O Tao e a exaustão contemporânea

Na postagem de hoje, damos continuidade ao diálogo entre a tradição taoista e o mundo contemporâneo. Já há algumas décadas o estresse e as doenças dele decorrentes foram consideradas um dos grandes problemas mundiais de saúde pública nas grandes cidades. Mais recentemente, a Organização Mundial da Saúde lançou um alerta sobre os danos causados pelo estresse no ambiente de trabalho. Não é que a tensão e a exaustão fossem desconhecidas de nossos ancestrais. Em sua análise sobre a origem das doenças, o excesso de trabalho foi considerado pela medicina tradicional chinesa como um fator de adoecimento, por desgastar os recursos do organismo, esgotando precocemente o e o jīng. Quem deseja viver muito deveria buscar um equilíbrio entre atividade e repouso, não simplesmente entre trabalho e lazer. Essa advertência é uma aplicação elementar da filosofia yīn-yáng ao manejo da saúde e o cultivo da vida. Para que haja equilíbrio, onde há movimento precisa haver também quietude, em uma saudável alternância, um tàijí ☯.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016

No entanto, em nossos tempos de aceleração constante, de movimento desenfreado, essa questão se tornou mais aparente e urgente. Hoje em dia, são muitos os apelos para a corrida desenfreada: incontáveis estímulos, tarefas, conexões, informações, atividades, desejos de consumo, imperativos da sobrevivência. Agitadxs e nervosxs, acabamos ficando exaustxs, por excesso de trabalho, mas também na tentativa de aliviar a tensão, nos momentos de lazer. Relaxar, uma resposta natural do organismo, que pode ocorrer periodicamente a qualquer momento, tornou-se um luxo, algo que necessita de todo um aparato técnico para ser obtida por alguns instantes. Uma civilização do excesso. Mas onde queremos chegar, correndo assim? Adoecemos e envelhecemos precocemente, antes de poder desfrutar dos resultados de nossos esforços. Como já dizia, repetidas vezes, o mestre Pailin: “pessoas de meia idade, andem devagar” (a caminho do cemitério)!

A população urbana tem desaprendido o valor do silêncio, do repouso, da contemplação. A vida contemporânea é pautada por um verdadeiro horror à quietude, ao espaço vazio, à pausa. E não é simplesmente insensatez individual, mas uma insanidade coletiva, sistêmica. É um imperativo dessa entidade metafísica insaciável, o Mercado: trabalhe, produza, enriqueça, lucre. Mas é também um hábito profundamente entranhado em nossos corpos. Mesmo quando deixamos o ambiente de trabalho, seguimos em uma atividade incessante, nem que seja entreter-se na tela de um dispositivo eletrônico. E assim avançamos, dia a dia, à beira do colapso. Não são apenas trabalhadores e trabalhadores exploradxs que vivem assim, mas também seus patrões. De fato, é preciso estar numa posição muito privilegiada no mundo profissional para poder recusar trabalho, estabelecer limites, desfrutar de horas suficientes de descanso e lazer. Não é uma questão apenas de discernimento individual e sabedoria, mas de condições sociais objetivas.

O filósofo Byung-Chul Han (1959-)

O filósofo Byung-Chul Han descreve a situação atual em seu livro “Sociedade do Cansaço“. Vivemos em uma sociedade do desempenho, formada por “empresários de si mesmos”(p.23), individualmente responsáveis por seu próprio sucesso ou fracasso, que naufragam na depressão quando não conseguem cumprir a obrigação de ter sucesso. Essa exigência constante de sucesso, visibilidade, produtividade é que nos leva à exaustão. O excesso exaustivo de desempenho tornou-se sinônimo de investir na própria carreira e até na própria vida, uma forma de autoexploração. Daí a epidemia de depressão, como “cansaço de fazer e de poder”(p.29), numa sociedade em que é preciso poder tudo. O excesso não está somente no trabalho, mas também nos estímulos, informações e desejos. Daí, uma atenção dispersa, incapaz de contemplar, que se entendia com facilidade e odeia o tédio. Han faz um elogio à contemplação profunda e ao lento, que embora não se refira às práticas taoistas e sua arte da existência, bem que podem nos servir aqui: “Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. […] No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas” (p. 36).

Detalhe de pintura da exposição temporária “imortais”, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Séculos antes da crise civilizatória atual, a tradição taoista já havia descoberto o valor da contemplação, cultivada na imobilidade do corpo por meio da meditação, e nos movimentos suaves e lentos das técnicas que hoje chamamos de qìgōng e tàijíquán, mas cujos princípios são muito mais antigos que esses nomes modernos. Silêncio e quietude, não como conceitos abstratos, mas como experiências saboreadas com o corpo. A serenidade não só como aspecto de um caminho contemplativo, se preferirem espiritual, mas como parte integrante do cultivo da vida, da boa saúde, aqui compreendida como equilíbrio dinâmico, não como justificativa para a obsessão pela boa forma.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *