e como fazer. Essa decisão depende de uma capacidade de sentir o potencial da situação e agir com precisão sobre as forças que se direcionam a um determinado resultado. Não se trata de uma decisão tão calculista e deliberada, mas de uma sintonia com o momento presente, que não necessita de um autor da ação, alguém que se identifica com o resultado. Mas ao contrário, que age como se ninguém estivesse fazendo nada em especial.

A ideia é de um estilo de ação que busca os espaços de mínima resistência. Zhuangzi (莊子) utiliza a imagem magistral do cozinheiro do príncipe Wen Hui, destrinchando a carne de um boi. Ao cortar exatamente “na linha natural”, “no espaço oculto”, “como uma brisa”, o fio da lâmina não se desgasta. Do mesmo modo, o elogio de Laozi (老子) à água nos poemas 8 e 78 do Daodejing (道德經) refere-se justamente à sua suavidade e capacidade de adaptar-se, fluir, preencher os espaços vazios, uma excelente metáfora da ação em conformidade com o Tao.

O paradoxo dessa ação eficaz e aparentemente sem qualquer esforço, é que resulta, para imensa maioria das pessoas, de um aprendizado longo, de treinamento constante. Aprendemos o Tao por meio da constância. O ideograma de mesmo nome ䷟, composto pelo trovão (☳) acima e o vento (☴) abaixo, representa o movimento incessante, uma combinação de iniciativa externa e suavidade interna, entre outras possibilidades de interpretação. Pela prática repetida e pelo desenvolvimento gradual, é possível chegar a um nível de maestria que não é o da virtuose, mas sim o da não ação (無為).


Modo de Vida Taoista: 11. Reduzir todo esforço desnecessário

A postagem de hoje retoma a série dedicada ao modo de vida taoista. Em tempos de exaustão coletiva, o princípio taoista da não ação, ao mesmo tempo pode soar absurdo e servir como um lembrete útil sobre outras possibilidades de existência e subjetividade.

lagoa de carpas, com um símbolo do Tao, nas montanhas de Yilan, Taiwan.

Uma instrução básica da transmissão do mestre Liu Pailin era: “não forçar”. Isso se aplica, em primeiro lugar, à prática regular dos treinamentos taoistas que, ao contrário da cultura fitness, não pressupõem que a dor é o requisito para o resultado. Mas também é um princípio válido para uma atitude existencial geral. Essa recomendação simples expressa a confiança no desenvolvimento gradual e contínuo, sem necessidade de rupturas abruptas e superação de limites por meio da luta.

De fato, na maioria de nossas atividades cotidianas, relações e projetos, aplicamos mais força que o necessário. No nível mais óbvio, observe quanta tensão muscular é aplicada em movimentos simples que podem ser feitos de forma mais econômica e eficaz se aprendemos a relaxar enquanto nos movemos e utilizar apenas a força necessária. Experimente prestar atenção em quanta força e tensão utiliza para escovar os dentes, girar uma maçaneta, preparar um alimento, lavar louça, subir uma escada, segurar o volante do carro, digitar ou qualquer outra tarefa cotidiana. Ao praticar taijiquan ou o abraço da árvore (zhanzhuang), aprendemos a relaxar os músculos ao mesmo tempo em que mantemos a postura, o alinhamento do corpo e nos movimentamos de forma harmônica. O que é aprendido pelo corpo nas sessões formais de treinamento, com o tempo pode ser transferido para as atividades diárias. Nosso treinamento se expressa em uma graciosidade corporal natural.

O excesso de esforço desnecessário fica óbvio no movimento corporal, mas pode ser descoberto também quando examinamos a nossa vida mental. Como é cansativo ficar pensando intensamente, sem parar, mesmo quando não há nenhum problema urgente que exija nossa atenção. E como é exaustivo ser arrastado por emoções tão intensas que levam a ações sem lucidez que nos geram arrependimento. Por isso, as práticas taoistas combinam movimento e serenidade, serenidade ao se mover, e movimento interno ao ficar imóvel. Como a inquietude do coração é a base para todo tipo de doença, aprender a serenar, a manter o coração tranquilo em todas as circunstâncias, não é apenas parte de uma prática meditativa ou de um caminho de vida, mas tem indiscutíveis efeitos para a saúde. Nas frenéticas realidades urbanas contemporâneas, pouca gente pode entender o valor do silêncio, da quietude, do repouso, mas principalmente do silêncio interno.

Por do sol na Serra dos Pirineus, foto do autor.

Mas não se trata de um silêncio artificial, que nega as experiências ou deseja congelar a consciência numa quietude forçada, que é como uma anestesia. Em nosso corpo e em toda a natureza, vida é movimento incessante. E nas consciências, vida é percepção incessante. O segredo é aprender ficar ao mesmo tempo atentx e relaxadx. Assim é possível perceber os espaços vazios entre os objetos, as pausas entre os movimentos, os silêncios entre os sons. Esse é um dos sentidos da experiência da vacuidade.

Justamente, como expliquei anteriormente, o wuwei não se refere a não fazer, mas sim ao fazer com o máximo de eficiência e o mínimo de esforço. Contudo, esse fazer eficaz depende da capacidade de se desfazer de um senso de autoria, de alguém que faz, e de permanecer “vazio”, no sentido de uma receptividade altamente adaptável. Quanto maior a sintonia com as circunstâncias, quanto mais fluidez e adaptabilidade, menos esforço é necessário para realizar uma tarefa e chegar a um resultado favorável. E, embora seja um princípio, é menos algo que se decide por em prática deliberadamente, do que a consequência ostensiva do resultado de um sistema de práticas que transforma o corpo e a subjetividade.

Como avaliar se a prática está sendo bem sucedida?

Na postagem de hoje, algumas considerações pragmáticas sobre os treinamentos taoistas. Anteriormente, já havia compartilhado algumas considerações sobre como praticar. Desta vez, a pergunta central é: quais os parâmetros para avaliar nosso desenvolvimento no caminho?

Um breve passo a passo, baseado na minha experiência pessoal, para iniciar as práticas taoistas com sucesso: 1) identifique uma escola/linhagem séria com a qual sinta afinidade; 2) localize 1 professor/a devidamente qualificado/a em quem confie; 3) organize sua rotina pessoal para que nela caibam momentos regulares de prática, de preferência além do horário da aula, e idealmente todos os dias; 4) regule a intensidade da prática, inclusive a duração das sessões, de acordo com uma avaliação realista de suas próprias necessidades e capacidades; 5) confie no desenvolvimento gradual por meio da prática continuada; 6) uma atitude perseverante, mas tranquila e despretensiosa, é mais produtiva do que o esforço excessivo e a ambição.

Os resultados da prática não se obtém do dia para a noite. Lembre que praticar o Tao é seguir um caminho, ou melhor, o caminho natural. Suas características são suavidade, circularidade e continuidade. Estamos em busca de aprender a manter-nos no fluxo, adaptando-nos habilmente às circunstâncias. Não é à toa que muitas, talvez a maioria, das práticas taoistas de longevidade e saúde, são também práticas de serenidade, possuindo uma qualidade meditativa. Ao treinar não apenas cultivamos o corpo, mas, por meio dele, aprendemos uma atitude existencial em consonância com o Tao. Com o tempo, há uma graciosidade e fluidez corporal que são a expressão ostensiva de uma leveza existencial.

O que estamos aprendendo? A primeira coisa é aprender a relaxar, reduzindo todo o esforço e tensão desnecessária à realização de uma determinada atividade. Relaxar é, em teoria simples, porque tem mais relação com não fazer, ou fazer menos. No entanto, exige uma prática persistente para que se torne um hábito ao mesmo tempo corporal e subjetivo. A não ação (wuwei) taoista não é o mesmo que passividade, ou inação, mas sim um estilo de agir que, de tão sintonizado com as circunstâncias, dá a impressão que nada foi feito, mas ainda assim, ocorreu o que a situação pedia.

Também estamos cultivando nosso eixo e nosso centro, num sentido cinestésico, de consciência do movimento corporal. Ao mesmo tempo, existencialmente, aprendemos a nos manter centrados/as e alinhados/as.

Então, proponho algumas perguntas que podem servir como critérios iniciais para avaliar nosso desenvolvimento na prática: 1) como está nossa consciência corporal, de peso, eixo, alinhamento e centro? 2) Que grau de relaxamento conseguimos acessar, tanto nas situações formais de treinamento, como numa aula de qigong ou taijiquan, por exemplo, mas também no nosso cotidiano? 3) Como respondemos a situações estressantes e por quanto tempo continuamos em estado de tensão após a situação ter passado? 4) A intensidade das nossas emoções tira nosso sossego, lucidez e equilíbrio? 5) Como lidamos com os contatos com outras pessoas?

Obviamente, se a motivação inicial para praticar os treinamentos taoistas foi uma questão de saúde, uma maneira fácil de avaliar seu progresso é comparar sua condição de saúde antes de começar a praticar, e como evoluiu com o passar do tempo, com treinamento regular. Observe, por exemplo, como está seu equilíbrio, flexibilidade, digestão, respiração, humor, qualidade do sono e se houve melhora em algum problema crônico de saúde, como uma alergia ou a tendência a ficar resfriado/a.

O Tao é indefinível. Mas como definir o Taoismo?

Definir o Tao é uma tarefa ingrata. No primeiro poema do Daodejing (道德經), Laozi alerta que o Grande Tao não pode ser nomeado. Qualquer praticante taoista sabe que o Tao é algo que se desvela por meio da experiência meditativa e da contemplação, não algo de ordem conceitual, que pode ser devidamente descrito com o intelecto. Mas e o taoismo?

Detalhe da fachada de um dos templos taoista no complexo de Zhinangong, Taipei. (Foto do autor)

Esse é o tema da postagem de hoje. Em primeiro lugar, uma maneira comum de tratar o tema é situar o taoismo dentre as grandes religiões mundiais, mencionada em qualquer dicionário de religiões ou tratado de história das religiões. A sinóloga Livia Kohn (2001, p. 1) o descreveu como “religião autóctone organizada da China tradicional”. Possivelmente, suas origens remontam a um desenvolvimento filosófico de formas locais de xamanismo, como apontou Toshihiko Izutsu. Quanto à oposição comum entre taoismo filosófico e religioso, outra sinóloga, Isabelle Robinet, considera a distinção insignificante. Além disso, ambas concordam com o fato básico que o taoismo nunca foi uma religião unificada. Em vez disso, consistiu em uma combinação de ensinamentos, que só pode ser compreendida por meio de suas manifestações concretas. E por outro lado, tanto para Robinet, quanto para outro autor, Kristopher Schipper, não se deve confundir o taoismo com a religiosidade popular chinesa. É importante também lembrar, que a noção de religião é eminentemente ocidental, e foi aplicada a aspectos de outras culturas. Em geral, ao definir taoismo como religião, se leva em consideração a existência de templos, de instituições sociais, que contêm uma hierarquia sacerdotal, os aspectos de sua cosmologia que dizem respeito ao sentido da vida, suas concepções sobre a morte e o pós-morte, divindades e outros seres espirituais com os quais se interage, bem como rituais que abordam estas temáticas e tecnologias contemplativas.

No entanto, em função da própria diversidade interna, nem toda escola ou linhagem taoista apresenta essas características. E além disso, há diversos outros saberes e práticas que se desenvolveram no contexto do taoismo e que não seriam descritas adequadamente como propriamente religiosos: artes marciais, práticas de longevidade, os diversos ramos da medicina chinesa, geomancia, caligrafia, pintura, música, astrologia, etc.

Uma outra possibilidade seria descrever o taoismo como uma tradição, inclusive como uma tradição contemplativa, diante da profusão de métodos meditativos centrais para várias de suas linhagens. No entanto, para isso, seria preciso, primeiro, elucidar, que significa tradição. Aqui, refiro-me simplesmente a uma transmissão cultural intergeracional de longa duração. E, no caso do taoismo, especificamente, um produto da civilização chinesa, que se tornou no século XX um patrimônio da humanidade. É importante frisar aqui, que não se trata de um conhecimento ancestral imutável. Seria um erro grave retirar o taoismo – ou qualquer outro fenômeno queiramos chamar de tradição – do fluxo da história. Todo conhecimento cultural vivo é sujeito, por sua própria natureza, à mudança, à releitura e à inovação, mesmo que o passado seja tratado com reverência. Aliás, o que torna algo um clássico é justamente a riqueza de sentido que permite novas releituras. Outro aspecto de igual relevância, é afastar-nos do uso do termo tradição como forma para legitimar o imaginário conservador. Não é o caso de idealizar o passado, na contramão da compreensão aprofundada de suas condições históricas. Uma tradição não é uma essência, mas sim um fluxo, com determinadas características que permitem perceber algumas continuidades em meio às descontinuidades.

Acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.

Que há de fundamental no taoismo? A noção de Tao (道), que aponta discretamente para o grande mistério da vida, com um certo senso de ordem e fluidez, mas que resiste às tentativas de descrevê-lo em palavras e categorizá-lo. Pode apenas ser indicado alusivamente, por exemplo, por meio do símbolo do taiji ☯, a mais sintética imagem do caráter dinâmico, complementar, cíclico de todos os processos da existência. Talvez a mais genial criação da civilização chinesa, a intuição de base que está por trás de inúmeras das suas grandes realizações. Toda a lógica do Yijing ou mesmo dos cinco movimentos, a base da medicina chinesa, derivam dessa primeira intuição.

Respeitando a diversidade de linhagens e escolas, prefiro concluir com algumas ponderações derivadas da minha própria experiência, como estudioso e praticante da escola que mestre Liu Pailin fundou no Brasil, e como discípulo da linhagem Kunlun. No período em que viveu no Brasil, mestre Pailin fez questão de frisar que seus ensinamentos se referiam ao conhecimento da natureza, à compreensão do funcionamento do Céu e da Terra e de suas implicações na vida humana. Transmitiu práticas de longevidade, terapêuticas da medicina chinesa e métodos de meditação que representam uma síntese das várias linhagens que conheceu e praticou. Nesse sentido, o que ofereceu a seus discípulos e discípulas foi o que chamava de um Caminho de Vida, que incluia a dimensão da espiritualidade, mas não à maneira de uma religião formal, nem ao menos do taoismo de tipo sacerdotal e/ou monástico.

A Eficácia dos Treinamentos: 3. uma explicação com base na medicina convencional

Nesta terceira postagem da série, examinaremos as contribuições das pesquisas da ciência médica convencional, que têm indicado benefícios dos treinamentos que são concretos, mensuráveis e explicáveis em termos do conhecimento científico moderno.

Pesquisas experimentais, que podem ser localizadas nas plataformas de divulgação de periódicos científicos, mas também em alguns livros recentes, têm demonstrado vários benefícios da prática regular de qigong, taijiquan e exercícios similares. Em particular, por sua uma obra recente acessível em português, recomendo o Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard (cujo capítulo 1 está disponível nesse link), que sintetiza o resultado de várias pesquisas, disponíveis na literatura científica especializada.

Mais uma ilustração do Baduanjin, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.

Esse tipo de exercício tradicional chinês tem várias vantagens: podem ser praticados durante toda a vida por pessoas de qualquer faixa etária e diferentes condições de saúde; são um recurso barato para a promoção da saúde, prevenção e tratamento de várias doenças; tem um efeito psicossomático; apesar de serem de baixo impacto, trabalham força, flexibilidade, resistência, coordenação motora e capacidade cardiorrespiratória.

Resumo abaixo as conclusões da revisão literatura médica acerca dos benefícios da prática regular, elaborada na segunda parte no Guia do Tai Chi.

É sabido que o risco de quedas, e das fraturas decorrentes delas, aumenta com a idade. Um dos primeiros benefícios da prática regular de taijiquan e qigong é o aumento do equilíbrio, ou seja da estabilidade postural, com consequente diminuição da ocorrência de quedas. Isso se deve a esses exercícios beneficiarem o sistema musculoesquelético, por meio da transferência de peso, mantendo sua força e flexibilidade, especialmente dos membros inferiores, bem como pela ênfase no alinhamento vertical. Além disso, com seu ritmo lento e contínuo, desenvolve a capacidade de propriocepção e a orientação espacial, contribuindo para uma melhor organização sensorial. Por sua diversidade de movimentos, melhora a coordenação dos padrões neuromusculares, o que favorece uma caminhada mais estável e permite uma melhor recuperação de escorregões e tropeços. Ao diminuir a ansiedade e o medo de cair, a prática também favorece os processos cognitivos associados ao equilíbrio.

Além disso, outro benefício é a prevenção da perda de densidade óssea, decorrente do envelhecimento e, no caso das mulheres, da menopausa, até mesmo o aumento da massa óssea com a prática prolongada desses exercícios, que por serem de baixo impacto, podem ser praticados inclusive por pessoas com baixo condicionamento físico e quadros de osteopenia e osteoporose.

Outro aspecto notável da prática é a redução de dores e desconfortos, sejam eles decorrentes de tensão muscular, sejam o efeito de doenças e lesões articulares, ou mesmo casos de dor crônica. Os exercícios suaves alongam e fortalecem os tecidos, além de melhorarem a circulação. O alinhamento postural previne o desgaste das articulações, bem como evita a sobrecarga muscular decorrente do corpo desalinhado. O princípio de “não forçar” ao se exercitar previne lesões. Isso sem falar, dos benefícios psicológicos da prática decorrentes de seu aspecto meditativo, e do apoio social que advém do treinamento coletivo.

Há ainda benefícios cardiorrespiratórios notáveis. A prática regular é um exercício aeróbico seguro, que fortalece o coração, desenvolve a respiração abdominal suave, melhora a oxigenação e a circulação, bem como tem bons resultados na prevenção e recuperação de doenças cardiovasculares.

Por fim, sendo uma atividade meditativa por excelência, o taijiquan (assim como o qigong) é eficaz na redução do estresse, desenvolve a atenção, reduz a ansiedade e a depressão, estabiliza o humor e melhora a qualidade do sono. Por fim, estimula positivamente a neuroplasticidade, mantendo a vivacidade e a lucidez mental até uma idade avançada.

Liu Pailin (1907-2000)

Contudo, mais do que as evidências científicas, o que mais me inspirou a praticar foi o exemplo vivo dos mestres. Tive o privilégio de conhecer o famoso mestre Liu Pailin nos seus últimos anos de vida. Ele transbordava vitalidade com mais de 90 anos de idade. Idoso, mas sem sinais de decrepitude: a pele lisa, os músculos firmes, os olhos brilhantes de inteligência viva e perspicácia, o corpo flexível, um homem cheio de alegria de viver. Enfim, a prova viva dos benefícios do taiji e do qigong.