O Qì é a base da vida. Mas o que é Qì?

O fundamento taoista do pensamento chinês que é a base da medicina tradicional e do qìgōng de longevidade é uma filosofia do movimento, da mudança. Como compreensão da vida, e aqui se incluem tanto concepções de natureza como de corpo humano, o conceito de é central. Mas, afinal, o que é ?

detalhe de pintura do acervo temporário do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Uma maneira prática de tratar o assunto é entender o como uma linguagem dos antigos chineses para descrever as qualidades de diferentes fenômenos naturais: um organismo vivo, uma paisagem, um fenômeno climático, um alimento ou planta medicinal, inclusive um corpo humano, uma pessoa, sua condição de saúde ou doença, etc. Não se trata de algo no campo da crença. Não é preciso “acreditar em ” como se fosse algum tipo de entidade metafísica. Embora esse conceito remeta ao aspecto invisível dos fenômenos naturais, que move ou anima, o qì se percebe com os sentidos, é algo que se sente, como qualquer artista marcial, praticante de qìgōng, especialista em fēngshuǐ ou acupunturista pode atestar. De fato, aprender qualquer um desses conhecimentos tradicionais chineses é familiarizar-se na prática com isso.

O pictograma em estilo caligráfico.

O caractere mais frequentemente utilizado para representar (氣), deriva historicamente do caractere vento (風), o que levou alguns estudiosos, especialmente da escola francesa, a descrever o como sopro. Em sua estrutura, é formado pelos caracteres para vapor e arroz, conotando um aspecto sutil do ar e dos alimentos. Há também outro caractere para (炁) que consta dos talismãs taoistas e que, segundo a explicação do mestre Pailin, remete ao aspecto yáng de luminosidade e calor: fogo do Céu. Em geral, o conceito de tem sido traduzido para línguas ocidentais como “energia”, “vitalidade” ou “força vital”, inclusive em traduções conceituadas de textos clássicos chineses, manuais de medicina tradicional e na transmissão oral de muitos mestres chineses.

Especialistas dos Estudos Chineses, como a francesa Elizabeth Rochat de la Valée ou o brasileiro Orley Dulcetti Júnior, apontam que se refere à capacidade de movimento e transformação. Ou seja, é a chave para entender todos os fenômenos naturais da perspectiva chinesa. Apesar de muito usados, termos como energia, vitalidade e força vital são alheios ao pensamento chinês antigo. Derivam de tendências do pensamento científico e filosófico europeu e foram utilizados desde as primeiras traduções dos clássicos chineses para línguas ocidentais, ainda no século XVIII. Esses termos podem ser úteis por serem familiares, mas trazem consigo armadilhas, pois nos levam para o terreno da crença ou da tentativa de demonstração da existência objetiva de uma força ou substância, às vezes até apelando para uma confirmação por parte da ciência experimental ocidental.

Mestre Liu Pailin era bastante taxativo ao afirmar que os métodos taoistas que ensinava era baseados em um conhecimento da natureza, a essência da civilização chinesa, sem uma conotação mística ou religiosa. Desde a perspectiva da tradição taoista, uma boa maneira de compreender o que é é pela experiência pessoal com os treinamentos de qìgōng, tàijíquán, dǎoyǐn, meditação, etc. Praticando, desenvolvemos uma nova sensibilidade corporal e aprendemos a perceber o por meio de certas sensações descritas pela tradição (frio, calor, peso, formigamento, corrente elétrica, fluxo, vibração) que surgem espontaneamente durante os treinamentos. Além disso, os estudos de antropologia dos sentidos e antropologia da corporeidade podem ser ferramentas úteis para entender esses fenômenos e nos familiarizar com esse importante conceito chinês.

Como o cultivo do Tao pode ajudar na superação de traumas físicos e emocionais?

Na postagem de hoje, gostaria de relacionar a prática do Tao ao seu potencial para recuperação da saúde e da sanidade, particularmente na superação de situações traumáticas. Como bem sabe quem se dedica à prática de qigong, taiji e medicina chinesa, ou ao estudo da filosofia que fundamenta essas práticas, vida é fluxo. As capacidades de movimento, de transformação e de adaptar-se às circunstâncias do presente, são as características dos processos naturais de manutenção da vida em um organismo sadio, mas também de uma subjetividade sã. Portanto, a fluidez é uma das características do Tao, 0 Caminho Natural. No nível do organismo, o livre fluxo de e sangue, combinado ao equilíbrio qualitativo e quantitativo entre as diferentes substâncias vitais é a base da saúde. No nível da consciência, a serenidade, o coração tranquilo, sensível e empático, mas livre de emoções excessivamente intensas e duradouras, é a base da sanidade. Conforme o pensamento chinês, não se trata de duas coisas separadas, mas de aspectos interdependentes de uma mesma totalidade, que se influenciam mutuamente.

Mas há momentos em que eventos abruptos da vida abalam nossas frágeis ilhas de sanidade: situações de dor intensa ou de adoecimento grave; ameaças à nossa vida e integridade; conflitos sérios em relacionamentos significativos; adversidades que abalam as fundações de qualquer senso de segurança. Em momentos assim, perdemos a capacidade de fluir e agir espontaneamente, seja por nos agarrarmos à nossa dor, seja por repetirmos, fora de contexto e de proporção, atitudes que já foram momentaneamente uma tentativa válida de nos proteger e sobreviver a uma tragédia. Perdemos contato com os processos dinâmicos da vida, nossa sensibilidade ao presente e aos outros seres fica comprometida. Um corpo enrijecido por uma lesão ou sua memória dolorosa, um coração fechado. E mais dor e confusão, por repetição de padrões disfuncionais. E por isso nos distanciamos do fluxo espontâneo da vida.

detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais. Acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

E como o cultivo do Tao pode nos ajudar a recuperar a fluidez, a capacidade natural de movimento e transformação? A primeira chave é a capacidade de relaxar. No estado de relaxamento, a capacidade de autorregulação do corpo é potencializada. As feridas cicatrizam mais rápido, o coração reaprende a ser leve. Como vimos em postagens anteriores, o relaxamento é um benefício tanto dos exercícios suaves do qigong, do taijiquan e práticas afins, quanto da meditação sentada, desde que praticados com constância e com orientação adequada. A segunda chave é o movimento harmônico – no sentido de rítmico, contínuo e fluido – que promove o alinhamento e o alongamento do corpo, ao mesmo tempo que incrementa a circulação de e sangue, restaurando seu fluxo correto. Para a mtc, um traumatismo físico, por exemplo, resultante de uma queda ou pancada, pode resultar em uma “síndrome de obstrução dolorosa”, um bloqueio que causa dor e limitação de movimento. Os exercícios previnem e tratam esses bloqueios, mas em casos mais graves, podemos usar todo o repertório da medicina chinesa – acupuntura, moxa, ventosas, ervas – para potencializar a recuperação. A terceira chave é habituar-se, por meio da meditação, a um estado mental ao mesmo tempo alerta e descontraído. É nesse estado que aprendemos a soltar a dor, a mágoa e as memórias de eventos perturbadores, reconectando-nos com a vivacidade do presente, pleno de novas possibilidades.

Essa explicação só aponta a direção, mas não substitui a prática com um/a professor/a qualificado/a. Somente com a experiência é possível saborear os benefícios maravilhosos.