Medicina Chinesa: 03. Que é um ponto de acupuntura?

Uma particularidade da acupuntura é que as agulhas não são inseridas de modo aleatório ou meramente intuitivo no corpo de um/a paciente. Existe todo um conhecimento técnico prévio, uma compreensão desenvolvida ao longo dos milênios de existência da medicina chinesa, por meio da prática clínica e do estudo do corpo humano. Na maior parte das vezes, cada agulha é inserida em uma localização bastante específica, chamada “ponto de acupuntura” (xuédào 穴道).

Gravura médica chinesa do século XVIII, ilustrando pontos de acupuntura, acervo da British Library

O capítulo 58 das Questões Simples (Sùwén 素聞), livro que compõe o Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng 黃帝內經), afirma que “o ser humano tem 365 acupontos que correspondem ao número de dias do ano”.

A sinóloga Elizabeth Rochat de la Vallée, estudiosa dos clássicos médicos e taoistas chineses.

Em todos esses casos, um ponto de acupuntura é uma localização anatômica precisa, uma pequena região circular que pode ser identificada por palpação, com uma consistência diferente das áreas adjacentes. Simplificando, quando tocamos um ponto de acupuntura com a ponta do dedo, sentimos uma sensação diferente, como uma cavidade. De fato, essa seria uma tradução literal para o termo chinês xué (穴): cavidade, gruta, caverna, morada, vala, toca de animal, como explica a sinóloga Elizabeth Rochat de la Vallée em sua análise precisa dos 101 conceitos-chave da medicina chinesa.

Normalmente, quando se vê os pontos de acupuntura em um tratado de referência, podemos identificar quatro situações: o ponto pertence a um dos doze canais ordinários, correspondente ao sistema dos órgãos e vísceras (臟腑), que percorrem o corpo, cada qual num trajeto específico; o ponto pertence ao Vaso da Concepção (任脈) ou ao Vaso Governador (脈); localizados na linha central do tronco, respectivamente na frente e nas costas; o ponto influencia algum dos Oito Vasos Maravilhosos (categoria a que pertencem o Vaso da Concepção e o Vaso Governador), mas pertence a um dos 12 canais ordinários; o ponto é classificado como “ponto extra”, não é considerado como pertencente a um dos canais.

Em geral os pontos tem referências anatômicas claras próximas a eles, como por exemplo protuberâncias ósseas, tendões, o espaço entre músculos, etc. Além disso, um ponto de acupuntura não coincide totalmente com um vaso sanguíneo maior: a agulha de acupuntura não deve transpassar uma veia ou artéria. O tratamento por sangria funciona de forma diferente de uma sessão de acupuntura com agulha filiforme, e será explicado em outra postagem.

Para o/a acupunturista, a localização precisa do ponto tem como consequência uma inserção mais fácil e eficaz da agulha.

Medicina Chinesa: 01. que podemos tratar com acupuntura?

A acupuntura é um dos mais conhecidos métodos terapêuticos da medicina tradicional chinesa e faz parte de uma abordagem ampla de cuidado integral. Desde 1979, a Organização Mundial da Saúde publicou uma lista de problemas de saúde tratáveis por acupuntura, que desde então tem sido ampliada por novos estudos na área de saúde. O público em geral, no entanto, ainda não está plenamente informado de todos os seus benefícios. E este é o objetivo da postagem de hoje.

Pintura retratando o canal zuyangming, correspondente ao estômago, data e autor desconhecidos, Welcome Collection Gallery, disponível em Wikimedia Commons.

A acupuntura estimula os mecanismos de autorregulação do nosso próprio corpo, por meio da inserção de pequenas agulhas em localizações precisas, os chamados “pontos de acupuntura” (xuédào 穴道), que devem ser selecionados em conformidade com cada caso. A explicação tradicional para a eficácia das agulhas foi descrita em uma postagem anterior. Tanto o diagnóstico quanto o tratamento da acupuntura baseiam-se em noções da antiga filosofia chinesa, como as polaridades dinâmicas Yin/Yang e os Cinco Movimentos (Metal, Água, Madeira, Fogo e Terra) que compõem todas as coisas. Como suas noções de saúde e doença são diferentes, a acupuntura possa tratar várias doenças definidas pela medicina ocidental, mas o faz com uma perspectiva própria. E isso é importante para a eficácia e profundidade do tratamento. Do contrário, temos apenas um uso “alopático” das agulhas, focado em sintomas, não no equilíbrio sistêmico.

Por exemplo, na versão mais convencional e reducionista da ciência médica moderna, a eficácia da acupuntura, quando aceita, é explicada principalmente em termos de analgesia, ou seja de alívio da dor. Essa é uma explicação inespecífica para tratamentos com o uso de pontos específicos, como se qualquer agulha em qualquer ponto tivesse o mesmo efeito. E deixa de fora vários dos benefícios já conhecidos da acupuntura que não se resumem à ação analgésica local, mas sim a efeitos mais sistêmicos, como pode ser visto pelo relatório de 1996 da Oganização Mundial da Saúde sobre os resultados de estudos controlados demonstrando a eficácia da acupuntura no tratamento de várias doenças e sintomas. Talvez um dos principais obstáculos para uma compreensão mais abrangente dos benefícios da acupuntura é que a medicina chinesa trabalha com uma racionalidade própria, diferente da medicina ocidental convencional, mas igualmente válida.

Apenas para dar uma ideia para nossxs leitorxs não familiariazadas com as classificações diagnósticas da medicina chinesa, segue abaixo a lista de 1979, do que pode ser tratado por acupuntura, usando a terminologia convencional.

  • vias respiratórias superiores: rinite, sinusite, amigdalite agudas; resfriado comum.
  • sistema respiratório: bronquite aguda, asma brônquica.
  • distúrbios oculares: conjuntivite aguda, catarata (sem complicações), retinite, miopia infantil.
  • distúrbios da boca: dor de dente (inclusive pós extração dentária), gengivite, faringite.
  • distúrbios gastrointestinais: espasmos do esôfago, soluços, gastrite, úlcera, colite, desinteria bacteriana, constipação, diarreia.
  • desordens neurológicas e musculoesqueléticas: dor de cabeça, enxaqueca, nevralgia do trigêmeo, paralisia facial em estágio inicial, sequelas de AVC, neuropatias periféricas, sequelas dos estágios iniciais de poliomielite, nevralgia intercostal, enurese noturna, dor lombar, ciática, “ombro congelado”, “cotovelo de tenista”, osteoartrite.

Um documento mais recente da OMS de 1996, baseado em estudos clínicos controlados, resumido nesse link, acrescenta que a acupuntura oferece tratamento eficaz comprovado para as seguintes condições: reações adversas decorrentes de quimio e radioterapia; cólica biliar; depressão; distúrbios do ciclo menstrual; hipertensão e hipotensão arterial; dores no joelhos; má posição fetal; leucopenia; enjoo matinal, náusea e vômito; dor cervical; dores temporomandibulares; periartrite do ombro; dor pós-operatória; cólica renal; derrame; artrite reumatoide; distensões e luxações.

E indica também efeito terapêutico da acupuntura, mas com necessidade de mais pesquisas, para: dor abdominal; acne; dependência química e desintoxicação; dor oncológica; colecistite crônica; diabete mellitus sem dependência de insulina; dor de ouvido; epistaxe; infertilidade feminina; fibromialgia; fascite; gota; herpes zoster; insônia; disfunção sexual masculina não orgânica; neurodermatite; obesidade; ovário policístico; convalescença pós-operatória; síndrome pré-menstrual; prostatite crônica; infecção urinária recorrente; disfunção temporomandibular; colite ulcerativa crônica; cálculos renais e urinários; demência vascular; etc.

Resumindo, como a acupuntura pertence a uma medicina tradicional completa, seu uso adequado pode beneficiar todos os sistemas e funções do corpo, equilibrando seu funcionamento. E além disso, trazendo bem estar, equilíbrio emocional e redução do estresse cotidiano.

O Clássico Interno do Imperador Amarelo: 1. a eficácia das agulhas de acupuntura

A postagem de hoje inaugura uma nova série sobre os clássicos da medicina chinesa. Desejo destacar como funciona essa medicina segundo a sua própria racionalidade. Como o método mais emblemático dessa medicina é a acupuntura e o Huangdineijing é o texto clássico fundamental, começaremos por ele. O Clássico Interno do Imperador Amarelo é dividido em dois livros: Questões Simples (素聞) e Eixo Espiritual (靈樞).

Página da edição chinesa do Suwen, que forma parte do Huangdineijing. Acervo da World Digital Library.

Como se sabe, esse clássico é escrito na forma de um diálogo entre o legendário Imperador Amarelo, um dos fundadores míticos da civilização chinesa, e Qibo, seu conselheiro para assuntos de medicina. é um texto que traz tanto os fundamentos filosóficos dessa antiga tradição médica, mundialmente reconhecida, mas também contêm conhecimentos técnicos que de algum modo norteiam a medicina chinesa até hoje. A medicina chinesa foi descrita como uma medicina de equilíbrio, porque a noção de Tao é o ponto de partida para sua compreensão da saúde.

Um aspecto importante presente no primeiro capítulo do Eixo Espiritual (靈樞) é que a eficácia da acupuntura depende do que às vezes se traduz como “sensação de acupuntura”; as expressões em chinês no texto são “chegada do qì” (Qìzhì 氣至) ou “obtenção do qì” (Déqì 得氣). Essa sensação é um indicador que o chegou ao ponto onde a agulha foi inserida e que, se a técnica for usada corretamente, fluirá da forma desejada pelo canal correspondente. O curioso é que não apenas o/a paciente deve sentir um campo de sensações características da ação terapêutica da agulha, descritas na literatura clássica, mas também em pesquisas modernas, em termos de calor, dormência, peso, eletricidade, fluxo, vibração, etc. Mas também, o/a acupunturista experiente deve desenvolver sua sensibilidade para perceber a chegada do e sua manifestação, antes mesmo que o/a paciente lhe comunique sua experiência ou que seu corpo reaja ao estímulo. Classicamente, a sensação de quem manipula a agulha é descrita como semelhante a um peixe que fisga o anzol. Mas para que ocorra essa experiência, o/a acupunturista deve aprender a inserir a agulha e manipulá-la em um estado de serenidade e atenção.

Agulha inserida no ponto Neiguan (PC6), foto do autor.

Em poucas palavras, uma vez que o ponto punturado está ativo, é possível incrementar o afluxo de ali, em doenças caracterizadas por deficiência; ou remover o excesso, seja ele resultante de um bloqueio no fluxo por estagnação, decorrente de um desequilíbrio interno (alimentar, emocional, constitucional), seja da invasão de um fator patogênico externo. O Eixo Espiritual afirma ainda que, quando tonificamos, o/a paciente deve sentir que “ganhou” algo. E, do mesmo modo, quando dispersamos, o/a paciente deve sentir que “perdeu” algo. Ou seja, a tonificação ou dispersão devem produzir sensações perceptíveis.