Modo de vida taoista: 1. uma arte de viver

Esse mês nossas postagens serão dedicadas ao modo de vida taoista. Essa expressão tem um sentido amplo: o taoismo é uma arte da existência, a arte de viver em sintonia com o Tao (Dào 道).  Colocando adequadamente em prática  os princípios e treinamentos taoistas no dia-a-dia, as consequências esperadas são um coração amoroso e sereno, um corpo flexível, vigoroso e saudável, relações mais harmoniosas com o ambiente circundante e os seres. taiji dragoesSe compreendemos os princípios e se os métodos são praticados corretamente, a vida se simplifica. O coração se abre. Desenvolvemos fluidez. Um mestre ou mestra realizadx é alguém que exemplifica isso com seu corpo, sem ao menos ter de dizer algo a respeito.  A natureza é a primeira mestra, mas em geral é um ser humano  que nos ensina a perceber os segredos da natureza. E assim, o presente é passado de geração em geração. Aprender, praticar, sentir os benefícios, ensinar.

Clássicos: 4. o I Ching como oráculo

Nesta quarta postagem da série Clássicos, o assunto é o uso oracular do  Clássico das Mutações (Yìjīng 易經). Dentre os vários métodos para consulta (utilizando varetas, moedas, pedras preciosas ou cartas), o oráculo tradicional das três moedas é bastante popular por  combinar praticidade e profundidade, além de ter sido divulgado de forma acessível em várias das traduções do clássico para línguas ocidentais. Como opera o oráculo? Com uma pergunta clara e sucinta, que permita uma resposta mais elaborada que sim ou não, é possível obter do oráculo uma descrição da situação e orientações para lidar com um desafio em particular.  As três moedas são lançadas seis vezes, uma vez para cada linha que, calculada de baixo para cima, forma um hexagrama. Caso haja dentre elas linhas móveis, forma-se também o “hexagrama futuro”. E consulta-se os textos correspondentes.moedas chinesas.jpg

No célebre prefácio de C.G. Jung à tradução do clássico para o alemão por Richard Wilhelm,  o psicólogo suíço utiliza o seu argumento sobre a sincronicidade para explicar o funcionamento do oráculo. Haveria uma coincidência significativa entre uma situação do mundo e o símbolo apresentado, expressão do insconsciente coletivo. Essa relação seria de natureza acausal, mas coerente. Obviamente, essa é uma explicação de tipo psicológico para um fenômeno atestado em inúmeras civilizações. E permite entender a lógica  de diversos oráculos, não somente do Yìjīng. O propósito adequado de um oráculo é dar inteligibilidade a situações desafiadoras. Não substitui nem o discernimento nem a responsabilidade pessoal de quem o consulta, mas oferece elementos para contemplar intuitivamente um dilema antes de tomar uma decisão e agir.

Clássicos : 3. o I Ching como “mapa do universo”

Nesta terceira postagem da série Clássicos, o assunto ainda é o Clássico das Mutações (Yìjīng 易經). Oito trigramas, resultantes da combinação de yīn e/ou yáng em grupos de três linhas  sobrepostas representam os fenômenos básicos da natureza: ☰ Céu e ☷Terra , ☴Vento e  ☳Trovão, ☲Fogo e ☵Água, ☱Lago e ☶Montanha.

céu anterior
Configuração pré-natal do Bāguà

Na configuração pré-natal, ou do Céu Anterior, os trigramas estão dispostos em uma relação de oposição complementar, expressando o estado potencial,  anterior à manifestação. Por sua vez, agrupados aos pares, os trigramas formam 64 combinações possíveis, os hexagramas, combinando duas imagens aparentes, os trigramas superior e inferior, e contendo mais duas imagens escondidas, os trigramas nucleares.  Esses são os emblemas de 64 situações distintas, sempre momentos de um processo. A mudança de uma situação para outra é representada pela transformação de uma ou mais linhas, de yīn para yáng ou vice-versa. Assim,  um hexagrama poderia se transformar em qualquer um dos outros sessenta e três hexagramas, indicando a mutabilidade e imprevisilidade do fluxo dos acontecimentos. Já que contém imagens que podem representar qualquer fenômeno ou situação, o clássico permite compreender circunstâncias concretas e fornece orientações para resolução de problemas específicos. Uma pessoa sábia é aquela que sabe se posicionar favoravelmente diante das circunstâncias, mesmo as aparentemente mais desfavoráveis. Isso se chama “estar de acordo com o tempo”. E é esse posicionamento sábio que é a meta da consulta oracular, objeto da próxima postagem da série.

sobre a periodicidade do blog Qigong Taoista

img_3196Carxs leitoras e leitores, o blog Qigong Taoista está com periodicidade sazonal. Lançamos regularmente postagens mais curtas no nosso perfil do instagram, automaticamente compartilhadas também no Facebook. Periodicamente lançaremos também postagens complementares mais extensas, aqui na página da wordpress e simultaneamente na nossa fanpage no Facebook. Os assuntos são variados, organizados em séries, mas sempre sobre os saberes e o modo de vida taoista. Caso deseje que aprofundemos alguma temática específica, deixe um comentário. Boa leitura!

Clássicos: 2. O I Ching como texto

Nessa segunda postagem da série Clássicos, continuo falando sobre o Clássico das Mutações. Somaram-se aos 64 símbolos originais, os textos de três personagens importantes:

hexagrams
Os 64 hexagramas na disposição do rei Wen.

O rei Wen e seu filho, o duque de Zhou, fundadores da dinastia Zhou (1046 a.C. a 771 a.C.), responsáveis, respectivamente  pelos versos sobre a decisão e pelo texto da linha. E o filósofo Confúcio, autor da grande imagem e da pequena imagem, além de escrever As Dez Asas, o conjunto de comentários acerca do clássico. Assim, atualmente, para compreender o clássico, estuda-se os textos diretamente associados a cada hexagrama, que descrevem um símbolo e as diferentes nuances da situação em função da presença de linhas móveis no hexagrama, fundamentais na consulta oracular, mas também os tratados de caráter mais geral. É apenas com a familiaridade com o simbolismo dos hexagramas, ganha com o tempo, com a contemplação do seu sentido, e com a prática oracular, que o Clássico das Mutações (Yìjīng 易經) vem gradualmente a se revelar. Torna-se uma ferramenta viva com a qual se pode dialogar em busca de sabedoria.

Clássicos: 1. o Tao e o I Ching

Esse mês teremos postagens sobre textos clássicos taoistas estudados em nossa linhagem. A transmissão taoista do mestre Liu Pai Lin afirma que o Clássico das Mutações (Yìjīng 易經), mais do que um oráculo, é uma descrição dos segredos do universo e uma chave para vários treinamentos taoistas.

Suas origens se perdem nas brumas do tempo. Antes de ser um livro, era um conjunto de símbolos, cuja criação foi atribuída a um sábio primordial legendário: Xī, um dos imperadores míticos criadores da civilização chinesa, que teria vivido no terceiro milênio antes de Cristo. Utilizou uma linha interrompida () para representar yīn() e uma linha contínua (), para yáng (). Com as linhas, compôs os oito trigramas. E com esses, os 64 hexagramas.

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Fuxi, pintura em seda da dinastia Song.

Assim, formulou imagens que permitiriam representar simbolicamente todos os fenômenos e situações como combinações diversas de yīn e yáng, sejam fenômenos naturais, eventos históricos, relações sociais, instituições, objetos, etc.  A vantagem de imagens simples e sintéticas, no caso, sequências de seis linhas horizontais formando um hexagrama, é que podem evocar diferentes sentidos conforme a situação. Assim, codificam uma compreensão de como o universo funciona e ao mesmo tempo descrevem um evento ou circunstância particular, quando surgem como resposta a uma consulta oracular. Entender seu simbolismo exige uma combinação do  conhecimento intelectual dos sentidos tradicionais das imagens e do significado do texto que as elucida, aliado a uma apreensão intuitiva das nuances do símbolo e de seu sentido contextual. No mês de agosto, estarei em Goiânia para ministrar um curso de introdução ao I Ching.

O Corpo Taoista: 4. a educação corporal

Nesta quarta postagem da série O Corpo Taoista, o assunto é a educação corporal como arte da existência. Levar em consideração apenas as concepções de corpo sem atentar para as práticas corporais taoistas seria um grave mal entendido, pois os conceitos são descrições que permitem expressar e cultivar experiências. Traduzindo em termos práticos, cultivar o Tao equivale a uma (re)educação dos sentidos, da postura e dos modos de se mover. Mais uma vez, como a expressão dos mesmos princípios básicos, o corpo taoista senciente e em movimento, percebe sem se agitar e move-se em conformidade com o que é observado na natureza como a  chave para a continuidade: movimento lento, contínuo, gradual e circular, como foi reconhecido pelos antigos sábios taoistas ao contemplarem os astros, os ciclos das estações e outros fenômenos naturais. Ou como afirma a transmissão oral, inspirada no  Yijing: “o Céu e a Terra são duradouros porque sabem se mover continuamente”. Não só o movimento corporal se inspira nos ritmos naturais, mas também se harmoniza à manifestação cíclica de yin e yang no universo.  Há também inúmeros exercícios baseados nos movimentos de animais, reais ou míticos, uma apropriação seletiva de suas qualidades. O Caminho é percorrido por meio de um duplo aprendizado: contemplando diariamente a natureza e praticando os métodos transmitidos ao longo das gerações, tendo como exemplo uma pessoa viva que encarna a tradição com seu próprio corpo, como foi o caso do mestre Liu Pai Lin ao longo de cerca de duas décadas no Brasil.

mestres taoistas

Na foto, da direita para esquerda, mestre Liu Pailin e alguns de seus mestres: Liu Beizhong (linhagem Kunlun), o ancião Nanshi Laoren, Liao Kong (linhagem Longmen), Tanlaisheng (linhagem Jinshan).

 

 

O Corpo Taoista: 3. a especificidade do ser humano

Nessa terceira postagem da série O Corpo Taoista, recapitulo uma lição aprendida da  transmissão do mestre Liu Pai Lin, a particularidade do ser humano, como ponto de união entre Céu e Terra, se expressa em algumas características corporais de nossa espécie: o bipedismo, as mãos de cinco dedos e o fantástico cérebro humano. A postura bípede faz da coluna vertebral um eixo vertical. A cabeça e as mãos se conectam com o Céu, o baixo ventre e os pés se conectam com a Terra. Mais precisamente, as digitais dos dedos e o língtái (靈台), situado na região do terceiro ventrículo, conectam-se com os 10 Troncos Celestes (天干), enquanto a sola dos pés e o yīnqiào (陰竅), situado nos genitais internos, conectam-se com os 12 Ramos Terrestres (地支). São estas características que permitem captar o qì da natureza, para cultivar a vida e o espírito. O qì do Céu e o  da Terra se reúnem no centro do corpo, formando um Taiji, em torno do qual está um Bagua. Portanto, cultivar essa ligação é, ao mesmo tempo, qìgōng (炁功) e meditação (静坐). Mantendo as mãos e a atenção sobre a barriga, literalmente tomamos consciência do nosso centro, nosso Taiji, fazemos as eletricidades de cima e de baixo interagirem.

6 centros

Além disso, um ser humano vivo possui 6 Centros (六神竅), relacionados a diferentes aspectos da consciência, que permitem a interação com o da natureza para cultivar o Tao. A circulação dos 6 centros, ou pequeno universo, é um método clássico de meditação taoista. (Na foto acima, o diagrama dos 6 Centros utilizado pelo mestre Liu Pai Lin).

O Corpo Taoista: 2. O País Interior

Nessa segunda postagem da série O Corpo Taoista, desenvolvo o ponto anterior. O corpo, como pequeno universo, possui uma paisagem interna que, como objeto de contemplação meditativa, pode ser descrito como “país interior”. Esse entendimento justifica a leitura dos conselhos para o bom governo no 3º poema do Daodejing (道德經) como governo de si:

A pessoa sagrada governa                                                                                                  Esvazia seu coração                                                                                                             Enche seu ventre                                                                                                            Enfraquece suas vontades                                                                                           Robustece seus ossos

O coração é a sede do shén (): tem o sentido amplo de mente, ao mesmo tempo pensamento e emoção. O ventre, a barriga, remete ao centro do corpo, a região em torno do umbigo, a raiz ou origem fetal (胎元). Vontades aqui são desejos. Robustecer os ossos é um dos efeitos do cultivo da vida (命功). Assim a pessoa sábia cultiva a serenidade do coração, a plenitude do e a simplicidade no modo de vida. E vivendo assim obtém a combinação de longevidade e serenidade.

Mas o país interior pode ter ainda conotações mais literais: composto de mar, campos, bosques e montanhas, por palácios nos quais estão divindades que habitam os órgãos e regem a saúde, como no célebre diagrama do Neijingtu, abaixo.

O Corpo Taoista: 1. ponto de partida

As postagens desse mês serão focadas na temática do corpo. Uma característica marcante da tradição taoista é justamente que a espiritualidade não se opõe à corporeidade. Mais precisamente, o corpo vivido é a base do caminho.  Em primeiro lugar, contrastando com a ideia de corpo-coisa descrito como “máquina maravilhosa”, fundante para a medicina e as ciências da vida na civilização ocidental, o corpo taoista é um “pequeno universo”. Essa afirmação tem um sentido  preciso,  que combina a teoria dos cinco movimentos constitutiva da medicina tradicional chinesa desde o Huangdi Neijing, e a filosofia yin/yang apresentada em clássicos como o Daodejing e o Yijing. O corpo humano é formado pelas mesmas potências que compõem e permeiam o mundo natural. Essa afirmação ampla não seria questionada pela ciência ocidental moderna, para a qual é evidente que a matéria animada e inanimada tem a mesma origem e componentes básicos. No entanto, no caso do corpo taoista, a conotação é um pouco distinta. As conexões e semelhanças entre o corpo humano e os fenômenos naturais são também da ordem de correspondências e ressonâncias, não só de componentes básicos comuns a eles.  órgãos, vísceras, tecidos e fluidos do corpo humano correspondem aos mesmos cinco movimentos (wuxing) – fogo, água, terra, metal e árvore – que formam a paisagem natural. Além disso, determinados centros sutis ressoam com o mesmo qì que permeia a Terra e o Céu. Esse entendimento é o pano de fundo para o treinamento taoista, como cultivo do que é natural e retorno à natureza.

(Na foto, altar do deus da montanha, templo Zhinan, Taipei)