Meditação Taoista: 04. relaxamento e perseverança

Relaxar é uma capacidade natural (e necessária) do nosso organismo, tanto do ponto de vista da filosofia taoista quanto dos conhecimentos modernos das ciências biológicas sobre o corpo humano. Contudo, em nossos tempos de estresse contínuo, excesso de estímulos sensoriais e inúmeras demandas a atender na vida pessoal e profissional, muitas pessoas estão se tornando incapazes de vivenciar um estado de relaxamento. Em casos mais graves, não conseguem nem mesmo dormir. Há também quem se sinta uma fadiga constante mesmo quando descansa. Mas o mais comum talvez seja uma situação mais moderada: estar constantemente em estado de certa tensão e inquietude, que nos impede não apenas de descansar, mas também de aproveitar plenamente momentos de alegria e prazer. A meditação pode ser um caminho para nos reconectar com nossa habilidade natural de relaxar.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Além disso, muitxs de nós, para relaxar e aliviar as tensões, recorremos a distrações contínuas e outras formas de não estar consciente do momento presente, para esquecer temporariamente das tensões e problemas, os sofrimentos passados e as angústias sobre o futuro. Certamente, uma parte disso se deve a condições sociais que são estruturais do nosso tempo, e que demandam soluções coletivas. Por outro lado, nesse contexto, a distração, como fuga do presente, se torna um hábito profundamente arraigado, de tal modo que estar presente, em contato com o que acontece aqui e agora, torna-se algo difícil até de se imaginar. Quando se fala em “presença”, demoramos a entender do que se trata, pois nos acostumamos a estar todo tempo ocupadxs com nossas memórias e expectativas. Aqui também, a meditação oferece uma oportunidade para reaprender a arte de estar totalmente presente, por meio de métodos simples.

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O psicólogo Mihály Csíkszentmihályi, foto do seu perfil na Claremont Graduate Univesity,

Talvez alguns/mas de nós tenham lembrança de momentos em que estavam totalmente absorvidas em uma atividade: uma brincadeira, um esporte, tocar um instrumento, pintar, dançar, etc. Quem sabe vivenciamos um estado de fluxo, conforme a definição do psicólogo Mihály Csíkszentmihályi: um estado de fusão entre a consciência e a atividade realizada, com um foco completo no momento presente e uma prazerosa sensação de realizar a atividade de forma bem sucedida sem esforço.

Num nível mais avançado, meditar é encontrar repetidamente essa experiência de fluxo na sessão formal de meditação. Mas também é acostumar-se a essa maneira de existir e poder vivenciar isso com frequência crescente na vida cotidiana, cuidando das tarefas diárias e no contato com outras pessoas e demais seres vivos.

Praticando com constância, mas respeitando nossos limites, estar presente e relaxado se torna um hábito. Para isso, praticamos com muita gentileza:

1) encontre uma postura confortável e alinhada, que nos permita ficar algum tempo relativamente imóvel. Mas não é a imobilidade forçada de transformar nosso corpo numa estátua: o corpo respira e faz micro-ajustes no alinhamento, os músculos tensos relaxam, liberando a tensão desnecessária.

2) permaneça na sessão apenas enquanto a mente está relaxada/relaxando. Não lutamos contra o diálogo interior, nem tentamos prolongar à força os momentos de quietude e silêncio. Aqui vários métodos para focar a mente podem nos ajudar a relaxar.

Nos dois casos, é mais sábio fazer sessões curtas e pausas durante as sessões, praticando com muita gentileza, para cultivar relaxamento e presença, em vez de fazer da prática de meditação mais uma fonte de estresse. Com paciência, gradualmente, meditar fica fácil e os benefícios ficam óbvios.

Medicina Chinesa: 02. como funciona o diagnóstico

A acupuntura pode tratar diversas doenças, segundo a Organização da Saúde, como mencionado na postagem anterior. No entanto, como é parte de uma medicina tradicional completa, a medicina chinesa, seu uso terapêutico depende de um cuidadoso diagnóstico, com uma lógica específica.

A tradição médica chinesa fala de quatro métodos diagnósticos (sìzhěn 四診): observar, auscultar/cheirar, interrogar e palpar. Cada um deles é uma prática bastante detalhada. A observação inclui não apenas o exame da face, da compleição, do olhar, da língua e das partes do corpo afetadas por uma doença, mas também, uma percepção global do comportamento, da constituição, do estado geral e mesmo da saúde mental dx paciente. Auscultação inclui prestar atenção em alterações de som e cheiro do corpo dx paciente. Interrogar corresponde a uma cuidadosa entrevista diagnóstica, na qual ouvimos não apenas a queixa principal e o histórico de saúde, mas indagamos sobre: sono; alimentação; sede; estilo de vida; dores; doenças crônicas; acidentes e cirurgias; fezes e urina; transpiração; frio e calor, febre; saúde sexual/reprodutiva; etc. Por fim, a palpação inclui não apenas tocar as partes do corpo afetadas pela doença e identificar pontos de acupuntura sensíveis, com finalidade diagnóstica.

Aquarela de Jean Droit, por volta de 1915, retratando um médico chinês examinando o pulso de uma paciente aristocrática. Disponível em Fine Art America.

Além disso, um método diagnóstico importante e complexo é a pulsologia. A forma mais conhecida é a tomada do pulso da arterial radial simultaneamente nos dois braços, que oferece indicadores detalhados sobre o estado de saúde, particularmente dos órgãos internos. Por meio do exame do pulso é possível avaliar a vitalidade dx paciente, identificar a presença de desequilíbrios sistêmicos e inclusive fazer prognósticos sobre o desenvolvimento do caso clínico.

Por meio do uso cuidadoso desses métodos diagnósticos, 1 profissional pode diferenciar as síndromes, de modo mais geral, segundo Oito Princípios (bāgāng 八綱): frio e calor; deficiência e excesso; interior e exterior; Yin e Yang. E, de modo mais específico, segundo os Órgãos e Vísceras (zàngfǔ biànzhèng 臟腑辨證). Os Oito Princípios permitem identificar a natureza da síndrome. E a Investigação dos Órgãos e Vísceras permite localizá-la de forma mais precisa.

Com esse entendimento, é possível traçar uma estratégia terapêutica mais eficaz do que apenas tratar sintomas isolados.

Recesso em Janeiro

Carxs leitorxs, 2019 foi um ano intenso, pleno de desafios e atividades. Por isso, durante o mês de janeiro estaremos em recesso, para repor as energias e preparar novos projetos para o ano que se inicia. A partir de fevereiro retomamos as atividades normais: aulas regulares de Qigong e os cursos já agendados. As atividades da clínica continuam a partir de meados de janeiro. Feliz 2020!

Meditação Taoista: 03. Afinal, para que meditar?

Na postagem de hoje, a ideia é oferecer ao público interessado uma explicação simples, sem tecnicalidades, sobre o que é meditação taoista e para que praticá-la. Um ponto de partida simples é entender que a meditação é um método. Mas um método para que?

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Vamos à resposta mais direta: no nível mais profundo, a meditação taoista é um método para cultivar o que os antigos chineses chamaram de Caminho Natural, que é uma tradução razoável para o termo Tao. Em vez de usar termos filosoficamente complicados, digamos que, na prática, a meditação é um método que desenvolve gradualmente em nós a capacidade de passar cada vez mais tempo em um estado que combina relaxamento, serenidade, sensibilidade ao ambiente à nossa volta, e prontidão para agir em conformidade com o que a situação demanda em um momento específico. Ou seja, não meditamos para sermos pessoas melhores, nem obter algo. Nem se trata de ficar passivo/a, insensível ou indiferente. Em vez disso, meditamos para aprender a reduzir toda tensão, força e identidade desnecessárias, permitindo que as qualidades de nossa natureza essencial se manifestem. Quando nos acostumamos a permanecer em um estado de relaxamento alerta, menos identificados/as com uma identidade sólida associada a desejos e metas, viver fica mais simples. Então, a tradição taoista confia no potencial para bem viver, presente em todos/as nós, que se revela quando nosso está equilibrado e a tensão se dissolve.

Os métodos taoistas se dividem em treinos de movimento e treinos de serenidade. A meditação silenciosa na postura sentada é o treino de serenidade por excelência. Nela, trabalhamos ao mesmo tempo a serenidade e a vitalidade, como expliquei na primeira postagem dessa série. A primeira etapa na prática desse tipo de meditação é o restabelecimento de nossa vitalidade e do equilíbrio de nosso organismo, descrito pelos antigos chineses em termos de Yin e Yang e dos chamados cinco “elementos” (metal, água, madeira, fogo e terra), que correspondem aos órgãos, tecidos e funcionamento de nosso corpo, como tenho explicado desde a primeira postagem sobre medicina tradicional chinesa. Como na concepção chinesa não há uma separação entre corpo e mente, o equilíbrio de nosso organismo está diretamente ligado ao equilíbrio emocional. Assim, quando nossas energias estão equilibradas, é mais fácil meditar. E ao mesmo tempo, na medida que praticamos meditação, aumenta nossa capacidade de autorregulação, o que permite lidar com situações que antes nos deixariam doentes, exaustas/os ou agitadas/os.

O que a meditação oferece é um momento com condições ideias para cultivar a serenidade e “recarregar nossas baterias“. Paramos temporariamente nossas atividades cotidianas, largamos os projetos e preocupações, sentamos em um local silencioso e que inspire tranquilidade. E nessas condições praticamos algumas técnicas para favorecer o relaxamento, a lucidez e a vitalidade. Mas com o tempo de prática regular, os estados de serenidade, relaxamento e vigor que vivenciamos durante a sessão formal de meditação podem ser vivenciados no cotidiano quando não estamos meditando. Algo em nós mudou sem que tenhamos deliberadamente tentado mudar ou aperfeiçoar nada.

Pintura em nanquim, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

Assim como a água que brota de uma nascente e se torna disponível para nutrir a vida dos seres vivos que ali habitam, ou o sol que nasce a cada dia iluminando e aquecendo a terra, espontaneamente se manifesta um potencial para ação eficaz que é benéfico para nós mesmos/as e para quem está à nossa volta. Quando estamos revigorados/as e relaxados/as fica mais fácil estar disponível para os/as outros/as do que quando estamos tensos/as, ensimesmados/as, focados/as em nossas dores e dificuldades. E como explicou o mestre Pailin, esse é o sentido de ter uma vida longa e saudável: poder expressar nosso potencial para benefício coletivo, compartilhando e apoiando o desenvolvimento dos/as outros/as.

Caso deseje aprender a praticar, em março de 2020 teremos um curso de introdução em Brasília.

O Clássico do Imperador Amarelo: 04. recomendações sobre alimentação

Na medicina clássica chinesa, existem recomendações sobre alimentação e saúde. Diferente do conhecimento moderno sobre nutrição que leva em consideração o aspecto bioquímico dos alimentos, quais nutrientes e calorias presentes, a dietoterapia chinesa associa os sabores e as cores aos Cinco Movimentos (wŭxíng 五行) (madeira, fogo, terra, metal e água) e classifica os alimentos por sua natureza e efeito. Assim, uma alimentação equilibrada é uma das bases da manutenção da saúde, visto que o ar e o alimento são o fundamento do pós-natal. Além disso, num nível mais introdutório da explicação, alimentos específicos podem ser recomendados como tratamento para suprir o que está deficiente e reduzir o que está em excesso, visando restabelecer o equilíbrio de Yin e Yang, mas também dos Cinco Movimentos, considerando a associação dos alimentos com as 5 cores e 5 sabores correspondentes aos Cinco Movimentos.

Página da edição chinesa do Suwen, que forma parte do Huangdineijing. Acervo da World Digital Library.

O capítulo 3 das Questões Simples (Sùwén 素聞) associa os cinco sabores aos cinco órgãos (zàng 臟): o azedo ao fígado; o salgado aos rins; o doce ao baço; o amargo ao coração; e o picante aos pulmões. Ainda segundo o clássico, se estão em excesso, os sabores podem contribuir para produzir uma relação de agressão entre os cinco movimentos. Se o fígado está em excesso, prejudica o do baço. Se os rins estão em excesso, pode lesar os ossos e músculos, e prejudicar o coração. Se o baço está em excesso, ocorre dispneia, pode restringir o o dos rins. Se o coração está em excesso, o clássico afirma que o baço não consegue se umedecer e surge secura perversa no estômago. Aqui vemos uma descontinuidade no raciocínio apresentado, que não faz menção ao pulmão, mas sim ao estômago, a víscera Yang corresponde ao órgão Yin da terra, o baço. O texto continua, afirmando que, se o pulmão está em excesso, restringe a madeira do fígado, enfraquecendo os tendões e, pelo efeito de dispersão, o excesso de picante consome o espírito. Ressalto aqui que neste e em outros trechos há variações no texto clássico que divergem das tabelas de correspondência dos cinco movimentos nos textos modernos de medicina chinesa, mais lineares.

Já no capítulo 4, que continua a enumerar as correspondências dos Cinco Movimentos com direções, cores, estações, órgãos,sabores, carnes, cereais, planetas, notas musicais e odores, o clássico faz as seguintes associações: o fígado está associado à madeira e, quanto aos alimentos, ao galo e ao trigo; o coração está associado ao fogo e, quanto aos alimentos, ao carneiro e ao sorgo vermelho; o baço está associado à terra e, quantos alimentos, à vaca e ao painço; os pulmões estão associados ao metal e, quanto aos alimentos, ao cavalo e ao arroz com casca; os rins estão associados à água e, quanto aos alimentos, ao porco e ao feijão (de soja) preto. Ainda num nível introdutório, pode-se associar as cores aos Cinco Movimentos e seus órgãos respectivos. Assim, alimentos verdes tonificam a madeira; alimentos vermelhos tonificam o fogo; alimentos amarelos tonificam a terra; alimentos brancos tonificam o metal; e alimentos pretos tonificam os rins.

Ilustração do Siwubencao, texto de matéria dietética da dinastia Ming:
colhendo água de ameixa. Fonte: Wellcome Gallery Collection.

Obviamente, isso não resume todos os princípios da seleção dos alimentos na dietoterapia chinesa, mas dá uma ideia de sua racionalidade, como está presente nas Questões Simples, do Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng 黃帝內經). Textos posteriores de matéria dietética elaboram de formas mais complexas e específicas sobre o uso medicinal dos alimentos, de modo que a medicina chinesa possui uma verdadeira culinária terapêutica no seu repertório de conhecimentos tradicionais.

Meditação Taoista: 02. a postura de meditação

A postagem de hoje dá seguimento à série sobre meditação. Dessa vez, o foco é no aspecto prático, mas sem perder de vista os fundamentos. A consciência da postura durante a prática formal de meditação é um aspecto que precisa ser considerado na suas devidas proporções; não é toda a prática, nem é algo que deveria ser negligenciado. Saber que postura assumir é uma parte importante do conhecimento prático sobre como meditar.

Se a meditação é uma prática do Tao, então a naturalidade é algo que precisa ser cultivado nela. Por isso, aqui o princípio de base é “não forçar”. Persistindo com paciência, há um desenvolvimento gradual. Ao forçar em busca de resultados, há o risco que ficarmos exaustos/as, frustrados/as e, assim, desistir.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Cada tradição meditativa tem suas próprias convenções, recomendações e atitudes sobre a postura de meditação. Foi o que aprendi estudando as instruções de escolas diferentes. No caso do taoismo, a meditação pode ser praticada em várias posturas imóveis, sejam de pé, sentado ou deitado. E mesmo em movimento, como é o caso quando praticamos Qigong ou Taijiquan de forma particularmente lenta, serena e focada, com atenção ao menor gesto. Quanto à postura sentada, podemos imaginar erroneamente que a meditação só ocorre se formos capazes de manter uma perfeita postura de lótus. E isso pode chegar mesmo a se tornar uma obsessão que nos desvia do objetivo de meditar. Mas a postura não é algo que assumimos para impressionar outras pessoas, nem é uma proeza, ou uma meta. Em vez disso, é um dos pontos de partida para nossa prática, pois a meditação também é uma prática corporal. O corpo em equilíbrio, livre de tensão, desconforto e doença, medita com mais facilidade.

O alinhamento, a estabilidade e o relaxamento de nossa postura ajudam a permanecer um tempo quietos/as, sem tensão. Então, a postura deve estar de acordo com os limites e possibilidades de nosso corpo, em função da nossa flexibilidade, disposição vital, faixa etária, etc. Devemos ser capazes de relaxar nela, sem adormecer e sem perder o alinhamento postural. E para isso, não é necessário atingir uma postura de lótus perfeita, embora essa seja considerada por muitas pessoas uma postura excelente para meditação. Pois ela é útil para a prática desde que o/a praticante seja capaz de permanecer nela confortavelmente. Se não é o caso, podemos meditar em meio lótus, ou simplesmente de pernas cruzadas, mas também sentando em uma cadeira, sem reclinar o corpo e encurvar a coluna. Como aqui o foco não está no controle, na força de vontade ou na resistência a estímulos desagradáveis, é importante que a postura de meditação seja suficientemente confortável para permitir que prestemos atenção no treinamento que vamos praticar, e não nas dores e tensões no corpo e na mente que surgem do desafio de manter uma postura forçada.

Com essa orientação, a meditação passa a ser um momento de descanso, de “recarregar as baterias”, e não de luta para alcançar algo. Meditando durante um lapso de tempo em que a postura está confortável, podemos estender gradualmente as sessões, até sermos capazes de permanecer um longo tempo praticando.

Esse e outros aspectos serão abordados em mais detalhes em um curso que será dado pela primeira vez em março de 2020.

O Clássico Interno do Imperador Amarelo: 03. a vida humana e o qì da natureza

A medicina chinesa não separa o ser humano da natureza. Isso fica óbvio no capítulo 3 das Questões Simples (Sùwén 素聞), livro que compõe o Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng 黃帝內經), quando diz: “O ser humano é um pequeno universo, já que o corpo humano tem tudo que o universo tem”. E explica que somos feitxs dos mesmos Cinco Movimentos (wŭxíng 五行) (madeira, fogo, terra, metal e água) que formam todas as coisas do universo. E que se expressam na composição dos tecidos que compõem o corpo, nos órgãos internos (zàngfŭ 臟腑), suas funções fisiológicas e nossas faculdades e processos mentais, que lhes correspondem, segundo a concepção chinesa. E assim como os doze horários, correspondentes aos 12 ramos terrestres (dìzhī 地支), temos doze canais ordinários. Ou seja, em um único parágrafo do clássico, encontramos uma síntese dos fundamentos da medicina clássica chinesa. Este entendimento geral é a base para entender saúde como harmonia Yin-Yang e equilíbrio entre os Cinco Movimentos, de um lado; e os processos de adoecimento como desarmonia Yin-Yang, desequilíbrio entre os Cinco Movimentos e bloqueio do livre fluxo de qì e/ou sangue pelo corpo.

Página da edição chinesa do Suwen, que forma parte do Huangdineijing. Acervo da World Digital Library.

Portanto, esse capítulo do clássico explica também que a vida humana depende do Yin e Yang e dos Cinco Movimentos. No nível da terra, há uma correspondência entre os cinco movimentos e os três fatores climáticos Yin (frio, seco, molhado) e três fatores Yang (vento, fogo e calor de verão), que podem se tornar os fatores externos perversos, causadores de doenças. Particularmente, quando o clima das estações está em correspondência com a natureza das estações – isto é, “cálido na primavera, quente no verão, fresco no outono e frio no inverno em suas condições normais” (Questões Simples, capítulo 3) – isso não deveria causar doenças. Mas quando as condições climáticas estão particularmente anormais, isso pode prejudicar nosso qì e nossos órgãos internos. Além disso, se nosso se encontra enfraquecido ou desequilibrado, os fatores climáticos normais podem invadir e agredir nossos organismo, como é explicado mais adiante no clássico (Questões Simples, capítulo 4).

O clássico recomenda que façamos o nosso entrar em contato com o do universo,”numa circunstância de calma onde não há vento nem tempestade”. Isto é, quando o do ambiente natural e o nosso próprio não estão agitados. Embora não haja uma referência explícita aos treinamentos nesse trecho do clássico, esse é um importante conselho para a prática de qìgōng (氣功) e tàijíquán (太極拳) ao ar livre. Praticando corretamente, em um ambiente de abundante e harmônico, há benefícios para a mente: “pode-se manter o espírito quieto e claro como o céu azul, livre das perturbações do excesso de alegria ou da raiva violenta”. E para o corpo: “sua energia corpórea será substancial, e não será ferida mesmo que for atacada por fatores perversos”. Isso é possível se desenvolvemos a capacidade de nos adaptar aos movimentos do do céu e da terra e preservar nosso próprio , o que caracteriza, para o clássico, uma pessoa sábia.

Na natureza como no corpo humano, a vida está associada ao Yang : “a operação incessante do céu depende do brilho do sol, e a saúde corporal do ser humano, depende dua energia Yang clara e flutuante, que se guarde contra o exterior”. Exterior aqui equivale aos fatores climáticos que tem um efeito perverso quando invadem o corpo: o clássico menciona explicitamente calor, frio, umidade e vento. Mas discorre também sobre os fatores mistos: excesso de trabalho, ascensão do yang por uma explosão de raiva, lesões dos tendões, excessos alimentares. Mas de todos esses fatores causadores de doenças, nesse capítulo o clássico destaca um: “o vento é a principal fonte de várias doenças”.

Pintura retratando o canal zuyangming, correspondente ao estômago, data e autor desconhecidos, Welcome Collection Gallery, disponível em Wikimedia Commons.

O clássico recomenda adaptar-se ao tempo e cuidar do corpo e do espírito, em conformidade com a lei de Yin e Yang. Em uma postagem anterior falamos das estações do ano. Aqui o texto refere-se ao ciclo diário de ascensão e declínio do Yang , como também está descrito no capítulo 4, acontece simultaneamente no corpo humano e na natureza, de modo que aqui cuidar-se é manter-se em harmonia com as fases desse ciclo durante as atividades. A este respeito, ver as recomendações do mestre Liu Pailin sobre os horários de treinamento.

Por fim, uma citação do clássico que resume suas conclusões nesse capítulo:

Se as energias Yin e Yang do ser humano forem mantidas em estado de equilíbrio, seu corpo será forte e seu espírito saudável, se suas energias Yin e Yang falharem em sua comunicação, sua energia vital irá declinar e finalmente ficará esgotada.

Clássico Interno do Imperador Amarelo, Questões Simples, capítulo 3.

Meditação Taoista: 01. dificuldades básicas

Meditação começou a se tornar um tema popular em contextos globais já faz algumas décadas, talvez pelo menos desde os anos 60 do século XX, objeto de estudo de eruditos acadêmicos, de curiosidade em circuitos contraculturais, mesmo um bem simbólico rentável no mercado espiritual new age e, mais recentemente, um método terapêutico reconhecido por setores da ciência médica e psicológica convencional (como é o caso do sistema mindfulness, originalmente desenvolvido por neurocientistas a partir das técnicas budistas clássicas de meditação Shamata). Várias tradições asiáticas praticam métodos contemplativos há milênios e os circuitos contemporâneos de comunicação intercultural global permitiram a sua difusão para outros contextos culturais. Além disso, há toda sorte de novas sínteses e experimentações e literalmente milhares de professores e professoras de meditação, nem sempre devidamente treinadxs e suficientemente experientes para ensinar, pelos critérios tradicionais. Em nossos tempos de excesso de individualismo, a meditação tem inclusive sido erroneamente incorporada ao arsenal de tecnologias de empoderamento individual, em consonância com o que foi chamado de “materialismo espiritual” pelo controverso mestre budista tibetano Chogyam Trungpa.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Aqui, o assunto é a meditação taoista em um contexto por assim dizer mais fiel à sua origem: o cultivo simultâneo da vida e do espírito. Quando falamos de meditação taoista, é importante lembrar que há vários métodos, a depender da linhagem. No caso do taoismo no Brasil, e referindo-me ao legado do mestre Pailin, o que ensinou a seus discípulos e discípulas, foi principalmente técnicas de meditação silenciosa que combinam o cultivo da serenidade, do Vazio e a circulação do por certos centros e trajetos (como o Pequeno Universo, a Via Láctea e os Oito Vasos Maravilhosos).

Mestre Liu recomendava a meditação “Sentar na Calma” como parte do treinamento para quem buscava a saúde e a longevidade, mas também para desenvolver sua espiritualidade latente, entendendo isso sem nenhum teor religioso. E explicava os fundamentos filosóficos da prática, citando clássicos taoistas como o Daodejing e o Yijing.

Falando do ponto de vista do iniciante, é preciso um entendimento intelectual correto do que é a prática e para que praticar. É preciso também obter instruções confiáveis para não perder tempo e não arriscar a saúde e a sanidade.

Detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor setembro de 2018.

Do ponto de vista do entendimento intelectual, dos vários conceitos presentes nos textos filosóficos e manuais taoistas, talvez um dos que gere mais confusão, não apenas para iniciantes, é o Vazio. Por um lado, essa palavra tem nas línguas ocidentais uma conotação negativa, até niilista. Ao falarmos em Vazio, quem não está familiarizado com a terminologia taoista e budista pode imaginar, erroneamente, negação, ausência, falta, nada. E consequentemente sentir angústia. Então é preciso primeiro entender que o Vazio, ou vacuidade, aqui se refere metaforicamente ao espaço aberto da potencialidade, onde tudo acontece e se manifesta. É como o silêncio antes e entre os sons, a quietude antes e entre os movimentos, o espaço entre os objetos e fenômenos. E não uma ausência dolorosa ou negação da vida. Em vez disso, é uma aspecto necessário da vida. A própria vida é uma alternância contínua entre quietude e movimento, como está expresso graficamente no símbolo do Taiji ☯. Embora a vacuidade seja uma experiência que não é totalmente descritível, é importante um entendimento inicial na direção correta.

Detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor setembro de 2018.

Do contrário, surgem dificuldades para por em prática instruções sobre cultivar o Vazio na meditação. Com a postura corporal, o método e a atitude mental corretas, surgem espontaneamente momentos de grande quietude na meditação, uma lucidez relaxada e silenciosa. A atividade mental agitada e incessante que os chineses chamaram de “macaco dos pensamentos” se detém espontaneamente. Esse é um momento para cultivar o Vazio. Não se trata de ficar pensando a respeito do vazio, para entendê-lo intelectualmente. Nem de passar um tempo imaginando como seria esse vazio. Muito menos de imaginar as coisas como vazias. Outro erro comum é imaginar que meditar depende de impedir pela força o fluxo da consciência, para chegar a um estado artificial totalmente livre de pensamentos. Isso não só é exaustivo e improdutivo, mas é também um erro tem efeitos colaterais nocivos. O capítulo 3 do Zuò Wàng Lùn (Tratado sobre Sentar e Esquecer), afirma que, ao proceder assim, cortando bruscamente toda atividade mental durante a meditação, a pessoa desenvolve uma dificuldade crescente de raciocinar e pensar, que não é o objetivo da meditação.

Para concluir, se a meditação é um método para atingir o estado natural, é possível começar a entender o que é meditação taoista por eliminação: não visa estados extraordinários, mas sim revelar algo que já está presente em nosso ser quando relaxamos; não é fugir da realidade, “viajar” ou adormecer, mas estar alerta e consciente; mas isso não se faz por uma concentração forçada, e sim por um foco relaxado que permite repousar a consciência.

Em março de 2020 está agendado um curso de meditação taoista em Brasília .

O Clássico Interno do Imperador Amarelo: 02. preservar a saúde nas estações do ano

Dando continuidade às postagens sobre os clássicos da medicina chinesa, o tema de hoje é a relação entre o ciclo das estações do ano e os cuidados de saúde. Para os antigos chineses, há uma correspondência entre os cinco movimentos (wǔxíng 五行) e as estações do ano. Isso quer dizer que nessas épocas predomina o que lhe é característico e que, portanto, podem ser mais ou menos propícias para certas atividades.

crédito da imagem: needpix.com, 2019

A primavera corresponde à madeira (mù 木). Em harmonia com isso, o capítulo dois das Questões Simples (素聞) do Clássico Interno do Imperador Amarelo, afirma que esse é “o momento apropriado de nascimento e expansão”. Em uma região de clima temperado, é o momento em que as plantas brotam e tornam a ficar verdes após o frio do inverno. O clássico recomenda dormir e acordar cedo, caminhar ao ar livre e inspirar ar fresco pela manhã, exercitar os músculos e tendões. Ao ficar em desarmonia com o da primavera, o fígado, órgão interno correspondente à madeira, será afetado. E como consequência, pode se manifestar uma doença no verão.

Montanhas no verão, pintura em seda de Qu Ding, acervo do Metropolitan Museum of Art, New York.

O verão corresponde ao fogo (huǒ 火). Por isso, é uma época de florescimento e frutificação, de apogeu do Yang. O clássico também recomenda acordar e dormir cedo, tomar sol, suar para permitir a saída do excesso de calor e não ficar frequentemente com fome. Ao ficar em desarmonia com o do verão, o coração, órgão interno correspondente ao fogo, será afetado. E assim pode surgir uma doença no outono.

Três Plantas do Outono, pintura de Zhou Xian, acervo do Walters Art Museum
Paisagem com figura, pintura de Xugu, acervo do Art Institute of Chicago

O outono corresponde ao metal (jīn 金). Por isso é uma época de amadurecimento e colheita. O clássico recomenda deitar mais cedo e proteger-se do frio, acordar cedo e apreciar o ar outonal, conservar o espírito tranquilo. Ao ficar em desarmonia com o do outono, o pulmão, órgão interno correspondente ao metal, será afetado. E pode surgir uma doença no inverno.

O inverno corresponde à água (shuĭ 水). Num clima temperado como o da China, uma época de congelamento da água, de hibernação dos animais, portanto uma época de recolhimento. O clássico recomenda manter-se aquecido e proteger-se do frio para não perturbar o Yang qì, deitar-se cedo, levantar-se cedo para ter contato com a luz solar, manter o coração em repouso, evitar a transpiração e o consumo e exaustão do Yang. Ao ficar em desarmonia com o do verão, o rim, órgão interno correspondente à água, será afetado. E pode surgir uma doença na primavera.

Ainda que essas observações e instruções tenha sido desenvolvidas na antiguidade chinesa tendo em vista uma região de clima temperado, se observarmos com atenção as transformações das estações em nosso clima tropical, também encontraremos as propriedades específicas dos cinco elementos. Assim como os sábios do passado aplicaram esses conhecimentos para preservar a própria saúde e para ensinar pacientes a prevenir o surgimento de doenças, podemos também fazer o mesmo.

As energias de todas as coisas da terra surgem na primavera, crescem no verão, dão passagem no outono e se ocultam no inverno; são todas geradas pela lei de variação das energias do Yin e do Yang das quatro estações. Dessa forma as energias Yin e Yang das quatro estações são as energias-raiz de surgimento e crescimento de todas as coisas (Questões Simples, capítulo 2).

O Clássico Interno do Imperador Amarelo: 1. a eficácia das agulhas de acupuntura

A postagem de hoje inaugura uma nova série sobre os clássicos da medicina chinesa. Desejo destacar como funciona essa medicina segundo a sua própria racionalidade. Como o método mais emblemático dessa medicina é a acupuntura e o Huangdineijing é o texto clássico fundamental, começaremos por ele. O Clássico Interno do Imperador Amarelo é dividido em dois livros: Questões Simples (素聞) e Eixo Espiritual (靈樞).

Página da edição chinesa do Suwen, que forma parte do Huangdineijing. Acervo da World Digital Library.

Como se sabe, esse clássico é escrito na forma de um diálogo entre o legendário Imperador Amarelo, um dos fundadores míticos da civilização chinesa, e Qibo, seu conselheiro para assuntos de medicina. é um texto que traz tanto os fundamentos filosóficos dessa antiga tradição médica, mundialmente reconhecida, mas também contêm conhecimentos técnicos que de algum modo norteiam a medicina chinesa até hoje. A medicina chinesa foi descrita como uma medicina de equilíbrio, porque a noção de Tao é o ponto de partida para sua compreensão da saúde.

Um aspecto importante presente no primeiro capítulo do Eixo Espiritual (靈樞) é que a eficácia da acupuntura depende do que às vezes se traduz como “sensação de acupuntura”; as expressões em chinês no texto são “chegada do qì” (Qìzhì 氣至) ou “obtenção do qì” (Déqì 得氣). Essa sensação é um indicador que o chegou ao ponto onde a agulha foi inserida e que, se a técnica for usada corretamente, fluirá da forma desejada pelo canal correspondente. O curioso é que não apenas o/a paciente deve sentir um campo de sensações características da ação terapêutica da agulha, descritas na literatura clássica, mas também em pesquisas modernas, em termos de calor, dormência, peso, eletricidade, fluxo, vibração, etc. Mas também, o/a acupunturista experiente deve desenvolver sua sensibilidade para perceber a chegada do e sua manifestação, antes mesmo que o/a paciente lhe comunique sua experiência ou que seu corpo reaja ao estímulo. Classicamente, a sensação de quem manipula a agulha é descrita como semelhante a um peixe que fisga o anzol. Mas para que ocorra essa experiência, o/a acupunturista deve aprender a inserir a agulha e manipulá-la em um estado de serenidade e atenção.

Agulha inserida no ponto Neiguan (PC6), foto do autor.

Em poucas palavras, uma vez que o ponto punturado está ativo, é possível incrementar o afluxo de ali, em doenças caracterizadas por deficiência; ou remover o excesso, seja ele resultante de um bloqueio no fluxo por estagnação, decorrente de um desequilíbrio interno (alimentar, emocional, constitucional), seja da invasão de um fator patogênico externo. O Eixo Espiritual afirma ainda que, quando tonificamos, o/a paciente deve sentir que “ganhou” algo. E, do mesmo modo, quando dispersamos, o/a paciente deve sentir que “perdeu” algo. Ou seja, a tonificação ou dispersão devem produzir sensações perceptíveis.