O Corpo Taoista: 4. a educação corporal

Nesta quarta postagem da série O Corpo Taoista, o assunto é a educação corporal como arte da existência. Levar em consideração apenas as concepções de corpo sem atentar para as práticas corporais taoistas seria um grave mal entendido, pois os conceitos são descrições que permitem expressar e cultivar experiências. Traduzindo em termos práticos, cultivar o Tao equivale a uma (re)educação dos sentidos, da postura e dos modos de se mover. Mais uma vez, como a expressão dos mesmos princípios básicos, o corpo taoista senciente e em movimento, percebe sem se agitar e move-se em conformidade com o que é observado na natureza como a  chave para a continuidade: movimento lento, contínuo, gradual e circular, como foi reconhecido pelos antigos sábios taoistas ao contemplarem os astros, os ciclos das estações e outros fenômenos naturais. Ou como afirma a transmissão oral, inspirada no  Yijing: “o Céu e a Terra são duradouros porque sabem se mover continuamente”. Não só o movimento corporal se inspira nos ritmos naturais, mas também se harmoniza à manifestação cíclica de yin e yang no universo.  Há também inúmeros exercícios baseados nos movimentos de animais, reais ou míticos, uma apropriação seletiva de suas qualidades. O Caminho é percorrido por meio de um duplo aprendizado: contemplando diariamente a natureza e praticando os métodos transmitidos ao longo das gerações, tendo como exemplo uma pessoa viva que encarna a tradição com seu próprio corpo, como foi o caso do mestre Liu Pai Lin ao longo de cerca de duas décadas no Brasil.

mestres taoistas

Na foto, da direita para esquerda, mestre Liu Pailin e alguns de seus mestres: Liu Beizhong (linhagem Kunlun), o ancião Nanshi Laoren, Liao Kong (linhagem Longmen), Tanlaisheng (linhagem Jinshan).

 

 

O Corpo Taoista: 1. ponto de partida

As postagens desse mês serão focadas na temática do corpo. Uma característica marcante da tradição taoista é justamente que a espiritualidade não se opõe à corporeidade. Mais precisamente, o corpo vivido é a base do caminho.  Em primeiro lugar, contrastando com a ideia de corpo-coisa descrito como “máquina maravilhosa”, fundante para a medicina e as ciências da vida na civilização ocidental, o corpo taoista é um “pequeno universo”. Essa afirmação tem um sentido  preciso,  que combina a teoria dos cinco movimentos constitutiva da medicina tradicional chinesa desde o Huangdi Neijing, e a filosofia yin/yang apresentada em clássicos como o Daodejing e o Yijing. O corpo humano é formado pelas mesmas potências que compõem e permeiam o mundo natural. Essa afirmação ampla não seria questionada pela ciência ocidental moderna, para a qual é evidente que a matéria animada e inanimada tem a mesma origem e componentes básicos. No entanto, no caso do corpo taoista, a conotação é um pouco distinta. As conexões e semelhanças entre o corpo humano e os fenômenos naturais são também da ordem de correspondências e ressonâncias, não só de componentes básicos comuns a eles.  órgãos, vísceras, tecidos e fluidos do corpo humano correspondem aos mesmos cinco movimentos (wuxing) – fogo, água, terra, metal e árvore – que formam a paisagem natural. Além disso, determinados centros sutis ressoam com o mesmo qì que permeia a Terra e o Céu. Esse entendimento é o pano de fundo para o treinamento taoista, como cultivo do que é natural e retorno à natureza.

(Na foto, altar do deus da montanha, templo Zhinan, Taipei)

Compreender o Tao: 4. o sentido da não ação

Na postagem de  hoje da série Compreender o Tao, o tema é a noção de não ação (wúwéi 無為), sujeita a vários mal entendidos. Não significa não fazer nada, nem omitir-se de agir, muito menos algo que se pode praticar intencionalmente, como quem diz: “agora, praticarei a não ação”. É ação espontânea, não deliberada, é agir sem identificar-se com a ação, ou com seu resultado. Não vem acompanhada do sentimento de vitória ou arrependimento: “eu fiz isso”.  Por isso se diz: “o verdadeiro Tao requer de nós que lidemos com o mundo real, mas ao fazê-lo o coração não se agita”. Ação espontânea é fazer o que é necessário segundo a situação, levando em consideração o maior benefício possível para todos os seres envolvidos. Em poucas palavras, embora possamos viver momentos ocasionais assim, é algo que só pode ser feito com frequência por alguém que, ao menos em alguma medida, realizou o Tao, ou qualquer outro nome que seja dado ao estado natural. Uma das marcas da não ação é a experiência de ausência de esforço e deliberação. A solução adequada é encontrada sem alarde e luta, independente de cálculo e estratagema. É como o sol que brilha ou a chuva que cai, sem fazer distinções.

montanha Taiwan
Vista das montanhas a uma hora de viagem de Taipei, setembro de 2017, foto do autor.

 

Compreender o Tao: 2. saber com o próprio corpo

Nesta segunda postagem da série Compreender o Tao, dou seguimento ao argumento anterior. Se as palavras e os conceitos  são meros indicadores,  não a via para o Tao,  como percorrer o caminho? A transmissão da tradição ocorreu e ocorre ainda por vários meios:  palavra falada,  palavra escrita (principalmente narrativa ou poética), imagem  (diagrama, desenho, pintura), recursos audiovisuais modernos, música, movimento e postura corporal. O treinamento é o meio, por excelência, para compreender o Tao. Cada método é a expressão de um (ou mais) princípio(s), o meio para atualizá-lo(s) como experiência pessoal. Os métodos são fundamentalmente técnicas corporais, no sentido maussiano, que induzem um certo “modo somático de atenção” (CSORDAS, 2008), uma forma culturalmente específica de prestar atenção com o corpo. Portanto, se por meio das palavras, o Tao é inapreensível, torna-se acessível por meio da experiência sensorial, motora e afetiva do corpo vivido.

Version 2

Por exemplo, ao abraçar o Taiji, colocando as mãos sobre a região do umbigo (taiyuan), ao mesmo tempo que, literalmente, trazemos  a atenção para nosso centro de gravidade,  a origem de nossa vida,  encarnamos o simbolismo do  Taiji (☯), como centro dinâmico vivo. O elemento central não é o conceito ou o símbolo, mas como isso se atualiza numa experiência corporal. Obviamente, não se trata simplesmente da eficácia do gesto, mas do fato de fazê-lo com plena atenção e consciência.

Treinar é cultivar um hábito. Assim, ao abraçar o Taiji regularmente, nos acostumamos à manter a atenção no centro, com consequências motoras e posturais, perceptivas e afetivas. Esse é um método básico de qigong e meditação taoista, que é praticado em nossa linhagem ao final de cada exercício, mas que também é adotado como postura básica de meditação, e um recurso para acalmar a mente e recuperar as energias a qualquer momento do dia. O índice para a eficácia do Abraço do Taiji justamente é o grau de profundidade de seu efeito sobre o corpo/consciência.

Compreender o Tao: 1. ponto de partida

Hoje inicio uma série de postagens, intitulada compreender o Tao. Além da óbvia distância cultural entre a tradição taoista e o horizonte cultural primário de praticantes não chineses e não chinesas, de nações ocidentais ou do hemisfério sul, como a nossa, existe um problema ainda mais básico. Em função de uma história de modernização e ocidentalização em escala mundial, o que não pode ser descrito pela linguagem de forma precisa nem compreendido por meio do intelecto tende a ser desconsiderado. E é justamente disso que trata o taoismo: o indizível que pode ser vivenciado. Transcrevo abaixo os dois primeiros versos do texto fundante da tradição taoista, o Daodejing (道德經), na tradução do mestre Liu Pai Lin e de Jerusha Chang:

“O Tao descrito como o Tao não é o verdadeiro Tao.

O inominável nenhum nome pode nomear” (Daodejing, poema 1).img_36531-e1524669487821.jpg

(Acima: o sentido da estrutura do pictograma, segundo mestre Liu Pai Lin. Ilustração originalmente publicada em: Saúde Longevidade, caderno 1, São Paulo, Associação Tai Chi Pai Lin, 1994, p. 16).

O pictograma Dào (道) é normalmente traduzido como “caminho”. O sentido do termo já foi debatido à exaustão tanto por estudiosos e estudiosas, como por praticantes taoistas. De forma aproximativa, remete a uma ideia de ordem cósmica, formulada em termos de padrões cíclicos, ao estado natural, ao mistério da vida, etc. Mas, o paradoxo é que Laozi afirma explicitamente que não é possível descrevê-lo. Ou seja, as palavras e o intelecto não são suficientes para realmente compreendê-lo. Pode ser reconhecido por meio da experiência meditativa e da contemplação dos fenômenos da natureza. Aqui, como em outras tradições contemplativas, os conceitos, as palavras, são meramente indicadores da direção a seguir.

Estéticas da Existência em Fluxo: Corporeidade Taoista e Mundo Contemporâneo

Estéticas de Existência em Fluxo é o título de outro artigo que publiquei em 2011 na revista Ciências Sociais e Religião. Nele, refleti sobre a relevância da tradição taoista no mundo atual, ao se difundir fora da China e das comunidades chinesas da diáspora. Resumindo em umas poucas linhas, o argumento é que o taoismo proporciona uma linha de fuga à instabilidade das condições da vida urbana contemporânea, acirradas pelo capitalismo de consumo e pela privatização do bem público. Fora de apropriações consumistas superficiais, o taoismo poderia ser lido como uma verdadeira “arte da existência”. Seu modo de vida, avesso à aceleração e ao consumismo característico das formas vigentes de capitalismo. Quando bem sucedido, o treinamento taoista favorece uma reorientação existencial  em decorrência do aprendizado corporal consistente: aprender a perceber,  mover-se e sentir de um novo modo, implica aprender a ser. Relaxar toda tensão e esforço desnecessário, desfrutar dos prazeres da vida sem se exaurir, equilibrar atividade e repouso. São várias as metáforas clássicas, presentes no Daodejing (道德經) para expressar o viver em consonância com o Tao: a espontaneidade, maleabilidade e energia inesgotável de uma criancinha,  a perfeição da madeira bruta, a fluidez da água…

Qiedong fall

Mestres do Tao: tradição, experiência e etnografia

Mestres do Tao é o título de um artigo que publiquei na Revista Horizontes Antropológicos em 2005, uma versão reduzida de um dos capítulos de minha tese de doutorado sobre a escola taoista do mestre Liu Pai Lin (1907-2000). Nele, reflito sobre o papel na narrativa no aprendizado do Tao, como a palavra se combina a outros modos de transmissão da tradição e os dilemas da tentativa de fazer uma descrição etnográfica dela. Naquele momento, a figura do mestre Pai Lin (foto abaixo) me impressionava por sua saúde e vivacidade de espírito, com mais de 90 anos. E por, literalmente, encarnar o que ensinava, um conhecimento vivencial sobre a vida, não uma “filosofia” no sentido de um saber meramente intelectual, desencarnado. Não tinha ainda a dimensão do impacto desse contato breve na minha biografia. Vinte anos depois deste primeiro encontro, percebo que o que me impressionou foi a possibilidade de existir com fluidez e relaxamento, com lucidez e alegria de viver, inclusive em uma idade tão avançada. Um encontro que deixou uma marca profunda e plantou as sementes do momento atual. IMG_1308.jpg