Definir o Tao é uma tarefa ingrata. No primeiro poema do Daodejing (道德經), Laozi alerta que o Grande Tao não pode ser nomeado. Qualquer praticante taoista sabe que o Tao é algo que se desvela por meio da experiência meditativa e da contemplação, não algo de ordem conceitual, que pode ser devidamente descrito com o intelecto. Mas e o taoismo?
Esse é o tema da postagem de hoje. Em primeiro lugar, uma maneira comum de tratar o tema é situar o taoismo dentre as grandes religiões mundiais, mencionada em qualquer dicionário de religiões ou tratado de história das religiões. A sinóloga Livia Kohn (2001, p. 1) o descreveu como “religião autóctone organizada da China tradicional”. Possivelmente, suas origens remontam a um desenvolvimento filosófico de formas locais de xamanismo, como apontou Toshihiko Izutsu. Quanto à oposição comum entre taoismo filosófico e religioso, outra sinóloga, Isabelle Robinet, considera a distinção insignificante. Além disso, ambas concordam com o fato básico que o taoismo nunca foi uma religião unificada. Em vez disso, consistiu em uma combinação de ensinamentos, que só pode ser compreendida por meio de suas manifestações concretas. E por outro lado, tanto para Robinet, quanto para outro autor, Kristopher Schipper, não se deve confundir o taoismo com a religiosidade popular chinesa. É importante também lembrar, que a noção de religião é eminentemente ocidental, e foi aplicada a aspectos de outras culturas. Em geral, ao definir taoismo como religião, se leva em consideração a existência de templos, de instituições sociais, que contêm uma hierarquia sacerdotal, os aspectos de sua cosmologia que dizem respeito ao sentido da vida, suas concepções sobre a morte e o pós-morte, divindades e outros seres espirituais com os quais se interage, bem como rituais que abordam estas temáticas e tecnologias contemplativas.
No entanto, em função da própria diversidade interna, nem toda escola ou linhagem taoista apresenta essas características. E além disso, há diversos outros saberes e práticas que se desenvolveram no contexto do taoismo e que não seriam descritas adequadamente como propriamente religiosos: artes marciais, práticas de longevidade, os diversos ramos da medicina chinesa, geomancia, caligrafia, pintura, música, astrologia, etc.
Uma outra possibilidade seria descrever o taoismo como uma tradição, inclusive como uma tradição contemplativa, diante da profusão de métodos meditativos centrais para várias de suas linhagens. No entanto, para isso, seria preciso, primeiro, elucidar, que significa tradição. Aqui, refiro-me simplesmente a uma transmissão cultural intergeracional de longa duração. E, no caso do taoismo, especificamente, um produto da civilização chinesa, que se tornou no século XX um patrimônio da humanidade. É importante frisar aqui, que não se trata de um conhecimento ancestral imutável. Seria um erro grave retirar o taoismo – ou qualquer outro fenômeno queiramos chamar de tradição – do fluxo da história. Todo conhecimento cultural vivo é sujeito, por sua própria natureza, à mudança, à releitura e à inovação, mesmo que o passado seja tratado com reverência. Aliás, o que torna algo um clássico é justamente a riqueza de sentido que permite novas releituras. Outro aspecto de igual relevância, é afastar-nos do uso do termo tradição como forma para legitimar o imaginário conservador. Não é o caso de idealizar o passado, na contramão da compreensão aprofundada de suas condições históricas. Uma tradição não é uma essência, mas sim um fluxo, com determinadas características que permitem perceber algumas continuidades em meio às descontinuidades.
Que há de fundamental no taoismo? A noção de Tao (道), que aponta discretamente para o grande mistério da vida, com um certo senso de ordem e fluidez, mas que resiste às tentativas de descrevê-lo em palavras e categorizá-lo. Pode apenas ser indicado alusivamente, por exemplo, por meio do símbolo do taiji ☯, a mais sintética imagem do caráter dinâmico, complementar, cíclico de todos os processos da existência. Talvez a mais genial criação da civilização chinesa, a intuição de base que está por trás de inúmeras das suas grandes realizações. Toda a lógica do Yijing ou mesmo dos cinco movimentos, a base da medicina chinesa, derivam dessa primeira intuição.
Respeitando a diversidade de linhagens e escolas, prefiro concluir com algumas ponderações derivadas da minha própria experiência, como estudioso e praticante da escola que mestre Liu Pailin fundou no Brasil, e como discípulo da linhagem Kunlun. No período em que viveu no Brasil, mestre Pailin fez questão de frisar que seus ensinamentos se referiam ao conhecimento da natureza, à compreensão do funcionamento do Céu e da Terra e de suas implicações na vida humana. Transmitiu práticas de longevidade, terapêuticas da medicina chinesa e métodos de meditação que representam uma síntese das várias linhagens que conheceu e praticou. Nesse sentido, o que ofereceu a seus discípulos e discípulas foi o que chamava de um Caminho de Vida, que incluia a dimensão da espiritualidade, mas não à maneira de uma religião formal, nem ao menos do taoismo de tipo sacerdotal e/ou monástico.