Medicina chinesa e treinamentos taoistas: 1. aproximações e diferenças

Os Seis Centros (Liùshénqiào 六神竅), diagrama utilizada pelo mestre Liu Pailin em suas aulas de Daoyin e meditação. 

A postagem dessa semana inaugura uma nova série que discute as relações  entre medicina chinesa e treinamentos taoistas. É sabido que o fundamento filosófico e cosmológico da medicina chinesa pode ser corretamente descrito como taoista: a filosofia yīn/yáng e a teoria dos cinco movimentos são seus pilares. E além disso, conceitos, teorias e outros elementos da medicina tradicional informam tanto treinamentos para longevidade quanto métodos de meditação taoista. No entanto, não é necessário ser taoista para praticar medicina chinesa, nem tampouco praticar o taoismo implica um conhecimento aprofundado de medicina.

Hoje gostaria de responder a pergunta de um aluno de acupuntura: qual a relação entre o sistema de canais, colaterais (jīngluò 經絡) e os pontos de acupuntura (xué 穴) da medicina chinesa, e os centros (qiào 竅), campos de elixir (dāntián 丹田) e círculos/circulações (xuán 旋) dos treinamentos taoistas?

Em primeiro lugar, há certa correspondência entre o trajeto de algumas circulações utilizadas em treinamentos de qìgōng (e meditação) e canais extraordinários, como por exemplo o circuito formato pelo Vaso da Concepção e o Vaso Governador, no treinamento do “Pequeno Universo” ou “Circulação dos Seis Centros” (representados na ilustração acima). Grosso modo, Renmai e Dumai correspondem aos caminhos do Fogo e do Vento da alquimia interna taoista. Contudo, a circulação dos seis centros não segue pela superfície da cabeça, acompanhando os pontos do trajeto do Vaso Governador na linha mediana do crânio, em vez disso conecta vários centros importantes no interior da cabeça, o que poderíamos supor que corresponde a um ramo interno do Dumai.

Comparação semelhante pode ser feita entre os pontos de acupuntura e os centros. Existe uma correspondência entre algumas localizações importantes, mas não são idênticas. Por exemplo, o ponto VC1 ( Huìyīn 會陰), situado no períneo, corresponde ao centro Yīnqiào (陰竅), no entanto, este segundo se situa nos genitais internos. O ponto VG4 (mìngmén 命門) corresponde ao centro dos rins (shènqiào 腎竅), mas enquanto o ponto de acupuntura se situa na coluna vertebral, o centro se situa no interior do corpo, entre os rins e à frente da coluna. Resumindo, em geral os centros utilizados em meditação e qìgōng estão situados mais internamente no corpo, além do alcance do agulhamento, ao contrário dos pontos de acupuntura.

Além disso, há os campos de elixir, que são regiões maiores, que abrangem vários centros e pontos de acupuntura. A transmissão que recebi fala em três:  superior, médio e inferior. Estão situados, respectivamente, na cabeça, no peito e no ventre. Possuem funções e  localizações distintas do Triplo Aquecedor (Sānjiāo 三焦), víscera da medicina chinesa sem correspondência com as estruturas identificadas pela anatomia ocidental, mas que, entre outros aspectos, representa três conjuntos de funções fisiológicas: respiração/circulação, digestão, excreção.

Ou seja, é preciso prudência ao estudar os dois campos de conhecimento tradicional chinês, prestando atenção a aproximações e distinções. Minha recomendação é evitar o realismo ingênuo. Não se trata de descobrir uma verdade objetiva separada de construções simbólicas culturalmente situadas e de experiências corpóreas. Nenhum dos conceitos mencionados aqui refere-se a um objeto físico que pode ser apontado, mas compõem uma tecnologia cultural eficaz que permite prevenir e tratar doenças, promover a saúde e a longevidade, acessar experiências meditativas e desenvolver um certo tipo de consciência corporal.

Isso fica evidente quando constatamos as diferenças de terminologia, descrição e interpretação das várias linhagens taoistas, mas também quando fazemos estudos comparativos do que poderia ser chamado de “psicofisiologia do corpo sutil” conforme elaborada também em outras tradições como o yoga e o tantra, tanto hindu quanto budista, só para citar uns exemplos.

Quem supõe que os centros e campos de elixir descritos pelos taoistas sejam a mesma coisa que os chakras das tradições indianas, descobrirá, com surpresa, que suas formas, cores, localizações, funções e quantidades divergem enormemente. Mais interessante ainda, nem ao menos no interior de uma mesma tradição há esse consenso, exceto quando foi forçado em certas circunstâncias históricas.
A esse respeito, achei particularmente instrutivo o artigo de Christopher Wallis, the real story on the Chakras. Ele demonstra que, até o final do século XIX, não havia ainda um sistema unificado de chakras, mas sim várias versões, dependendo da escola. Foi a preservação e tradução de uma obra indiana para línguas ocidentais que fez o sistema de Sete chakras a concepção oficial e canônica do yoga. E afirma que os chakras tem função prescritiva e não descritiva, são um método ióguico e meditativo para organizar a circulação do prana no corpo de certa maneira, não a descrição de uma realidade a priori.
E por que me refiro a esse assunto em um blog sobre taoismo? Há uma analogia entre os diversos sistemas dentro uma mesma tradição e na comparação entre tradições distintas,  mas não há uma correspondência coerente. Podemos aprender a mesma lição proposta por Wallis a respeito também dos conceitos do taoismo e da medicina chinesa. São métodos para induzir certas experiências, uma linguagem eficaz, resultante da experiência acumulada de incontáveis gerações de praticantes, mas não são fatos objetivos a priori que devam ser debatidos dogmaticamente.

0 resposta para “Medicina chinesa e treinamentos taoistas: 1. aproximações e diferenças”

  1. Caro Bizerrril…
    “…métodos para induzir certas experiências… linguagem eficaz… e não fatos objetivos… “
    Você está sugerindo, da mesma forma que com os chakras , podemos pensar assim sobre os 3 Tan Tien?
    Abraço!

    1. Sim, estou conjecturando que esses conceitos remetem a experiências, inclusive a sensações corporais, e que são eficazes, pois fazem algo concreto acontecer, mas não precisamos reificá-los, o que poderia ser um beco sem saída. Pois caímos na tensão entre demonstração científica de um fato versus “crença”. Não é preciso acreditar em “dantian” para que os métodos funcionem.

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