Compreender o Tao: 4. o sentido da não ação

Na postagem de  hoje da série Compreender o Tao, o tema é a noção de não ação (wúwéi 無為), sujeita a vários mal entendidos. Não significa não fazer nada, nem omitir-se de agir, muito menos algo que se pode praticar intencionalmente, como quem diz: “agora, praticarei a não ação”. É ação espontânea, não deliberada, é agir sem identificar-se com a ação, ou com seu resultado. Não vem acompanhada do sentimento de vitória ou arrependimento: “eu fiz isso”.  Por isso se diz: “o verdadeiro Tao requer de nós que lidemos com o mundo real, mas ao fazê-lo o coração não se agita”. Ação espontânea é fazer o que é necessário segundo a situação, levando em consideração o maior benefício possível para todos os seres envolvidos. Em poucas palavras, embora possamos viver momentos ocasionais assim, é algo que só pode ser feito com frequência por alguém que, ao menos em alguma medida, realizou o Tao, ou qualquer outro nome que seja dado ao estado natural. Uma das marcas da não ação é a experiência de ausência de esforço e deliberação. A solução adequada é encontrada sem alarde e luta, independente de cálculo e estratagema. É como o sol que brilha ou a chuva que cai, sem fazer distinções.

montanha Taiwan
Vista das montanhas a uma hora de viagem de Taipei, setembro de 2017, foto do autor.

 

Compreender o Tao: 3. o papel do professor

Nessa terceira postagem da série Compreender o Tao, dou seguimento ao tema. Se o treinamento é a via principal para o Tao, como aprender a treinar? A resposta é simples: aprenda de um professor ou professora qualificado/a. Obviamente, o professor ou a professora ideal, de nível superior, é um ser iluminado, mestre realizado ou mestra realizada que encarna completamente o potencial expresso pela tradição.

mestre_fundo.jpg

Contudo, tal personagem não é fácil de encontrar, sequer de reconhecer, e não necessariamente estará acessível a iniciantes e pessoas completamente leigas. Mas  as expectativas podem ser mais realistas e modestas. Para aprender, encontre alguém que pratica seriamente uma linhagem autêntica e tem autorização de seu mestre ou mestra para ensinar. Essa pessoa não necessita ser extraordinária, mas precisa ter praticado de modo consistente o que ensina, até vivenciar os efeitos do treinamento e ter permissão para ensinar. Assim, ela pode, em alguma medida, ser exemplo daquilo que ensina. Deveria ser honesta sobre seu real nível de realização, e ter mais conhecimento e treino do que o/a estudante.

Compreender o Tao: 2. saber com o próprio corpo

Nesta segunda postagem da série Compreender o Tao, dou seguimento ao argumento anterior. Se as palavras e os conceitos  são meros indicadores,  não a via para o Tao,  como percorrer o caminho? A transmissão da tradição ocorreu e ocorre ainda por vários meios:  palavra falada,  palavra escrita (principalmente narrativa ou poética), imagem  (diagrama, desenho, pintura), recursos audiovisuais modernos, música, movimento e postura corporal. O treinamento é o meio, por excelência, para compreender o Tao. Cada método é a expressão de um (ou mais) princípio(s), o meio para atualizá-lo(s) como experiência pessoal. Os métodos são fundamentalmente técnicas corporais, no sentido maussiano, que induzem um certo “modo somático de atenção” (CSORDAS, 2008), uma forma culturalmente específica de prestar atenção com o corpo. Portanto, se por meio das palavras, o Tao é inapreensível, torna-se acessível por meio da experiência sensorial, motora e afetiva do corpo vivido.

Version 2

Por exemplo, ao abraçar o Taiji, colocando as mãos sobre a região do umbigo (taiyuan), ao mesmo tempo que, literalmente, trazemos  a atenção para nosso centro de gravidade,  a origem de nossa vida,  encarnamos o simbolismo do  Taiji (☯), como centro dinâmico vivo. O elemento central não é o conceito ou o símbolo, mas como isso se atualiza numa experiência corporal. Obviamente, não se trata simplesmente da eficácia do gesto, mas do fato de fazê-lo com plena atenção e consciência.

Treinar é cultivar um hábito. Assim, ao abraçar o Taiji regularmente, nos acostumamos à manter a atenção no centro, com consequências motoras e posturais, perceptivas e afetivas. Esse é um método básico de qigong e meditação taoista, que é praticado em nossa linhagem ao final de cada exercício, mas que também é adotado como postura básica de meditação, e um recurso para acalmar a mente e recuperar as energias a qualquer momento do dia. O índice para a eficácia do Abraço do Taiji justamente é o grau de profundidade de seu efeito sobre o corpo/consciência.

Compreender o Tao: 1. ponto de partida

Hoje inicio uma série de postagens, intitulada compreender o Tao. Além da óbvia distância cultural entre a tradição taoista e o horizonte cultural primário de praticantes não chineses e não chinesas, de nações ocidentais ou do hemisfério sul, como a nossa, existe um problema ainda mais básico. Em função de uma história de modernização e ocidentalização em escala mundial, o que não pode ser descrito pela linguagem de forma precisa nem compreendido por meio do intelecto tende a ser desconsiderado. E é justamente disso que trata o taoismo: o indizível que pode ser vivenciado. Transcrevo abaixo os dois primeiros versos do texto fundante da tradição taoista, o Daodejing (道德經), na tradução do mestre Liu Pai Lin e de Jerusha Chang:

“O Tao descrito como o Tao não é o verdadeiro Tao.

O inominável nenhum nome pode nomear” (Daodejing, poema 1).img_36531-e1524669487821.jpg

(Acima: o sentido da estrutura do pictograma, segundo mestre Liu Pai Lin. Ilustração originalmente publicada em: Saúde Longevidade, caderno 1, São Paulo, Associação Tai Chi Pai Lin, 1994, p. 16).

O pictograma Dào (道) é normalmente traduzido como “caminho”. O sentido do termo já foi debatido à exaustão tanto por estudiosos e estudiosas, como por praticantes taoistas. De forma aproximativa, remete a uma ideia de ordem cósmica, formulada em termos de padrões cíclicos, ao estado natural, ao mistério da vida, etc. Mas, o paradoxo é que Laozi afirma explicitamente que não é possível descrevê-lo. Ou seja, as palavras e o intelecto não são suficientes para realmente compreendê-lo. Pode ser reconhecido por meio da experiência meditativa e da contemplação dos fenômenos da natureza. Aqui, como em outras tradições contemplativas, os conceitos, as palavras, são meramente indicadores da direção a seguir.

Estéticas da Existência em Fluxo: Corporeidade Taoista e Mundo Contemporâneo

Estéticas de Existência em Fluxo é o título de outro artigo que publiquei em 2011 na revista Ciências Sociais e Religião. Nele, refleti sobre a relevância da tradição taoista no mundo atual, ao se difundir fora da China e das comunidades chinesas da diáspora. Resumindo em umas poucas linhas, o argumento é que o taoismo proporciona uma linha de fuga à instabilidade das condições da vida urbana contemporânea, acirradas pelo capitalismo de consumo e pela privatização do bem público. Fora de apropriações consumistas superficiais, o taoismo poderia ser lido como uma verdadeira “arte da existência”. Seu modo de vida, avesso à aceleração e ao consumismo característico das formas vigentes de capitalismo. Quando bem sucedido, o treinamento taoista favorece uma reorientação existencial  em decorrência do aprendizado corporal consistente: aprender a perceber,  mover-se e sentir de um novo modo, implica aprender a ser. Relaxar toda tensão e esforço desnecessário, desfrutar dos prazeres da vida sem se exaurir, equilibrar atividade e repouso. São várias as metáforas clássicas, presentes no Daodejing (道德經) para expressar o viver em consonância com o Tao: a espontaneidade, maleabilidade e energia inesgotável de uma criancinha,  a perfeição da madeira bruta, a fluidez da água…

Qiedong fall

O Caminho do Retorno: envelhecer à maneira taoista

O Caminho do Retorno, artigo que publiquei em 2010, novamente na revista Horizontes Antropológicos, aborda o ciclo da vida na percepção da tradição taoista. Ainda que envelhecer seja uma inevitável parte da existência corporal, é possível fazê-lo mais lentamente, com qualidade de vida e saúde. Desse modo, envelhecer à maneira taoista é tornar-se fonte de benefício coletivo. Nossa experiência, a sabedoria que desenvolvemos ao longo dos anos, fica disponível para ser compartilhada, pois a vitalidade continua plena. Segundo a tradição, para quem seguir a natureza, é possível retornar à primavera. A velhice não precisa ser declínio inexorável, pode ser oportunidade de novo começo. Como já havia citado na epígrafe do artigo: “O retorno é o movimento do Caminho [Tao 道]“ (Daodejing 道德經, poema 40) Mas isso implica uma certa forma de viver, em sintonia com os ciclos naturais dos horários do dia e da noite, das fases da lua e estações. Na contramão da aceleração vertiginosa da vida contemporânea, aprender a mover-se mais devagar, como uma tartaruga, símbolo taoista por excelência da longevidade. Doze hexagramas do Yijing (易經), o Livro das Mutações, são utilizados para descrever o ciclo do dia, do ano e, por extensão, da vida humana:

12 hexagramas HA

(diagrama originalmente publicado em Bizerril, 2010, link acima)

O diagrama é lido de dentro para fora. No princípio do ciclo, há apenas yin (as linhas pretas interrompidas), situação representada pelo hexagrama Kun, o Receptivo, a Terra. O surgimento do Yang é representado pelo hexagrama Fu, o Retorno, com o aparecimento da primeira manifestação do yang (a linha branca contínua), que cresce gradualmente até ocupar todas as linhas do hexagrama Qian, o Criativo, o Céu. Tendo o yang chegado ao apogeu, a alternância é inevitável: na sequência surge uma linha yin no hexagrama seguinte, Gou. Daqui em diante, as linhas yin avançam  gradual e inexoravelmente até ocuparem novamente todo o hexagrama. Chegando a este ponto, há uma encruzilhada: a morte ou o retorno à vida. A estratégia taoista é desacelerar o processo natural de dispersão do e,  combinando os treinamentos a um modo de vida harmônico com as condições naturais, manter seu equilíbrio e plenitude. Mas a longevidade é apenas um aspecto do caminho. Além de treinar a vida, é preciso também treinar o espírito, por meio da serenidade. É com um coração sereno que as qualidades latentes de amor e sabedoria podem se manifestar espontanemente.  Esse é  um dos propósitos das práticas contemplativas.

Mestres do Tao: tradição, experiência e etnografia

Mestres do Tao é o título de um artigo que publiquei na Revista Horizontes Antropológicos em 2005, uma versão reduzida de um dos capítulos de minha tese de doutorado sobre a escola taoista do mestre Liu Pai Lin (1907-2000). Nele, reflito sobre o papel na narrativa no aprendizado do Tao, como a palavra se combina a outros modos de transmissão da tradição e os dilemas da tentativa de fazer uma descrição etnográfica dela. Naquele momento, a figura do mestre Pai Lin (foto abaixo) me impressionava por sua saúde e vivacidade de espírito, com mais de 90 anos. E por, literalmente, encarnar o que ensinava, um conhecimento vivencial sobre a vida, não uma “filosofia” no sentido de um saber meramente intelectual, desencarnado. Não tinha ainda a dimensão do impacto desse contato breve na minha biografia. Vinte anos depois deste primeiro encontro, percebo que o que me impressionou foi a possibilidade de existir com fluidez e relaxamento, com lucidez e alegria de viver, inclusive em uma idade tão avançada. Um encontro que deixou uma marca profunda e plantou as sementes do momento atual. IMG_1308.jpg