A Eficácia dos Treinamentos: 2. uma explicação fenomenológica

Na postagem de hoje, como na anterior, continuo a discussão sobre a eficácia dos treinamentos taoistas, só que dessa vez, desde uma outra chave de leitura: uma fenomenologia cultural da corporeidade.

Evitando uma longa e difícil discussão teórica que não é relevante para @ leitor não especialista, refiro-me aqui a um posicionamento que leva em conta o corpo como sujeito da cultura, considerando a experiência sensóriomotora e afetiva a base de nossa existência. É a capacidade de movimento próprio, percepção e afeto, aliada a um ajuste existencial ao ambiente circundante que torna possível toda a vida animada. E neste contexto, a experiência sensível precede a linguagem e o intelecto, tanto do ponto de vista lógico quanto cronológico/evolutivo.

Flechar o Ganso Selvagem, mais um exercício da famosa série Baduanjing. Foto do autor, setembro de 2018, da ilustração do século XIX, acervo do National Palace Museum, Taipei.

A hipótese de que por meio da experiência corporal podemos acessar um domínio da vida que antecede a linguagem e o intelecto é compatível com as práticas corporais taoistas utilizadas como meio para o cultivo de si. No caso, a pergunta seria: como exercícios lentos – caracterizados pela circularidade, pelo relaxamento, pela atenção ao eixo vertical e ao movimento que parte do centro de gravidade do corpo – podem promover uma transformação subjetiva, existencial?

Simplesmente pela criação e consolidação de novos hábitos posturais, motores e perceptivos, que tem um efeito global sobre o corpo. Como este não está separado da subjetividade, mas ambos compõem uma unidade, aprender novas técnicas corporais e criar novos hábitos pode ser uma das chaves para uma mudança subjetiva, existencial. Um aspecto fundamental aqui é o efeito do ritmo sobre a consciência. Uma maneira mais encarnada de entender uma cultura é como uma paisagem sensorial total que é marcada por seus próprios ritmos, texturas, sabores e cheiros.

Simplificando: no caso do mundo cultural taoista, treinando o hábito de manter o corpo relaxado e alinhado, de utilizar apenas a força necessária à execução de uma tarefa, de permanecer imóvel por longos períodos e de manter a atenção no centro de gravidade do corpo, de mover-se lentamente de forma circular, cultivamos, literalmente, um senso de centramento e equilíbrio existencial, refinamos nossa sensibilidade às circunstâncias do momento presente. O movimento em câmera lenta dos exercícios de qigong e taijiquan tem uma qualidade meditativa, que favorece a consciência do momento presente, por meio de uma apreensão direta, que dispensa as palavras e conceitos.


Imagem ilustrativa do exercício para o Triplo Aquecedor, da série Baduanjing. Foto ao autor, acervo do National Palace Museum, Taipei, setembro de 2018.

Esse retorno a uma consciência corporal pré-verbal, que percebe a postura e o movimento sem a necessidade de palavras, corresponde, em alguma medida, a um retorno à condição pré-natal. Assim, além de seus benefícios para a saúde, descritos em linguagem tradicional na postagem anterior, esses métodos ensinam uma atitude existencial caracterizada por um silêncio pleno de presença, de uma atenção relaxada, ao mesmo tempo a base da meditação e o efeito de sua prática prolongada.

A Eficácia dos Treinamentos: 1. uma explicação com base na tradição

Nessa postagem e na próxima, dedico-me à responder a seguinte pergunta: por que milhões de pessoas, durante incontáveis gerações na China e atualmente em vários países no mundo contemporâneo, praticam os treinamentos taoistas? A primeira parte da resposta é: por sua comprovada eficácia no cultivo da vida e da saúde, bem como no desenvolvimento de certas habilidades.


Baduanjing, ou os Oito Panos de Seda, famosa série de exercícios tradicionais para a saúde. Ilustração do século XIX, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor.

Portanto, não se trata de uma questão de crença, mas sim de experiência acumulada, acessível a quem pratica com seriedade. Tampouco se trata apenas de comprovar por experiência própria. Os treinamentos se baseiam num conhecimento sofisticado do corpo, que tem como referência a teoria médica chinesa e a cosmologia taoista.

Dito de uma maneira mais genérica, os diversos treinamentos são maneiras tradicionais para cultivar um equilíbrio dinâmico, no próprio corpo, entre yin e yang que, unidos em harmonia, formam um Taiji ☯. Essa atividade de regulação é a própria ação do Tao, segundo o poema 77 do Daodejing (道德經):

O Caminho do Céu é como o retesar do arco

A parte superior abaixa, a parte inferior sobe

A parte que possui sobra é diminuída

A parte não suficiente é completada

E era nesse sentido que mestre Liu Pailin afirmava que ensinava os treinamentos do Taiji, não apenas do Taijiquan. Ohando para um panorama geral dos treinamentos de nossa linhagem, faço a seguinte lista de benefícios básicos, utilizando de forma livre o vocabulário tradicional chinês:

Outra da série de ilustrações do século XIX do Baduanjing, ou os Oito Panos de Seda. Acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor.
  • Eliminar o turvo, causador de doenças, resultante da invasão de fatores patogênicos externos, mas também acumulado em função da alimentação, de tensões e de emoções excessivas e turbulentas.
  • Captar o de fontes naturais (o sol, a lua, certas constelações, montanhas, cachoeiras, florestas, árvores ancestrais, rochedos, o mar) para suprir o do corpo
  • Flexibilizar tendões e articulações.
  • Remover os bloqueios que impedem a livre circulação de e sangue. E promover uma circulação abundante e suave.
  • Equilibrar os cinco movimentos (五行):metal, água, madeira, fogo, terra.
  • Tonificar a essência (精) e o (氣 ou 炁), regular o shén (神), o que proporciona ao mesmo tempo longevidade e serenidade.
  • Despertar a espiritualidade latente do ser humano.

A alquimia interna taoista possui um aforismo que descreve de forma mais sofisticada e hermética todo o caminho da prática, que vai da condição pós-natal de uma pessoa comum à condição pré-natal de um ser completamente iluminado, como um imortal (仙) da mais alta categoria:

Treinar o jīng (精) para gerar qì (氣 ou 炁); treinar o para gerar shén (神); treinar o shén para entrar na vacuidade; treinar a vacuidade para unir-se ao Tao (道)

Essa descrição sintética e cifrada, no entanto, transcende a prática comum, para a saúde, e refere-se ao cultivo como caminho de vida, uma situação mais rara e que depende de algumas condições especiais: a obtenção de ensinamentos autênticos, a ajuda de um/a professor/a qualificadx, a dedicação cotidiana à prática.

É possível ser taoista na cidade?

Vista do pôr do sol no templo Tiandao, setembro de 2018. À distância, se percebe a silhueta da cidade de Taipei. ( Foto do autor.)

A tradição taoista se tornou mundialmente famosa por seu elogio à natureza. Desenvolvida por contemplativos que se refugiaram em montanhas e florestas, recusando honrarias e cargos na burocracia imperial, em busca das condições ideais para cultivar o e a serenidade. As histórias exemplares de mestres e mestras que teriam atingido a condição de imortal, falam do abandono das ambições mundanas. Mas será que para praticar o Tao é indispensável sair da cidade e renunciar a uma vida comum?

Certamente, como dizia mestre Liu Pailin, é recomendável a prática periódica em um ambiente natural dotado de um abundante e de boa qualidade, daí a busca por locais com um bom fengshui (風水) para treinar, inclusive com condições específicas dependendo do tipo de treinamento praticado. As andanças de Wang Liping e seus mestres pelas montanhas e outros lugares sagrados da China, descritas por dois de seus discípulos em Opening the Dragon Gate, biografia de um mestre contemporâneo da linhagem taoista Longmen (龍門), ilustram muito bem a importância do contato com a natureza no treinamento taoista.

Pintura em seda representando imortais reunidos em uma caverna, National Palace Museum, Taipei, foto do autor.

Mas, ao contrário dessa condição privilegiada, se boa parte da população mundial vive em grandes cidades, e se mestres famosos como Liu Pailin escolheram viver nelas, deve haver maneiras de praticar o Caminho também em condições que não são as ideais. Uma solução parcial para quem não tem nem a inclinação nem a oportunidade para viver como eremita contemplativo nas montanhas é integrar a prática do Tao ao seu cotidiano urbano. Em muitas partes do mundo, onde há presença cultural chinesa, pode-se ver pessoas praticando qigong, taijiquan e outras artes marciais nos parques públicos das grandes cidades.

A dica é incluir na rotina diária momentos para praticar com constância um treinamento preferido ou recomendado, além de momentos para simplesmente relaxar, sem fazer nada especial. Após anos praticando diferentes métodos, cada qual com seu propósito específico, arrisco uma generalização: todos eles regulam o , ao mesmo tempo em que ensinam uma presença corporal no mundo, estar alerta e relaxado ao mesmo tempo. Combinando movimento suave e circular, a respiração natural e relaxamento dos músculos, aprendemos a mover o corpo com economia, fazendo apenas a força necessária ao movimento eficiente. Permanecendo de pé na “postura da árvore” ou sentadx em meditação silenciosa, aprendemos a serenar o coração, ao mesmo tempo que alinhamos a postura e fortalecemos o corpo de dentro para fora, e do invisível para o visível.

Além de eremitas contemplativxs, a história da tradição taoista conta também com praticantes que permaneceram nas vilas e cidades, em uma vida simples: cuidando de suas famílias, exercendo um ofício e cultivando o Tao sem chamar muita atenção para si. Embora seja mais frequente lembrarmos de especialistas nos diferentes ramos da medicina chinesa ou de artistas marciais, houve praticantes do Tao nos diferentes estratos sociais e exercendo os mais diversos ofícios, dos mais sofisticados aos mais modestos. E ainda hoje isso é assim. Em minhas andanças por Taiwan para estudar a linhagem Kunlun, também conheci irmãos e irmãs de treinamento das mais diversas profissões: empresários, massagistas, mecânicos, artesãos, herboristas, especialistas em fengshui, etc.

E assim continuam(os), sozinhxs ou em pequenos grupos. Não tanto como uma identidade social, mas mais como um caminho de vida. Com o desafio, para nós, pessoas complicadas do mundo contemporâneo, de viver uma vida pautada no amor, na simplicidade e em não desejar ser o primeiro. Movendo-se lentamente no fluxo acelerado da metrópole, saboreie as pequenas alegrias de cada momento; faça o que é necessário em cada situação, mas mantenha o coração sereno; contemple o movimento contínuo de yin e yang à sua volta, mas também em você mesmx.

Medicina Chinesa e Treinamentos Taoistas: 3. longevidade e imortalidade

Nessa nova postagem da série, abordaremos o interesse pela longa vida. Desde o seu texto fundante, a medicina chinesa indaga sobre o tema, como é testemunhado no primeiro capítulo do Suwen (素問), no Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huangdineijing 黃帝內經), que mencionamos previamente. Um aspecto compartilhado do conhecimento tradicional da medicina e dos treinamentos taoistas é como manter a harmonia com o Tao, de modo a viver uma vida longa e saudável. Obviamente, além dos fatores constitucionais hereditários, o modo de vida em consonância com os ritmos da natureza é uma estratégia clássica para chegar a esse objetivo. Mas também, como apontamos na postagem passada, a prática regular dos treinamentos para cultivar a vida.

foto do autor, pintura sobre seda, National Palace Museum, Taipei.

 Ao falar em imortalidade, um tema recorrente na religiosidade popular chinesa e na alquimia taoista, à primeira vista, pareceria que se trata de uma imagem que leva às últimas consequências a busca da longevidade associada à compreensão da natureza. Encarna também o ideal de vida de gerações de praticantes que se retiraram para as montanhas e se dedicaram a uma vida contemplativa, como indicado pelo caractere chinês para imortal, xiān (仙), que contém em sua composição o caractere montanha, shān (山). Neste sentido, a imortalidade poderia ser tomada como “metáfora ou epíteto da alma realizada” (Bizerril, 2007, p. 120).  Alguém que se torna imortal não apenas possui uma vida muito mais longa que a de uma pessoa comum, mas também uma série de outros atributos especiais, inclusive poderes extraordinários.

Num sentido mais elevado, um/a imortal é uma pessoa que se aperfeiçoou, desenvolvendo o seu pleno potencial. Além do cultivo do seu , obtiveram uma completa equanimidade, livres de  impaciência, orgulho ou preocupações. Por isso, é dito: “o verdadeiro Tao requer de nós que lidemos com o mundo real, mas o coração não se agita”. Em completa sintonia com os ritmos da natureza e com as circunstâncias, são capazes de agir com compaixão. Tendo aprendido a esquecer-se completamente de si, podem praticar a não-ação (wúwéi 無為), a ação eficaz sem esforço. Podem ser pessoas sábias renomadas ou viver em completo anonimato, beneficiando secretamente o mundo à sua volta.

Dentre as habilidades extraordinárias tradicionalmente atribuídas a imortais devido à sua maestria do Tao, podemos citar: capacidades de cura; poderes de exorcismo; controle das condições climáticas; faculdades divinatórias; comunicação com animais, espirítos e divindades; imunidade aos elementos; controle sobre o próprio corpo; multiplicação e materialização/desmaterialização do corpo; invisibilidade; voo, etc. como belamente descrito em uma sessão da antologia de textos taoistas organizada por Livia Kohn, The Taoist Experience.

foto do autor, detalhe de pintura representando imortais taoistas,  National Palace Museum, Taipei.

O primeiro capítulo do Zhonglüchuandaoji (鍾呂傳道集) texto clássico de alquimia interna taoista, traduzido para o português, que contém conversações entre os imortais Zhongli Quan e Lü Dongbin, afirma que: “Havendo nascimento, haverá morte” (p.38). No entanto,  no contexto de uma concepção de ciclo de mortes e renascimentos, tanto o tipo de renascimento quanto a existência pós-morte podem ser afetadas pelo cultivo, que permite atingir o estado de imortal. Mas o imortal Zhongli diz: “tornar-se imortal não é a meta final do cultivo de si mesmo”(p. 39). E apresenta uma tipologia dos imortais: imortais fantasmas, imortais humanos, imortais espirituais, imortais terrestres e imortais celestes. A forma inferior é @ imortal fantasma, alguém que tentou cultivar o Tao sem a compreensão correta, não são imortais propriamente dit@s, mas fantasmas cuja existência yin continua.  @s imortais human@s também possuem uma compreensão incompleta do Tao, praticando apenas um método inflexivelmente, mas obtiveram boa saúde e vida longa. @s imortais terrestres obtiveram um nível moderado de realização e podem viver no reino humano sem morrer. Já @s imortais espirituais continuaram o seu treinamento no reino terrestre e transformaram seu corpo humano em um corpo sutil. Continuam o seu cultivo e agem em benefício da humanidade até tornarem-se imortais celestes, que residem nos reinos celestiais.

Isso tudo  apenas  dá uma ideia  desse fascinante tema na cosmologia tradicional chinesa. Imortais são personagens que aparecem com frequência na literatura, nas artes visuais, na religiosidade popular e nos clássicos taoistas.

Medicina Chinesa e Treinamentos Taoistas: 2. pré-natal e pós-natal

foto do autor: pintura sobre leque, National Palace Museum, Tapei.

Nessa nova postagem da série, mais uma reflexão na fronteira entre os dois campos. Desta vez, com relação ao uso das concepções chave de pré-natal e pós-natal, utilizadas por ambos. Dito de uma forma simples, o pré-natal remete ao estado embrionário literal e metaforicamente, ao período anterior ao nascimento  no caso de um ser humano, ao momento anterior à manifestação, no caso do universo. Já o pós-natal remete à vida humana ordinária após o nascimento, com seus processos de crescimento, maturação, envelhecimento e morte. E também aos ciclos do mundo natural: dias e noites, fases da lua, estações, o movimento dos astros, etc. No contexto da filosofia do Yìjīng (易經), o Clássico das Mutações, as duas condições podem ser expressas pelos dois diagramas do bāguà (八卦) conforme as figuras abaixo:

Particularmente, no caso da vida humana, há algumas aproximações e diferenças entre a descrição da medicina chinesa em geral e da tradição taoista, nos seguintes termos: o pré-natal corresponde àquilo (essência, qì, etc.) que foi recebido da natureza e de nossa mãe e nosso pai no momento da concepção, enquanto o pós-natal corresponde ao que é adquirido da nossa interação com o mundo, inclusive extraído do ar que respiramos e dos alimentos que ingerimos. O pré-natal representa, portanto, o que é inato, constitucional, hereditário na vida humana.  E então, uma vez perdido,  dificilmente pode ser recuperado. Sendo assim, o ciclo normal da vida humana, conforme descrito na filosofia do Yìjīng por meio do simbolismo do bagua pós-natal e dos 12 hexagramas do calendário, se inicia no estado totalmente yin d@ recém-nascid@, tenr@ e vulnerável, que se transforma gradualmente em pleno yáng, até que, ao chegar a plenitude, começa a declinar, perdendo yáng gradualmente, rumo à doença, à decrepitude e finalmente à morte, também descrita como totalmente yīn. A velocidade com que isso ocorrerá depende das condições e do estilo de vida, além da constituição de cada pessoa.

Contudo, esse processo natural pode ser positivamente afetado pelos treinamentos taoistas, que podem atrasar o relógio da vida, fazendo-a mais longa, de modo a envelhecer com vigor e lucidez. E até mesmo recuperar a essência e o pré-natal. Esse é um dos sentidos do chamado “Caminho do Retorno”. Esse aspecto da restauração da vitalidade e da preservação da saúde correspondem ao chamado treino ou cultivo da vida (mìng gōng 命功), a primeira etapa do caminho taoista. Esse foi um motivo que levou milhões de pessoas, no passado e no presente, a praticarem esses métodos, independente de se identificarem com o taoismo como um caminho de vida. Até aqui estamos no domínio do uso de exercícios preventivos ou terapêuticos como prática medicinal. Em nossa linhagem, mestre Liu Pailin e seu sucessor, mestre Liu Chihming, juntamente com seus discípulos e discípulas, ensinaram milhares de pessoas no Brasil a cuidar da saúde utilizando esse recurso, o treinamento diário de  práticas corporais baseadas num conhecimento tradicional sistemático acerca do .

Para além desse aspecto, o retorno ao pré-natal da tradição taoista é mais profundo: os treinamentos são o meio potencial para uma transformação completa –  ao mesmo tempo corporal, subjetiva e existencial –  que combina a plenitude da potência de movimento da vida a um estado de serenidade e espontaneidade, que permitiria estar em completa sintonia com as circunstâncias, de modo a agir de modo eficaz, mas sem esforço ou identificação pessoal com a ação.  Uma verdadeira arte de viver baseada na fluidez, que só se pode aprender por experiência. A plena realização dessa condição é encarnada na figura d@ imortal ou ser iluminado, que ainda será tema de alguma postagem futura.

Medicina chinesa e treinamentos taoistas: 1. aproximações e diferenças

Os Seis Centros (Liùshénqiào 六神竅), diagrama utilizada pelo mestre Liu Pailin em suas aulas de Daoyin e meditação. 

A postagem dessa semana inaugura uma nova série que discute as relações  entre medicina chinesa e treinamentos taoistas. É sabido que o fundamento filosófico e cosmológico da medicina chinesa pode ser corretamente descrito como taoista: a filosofia yīn/yáng e a teoria dos cinco movimentos são seus pilares. E além disso, conceitos, teorias e outros elementos da medicina tradicional informam tanto treinamentos para longevidade quanto métodos de meditação taoista. No entanto, não é necessário ser taoista para praticar medicina chinesa, nem tampouco praticar o taoismo implica um conhecimento aprofundado de medicina.

Hoje gostaria de responder a pergunta de um aluno de acupuntura: qual a relação entre o sistema de canais, colaterais (jīngluò 經絡) e os pontos de acupuntura (xué 穴) da medicina chinesa, e os centros (qiào 竅), campos de elixir (dāntián 丹田) e círculos/circulações (xuán 旋) dos treinamentos taoistas?

Em primeiro lugar, há certa correspondência entre o trajeto de algumas circulações utilizadas em treinamentos de qìgōng (e meditação) e canais extraordinários, como por exemplo o circuito formato pelo Vaso da Concepção e o Vaso Governador, no treinamento do “Pequeno Universo” ou “Circulação dos Seis Centros” (representados na ilustração acima). Grosso modo, Renmai e Dumai correspondem aos caminhos do Fogo e do Vento da alquimia interna taoista. Contudo, a circulação dos seis centros não segue pela superfície da cabeça, acompanhando os pontos do trajeto do Vaso Governador na linha mediana do crânio, em vez disso conecta vários centros importantes no interior da cabeça, o que poderíamos supor que corresponde a um ramo interno do Dumai.

Comparação semelhante pode ser feita entre os pontos de acupuntura e os centros. Existe uma correspondência entre algumas localizações importantes, mas não são idênticas. Por exemplo, o ponto VC1 ( Huìyīn 會陰), situado no períneo, corresponde ao centro Yīnqiào (陰竅), no entanto, este segundo se situa nos genitais internos. O ponto VG4 (mìngmén 命門) corresponde ao centro dos rins (shènqiào 腎竅), mas enquanto o ponto de acupuntura se situa na coluna vertebral, o centro se situa no interior do corpo, entre os rins e à frente da coluna. Resumindo, em geral os centros utilizados em meditação e qìgōng estão situados mais internamente no corpo, além do alcance do agulhamento, ao contrário dos pontos de acupuntura.

Além disso, há os campos de elixir, que são regiões maiores, que abrangem vários centros e pontos de acupuntura. A transmissão que recebi fala em três:  superior, médio e inferior. Estão situados, respectivamente, na cabeça, no peito e no ventre. Possuem funções e  localizações distintas do Triplo Aquecedor (Sānjiāo 三焦), víscera da medicina chinesa sem correspondência com as estruturas identificadas pela anatomia ocidental, mas que, entre outros aspectos, representa três conjuntos de funções fisiológicas: respiração/circulação, digestão, excreção.

Ou seja, é preciso prudência ao estudar os dois campos de conhecimento tradicional chinês, prestando atenção a aproximações e distinções. Minha recomendação é evitar o realismo ingênuo. Não se trata de descobrir uma verdade objetiva separada de construções simbólicas culturalmente situadas e de experiências corpóreas. Nenhum dos conceitos mencionados aqui refere-se a um objeto físico que pode ser apontado, mas compõem uma tecnologia cultural eficaz que permite prevenir e tratar doenças, promover a saúde e a longevidade, acessar experiências meditativas e desenvolver um certo tipo de consciência corporal.

Isso fica evidente quando constatamos as diferenças de terminologia, descrição e interpretação das várias linhagens taoistas, mas também quando fazemos estudos comparativos do que poderia ser chamado de “psicofisiologia do corpo sutil” conforme elaborada também em outras tradições como o yoga e o tantra, tanto hindu quanto budista, só para citar uns exemplos.

Quem supõe que os centros e campos de elixir descritos pelos taoistas sejam a mesma coisa que os chakras das tradições indianas, descobrirá, com surpresa, que suas formas, cores, localizações, funções e quantidades divergem enormemente. Mais interessante ainda, nem ao menos no interior de uma mesma tradição há esse consenso, exceto quando foi forçado em certas circunstâncias históricas.
A esse respeito, achei particularmente instrutivo o artigo de Christopher Wallis, the real story on the Chakras. Ele demonstra que, até o final do século XIX, não havia ainda um sistema unificado de chakras, mas sim várias versões, dependendo da escola. Foi a preservação e tradução de uma obra indiana para línguas ocidentais que fez o sistema de Sete chakras a concepção oficial e canônica do yoga. E afirma que os chakras tem função prescritiva e não descritiva, são um método ióguico e meditativo para organizar a circulação do prana no corpo de certa maneira, não a descrição de uma realidade a priori.
E por que me refiro a esse assunto em um blog sobre taoismo? Há uma analogia entre os diversos sistemas dentro uma mesma tradição e na comparação entre tradições distintas,  mas não há uma correspondência coerente. Podemos aprender a mesma lição proposta por Wallis a respeito também dos conceitos do taoismo e da medicina chinesa. São métodos para induzir certas experiências, uma linguagem eficaz, resultante da experiência acumulada de incontáveis gerações de praticantes, mas não são fatos objetivos a priori que devam ser debatidos dogmaticamente.

Medicina Tradicional Chinesa: 7. Dietoterapia


Na postagem de hoje da série medicina chinesa, o assunto é  alimentação. Congruente com outras medicinas tradicionais, os alimentos tem tanto uso preventivo e terapêutico, quanto os maus hábitos alimentares podem ser um fator de adoecimento. Podemos portanto selecionar, preparar e saborear a comida, prestando atenção nas recomendações da medicina chinesa. Assim combinamos o prazer de comer à boa saúde e à longevidade. Os princípios são diferentes da nutrologia e da medicina convencional ocidentais, pois não se trata de calorias nem propriamente da composição química dos alimentos, mas sim das qualidades do seu .  No nível mais elementar, o princípio é nutrir-se de alimentos diversificados das cinco cores e cinco sabores, correspondentes aos cinco movimentos (wǔxíng 五行): metal 金, água 水, madeira 木, fogo 火 e terra 土. Os alimentos também são classificados em função de sua natureza yin ou yang, fria, quente, neutra, etc.

Considerando o uso dos cinco sabores, no Huangdineijing (黃帝內經), o capítulo 4 do Suwen (素問) afirma: “A nutrição dos cinco órgãos deriva dos cinco sabores (picante, doce, ácido, amargo e salgado, que podem ser percebidos como gosto da comida), porém quando os cinco gostos são utilizados em excesso, eles lesam os cinco órgãos”. […] E mais adiante, após explicar as consequências da alimentação desequilibrada, conclui: “Por isso, se os cinco sabores forem adaptados a uma condição harmoniosa sem ingestão excessiva, o corpo todo irá receber ampla fonte de nutrição, e os tendões, ossos, energias, sangue e pele, irão se conservar em condição forte e normal. Portanto, aquele que for bom em equilibrar os cinco sabores, poderá gozar de longa vida”. Em níveis mais elaborados, determinados alimentos podem ser recomendados ou evitados, em função da constituição de 1 paciente, ou a prevenção/tratamento de uma patologia específica.

No entanto, o mundo contemporâneo trouxe outras componentes à relação entre alimentação e saúde, devido ao uso maciço de pesticidas na produção agrícola, bem como de hormônios e medicamentos na produção pecuária, que representam riscos à saúde frequentemente subestimados. Isso sem falar dos alimentos processados, repletos de aditivos químicos para evitar que estraguem antes de serem consumidos ou para tornar sua cor, sabor e aparência mais agradáveis. O desafio agora é que, além de combinar harmoniosamente alimentos diversificados, fonte da vida pós-natal, é preciso saber evitar aqueles alimentos que podem nos intoxicar e adoecer.

Medicina Tradicional Chinesa: 6. Guāshā

Nessa postagem nova postagem da série medicina chinesa, abordaremos um outro método antigo da medicina chinesa, cujos primeiros registros datam da dinatia Han (220 d.C):  Guāshā (刮痧), a raspagem da pele com um instrumento, revelando estagnações de sangue. Frequentemente se utiliza uma espátula especial de chifre de búfalo ou boi, mas também pode ser utilizada uma colher de cerâmica, uma peça de jade ou uma moeda. Há também espátulas feitas de pedra, bambu, etc.

Segundo a medicina chinesa, a estagnação no nível local decorre de fraqueza na circulação do , que favorece a estagnação do Sangue. Essa  por sua vez pode ser gerada pela invasão de fatores patogênicos externos, como calor, frio ou umidade. Foram classificados mais de 100 tipos de shā (痧), em função de suas características: forma, cor e sintomas associados.

O método é aplicado principalmente na região do pescoço, ombros, costas no trajeto do canal da Bexiga e do Vaso Governador, mas também atrás dos joelhos, na panturrilha, cotovelo, etc. 


O aparecimento de shā (痧) durante e após a raspagem traz alívio imediato do desconforto. O padrão e a localização das manchas, que desaparecem após poucos dias,  pode ser utilizado também para fins diagnósticos.

Medicina Tradicional Chinesa: 5. Ventosaterapia

Na postagem de hoje da série medicina tradicional chinesa, abordaremos mais uma das terapêuticas clássicas, o uso das ventosas. Ainda que seu uso na China seja atestado desde a antiguidade, não é uma exclusividade da medicina chinesa, sendo conhecido também na antiga medicina grega, na medicina medieval europeia e inclusive aplicada no interior do Brasil na primeira metade do século XX, como tive a grata surpresa de descobrir.  Basicamente, é utilizado um copo, de argila, bambu, chifre, vidro, ou mais, recentemente, de acrílico. Utilizando-se o calor do fogo, o vapor da água fervente ou uma bomba a vácuo, o ar é retirado do copo de ventosa.

ventosa de fogo
ventosa de fogo

Isso cria uma pressão negativa na região do corpo em que ela for aplicada. No contexto da medicina tradicional chinesa, as  ventosas são utilizadas para promover o fluxo de e Sangue no jingluo. Promovem também a remoção de fatores patogênicos externos. Podem ser combinadas com outros métodos como guasha, sangria e acupuntura, segundo as características do caso clínico. Por estimularem a circulação, tem um efeito desintoxicante. A pressão negativa também descomprime os tecidos e, especialmente no caso da ventosa deslizante, relaxa a musculatura. A cor da pele após a aplicação pode ser examinada para fins diagnósticos: basicamente, quanto mais escura maior o nível de estagnação.

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ventosas de acrílico, a vácuo.

Além disso, variações na coloração e na textura da pele também oferecem indicações úteis, da natureza do processo de adoecimento e da resposta ao tratamento. Por fim, a ventosaterapia é também uma técnica prazerosa e relaxante, que prepara o corpo para receber outros tratamentos numa mesma sessão.

Medicina Tradicional Chinesa: 4. Moxabustão

Nessa nova postagem da série, falaremos de outro  tratamento clássico da medicina chinesa. A moxa é um método antigo que utiliza a artemísia, às vezes em combinação com outras ervas medicinais, para queimar, defumar e aquecer certas regiões do corpo, agindo sobre os pontos de acupuntura, os canais e os colaterais. Sua prática está registrada desde o século VI a.C. Originalmente o método mais utilizado era moxa direta, os cones de artemísia aplicados diretamente sobre a pele.

img_4121Nas dinastias Jin e Tang, desenvolveu-se a moxa indireta com interposição de um anteparo (de sal, gengibre, alho ou outra substância) entre o cone de artemísia e a pele. E, por fim, durante a dinastia Ming desenvolveu-se a moxa em bastão. Além desses métodos, há outros como a caixa de moxa, para aquecer uma região maior, ou as agulhas aquecidas com moxa. Mais recentemente, desenvolveu-se um bastão de moxa feito de carvão de artemísia que tem a vantagem de não emitir fumaça. Entre os seus efeitos terapêuticos clássicos estão: remover o Frio, o aquecer os canais, estimular a circulação de e sangue, tratar edemas, desintoxicação, bem como o fortalecimento geral do organismo. A moxa também é recomendada no tratamento de alguns tipos de lesões das articulações. 9af9dbd1-842e-4174-9952-c26f452e2fd7-1Para isso, uma aplicação clássica, considerada um verdadeiro tratamento para longevidade, é a aplicação regular de moxa no ponto zusanli (E36).