I Ching taoista: uma introdução ao Clássico das Mutações

No processo de desenvolver o novo curso online, I Ching Taoista: um introdução ao Clássico das Mutações, lembrei do meu primeiro contato com o I Ching, ainda adolescente. Com a tradução para o português da edição de Wilhelm e Jung nas mãos, tentava usá-lo como oráculo. Fiquei fascinado com sua profundidade e sabedoria. Mas só com a leitura do livro, sem um/a professor/a qualificado/a, nem nenhum conhecimento taoista, era como tatear no escuro. Era antes da internet. Assim, as fontes de informação eram muito mais raras e difíceis de obter. (Hoje as coisas podem parecer diferentes com o excesso de informação disponíveil, mas o problema permanece o mesmo. Sem a chave de leitura que vem da tradição oral, continuamos tateando no escuro, ainda que nos consideremos experientes autodidatas.) Lembro de imagens como: “é preciso atravessar a grande água”, “pisa no rabo do tigre, mas ele não morde”, “você recebeu dez cascos de tartaruga, suprema boa fortuna”… Sabia que tinha algo importante ali, mas era difícil entender. Por onde começar? Como avançar?

Alguns anos depois, nos final dos anos 90, decidi estudar taoismo no meu doutorado em antropologia, ainda sem saber do que se tratava ao certo. Era a combinação exótica da antiga civilização chinesa que me atraía: poesia, arte marcial, meditação, medicina tradicional. Queria fazer um trabalho antropológico mais clássico, lidando com uma diferença cultural mais marcada, e estudar ao mesmo tempo vários temas que me interessavam: corpo, espiritualidade e poética.

Mestre Liu Pailin (1907-2000), pioneiro da tradição taoista no Brasil, famoso por sua compreensão filosófica do I Ching.

Por sorte, meu orientador de doutorado conhecia uma pessoa na própria universidade que poderia abrir a porta de acesso ao grupo, uma aluna do mestre. Foi assim que ouvi pela primeira vez o nome do mestre Liu Pailin, que na época vinha a Brasília dar cursos de formação taoista na Unipaz. O rosto desse ancião chinês estava estampado em cartazes espalhados pela cidade. Se bem me lembro, assisti uma palestra pública do mestre em 1998, com tradução consecutiva do chinês. Mestre Liu já estava no Brasil desde 1977, divulgando os conhecimentos tradicionais taoistas. Foi pioneiro do Taichichuan, da massagem Tuiná, da meditação taoista e do ensino dos textos clássicos, como o I Ching.

Em setembro de 1998, parti para São Paulo, para o meu primeiro período mais intensivo de trabalho de campo. Foi neste contexto que escutei o mestre Liu falar do I Ching, como um texto filosófico que revelava os segredos do caminho taoista. Por exemplo, ele utilizava os hexagramas para explicar algum detalhe de um treinamento importante, ou para falar do ciclo da vida humana. O mestre enfatizou muitas vezes que o clássico não apenas um oráculo, mas que continha uma explicação profunda dos segredos da natureza, as relações entre o Céu e a Terra, os ciclos de yin e yang e como isso afetava a vida humana.

Antonio Moreira, discípulo do mestre Liu Pailin e especialista no I Ching.

No mesmo período, conheci Antonio Moreira, discípulo do mestre Liu, e talvez o maior especialista no estudo do I Ching entre os discípulos do mestre. Antonio foi um dos maiores colaboradores na pesquisa de doutorado sobre a linhagem taoista Pailin. Concedeu longas entrevistas, apontou outros/as possíveis participantes com belas histórias de vida e inclusive sugeriu a algumas dessas pessoas que me dessem entrevistas. À medida em que me aprofundei nos treinamentos taoistas como parte do meu caminho pessoal, Antonio se tornou também um amigo e um “irmão mais velho de treinamento”, de quem aprendi bastante sobre meditação e I Ching. Ele tinha também um visão refinada das relações interpessoais e políticas dentro da escola e esteve sempre disponível quando necessitei de orientação.

Ele já atuava profissionalmente com o oráculo há alguns anos quando o conheci. E foi ao final de segundo período trabalho de campo em São Paulo, em 1999, que fiz com ele uma primeira consulta oracular bastante profunda. Comecei a perceber todo o potencial do I Ching como oráculo.

Em 2003, Antonio esteve em Brasília, ministrando seu curso O I Ching Taoista, em três módulos, a convite do NEPT, um grupo de praticantes que organizou alguns eventos de formação da linhagem Pailin no início da década. Nele, recebemos de Antonio uma introdução sistemática ao I Ching, baseada na tradição oral taoista, nos estudos pessoais desenvolvidos por esse verdadeiro aficcionado pelo Clássico das Mutações e em sua longa experiência profissional com a consulta oracular. De posse dos fundamentos corretos para a compreensão do I Ching, uma porta se abriu para mim.

A partir dali, meu interesse e compreensão do I Ching aumentaram bastante. Estudei minhas anotações pessoais do curso do Antonio, os escritos dos mestres Liu Pailin e Liu Chihming, e os livros de outros comentaristas e especialistas, como o mestre Wu Jyhcherng, sacerdote que fundou a Sociedade Taoista do Brasil. Com a chave de leitura da transmissão taoista, o clássico fez cada vez mais sentido.

Mais de dez anos se passaram, enquanto continuei a estudar, um pouco de cada vez. Em momentos de crise, fazia consultas ao oráculo, buscando mais clareza sobre a direção a seguir. A elegância e precisão do oráculo me fascinaram. Com o coração sereno e alguma familiaridade com o simbolismo, as respostas eram tão adequadas à situação!

Em 2015, mais uma vez graças à ajuda de Antonio, recebi a iniciação da linhagem taoista Kunlun Xianzong, em Taipei, com um pequeno grupo de peregrinos/as brasileiros/as. A partir desse ponto, os conhecimentos taoistas foram ocupando um espaço ainda maior na minha vida diária. Foi como parte desse movimento que comecei a desenvolver um curso de introdução à leitura taoista do I Ching, que começou a ser ministrado em 2018. Meu objetivo era oferecer uma introdução abrangente e acessível para iniciantes, mas fiel à profundidade do clássico e da leitura tradicional. Após algumas edições presenciais desse curso, em Brasília e Goiânia, fizemos em 2020 a primeira edição do curso em formato online, combinando um fim de semana ao vivo, exercícios e mentoria em sala de aula virtual e outras ferramentas.

Como etapa mais recente desse percurso, acabamos de concluir uma nova versão do curso I Ching Taoista: uma introdução ao Clássico das Mutações, agora inteiramente EAD, disponível nesse link. São os mesmos conteúdos (dos fundamentos à prática oracular), mas ficam disponíveis mais tempo que um curso presencial e cada participante pode fazer o curso no seu tempo, ao mesmo tempo em que conta com o suporte do professor.

I Ching Taoista: uma introdução do Clássico das Mutações, curso EAD.

Clássicos: 7. a atualidade dos clássicos

Nessa nova postagem da série, um tema mais amplo. Em que se baseia o valor dos textos clássicos, e especificamente, dos clássicos chineses, no mundo contemporâneo? Começo a resposta com uma reflexão mais geral: um clássico, no sentido mais estrito do termo, é um texto que sobreviveu até nossos dias porque atravessou gerações e sobreviveu a várias transformações históricas. Isso se deve ao fato que, ao longo de tanto tempo, continuou a nos inspirar com ideias e conhecimentos relevantes. Pensadores como Hans Gadamer e Mikhail Bakhtin destacaram que o valor de um clássico está, justamente, em sua riqueza de significados, em sua abertura quase infinita para novas leituras, o que permite sua atualização. Em ambos, a leitura demanda uma atitude dialógica, de escuta do que o texto tem a nos dizer.

Paisagem com caligrafia, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

No caso chinês, há uma especificidade interessante: nem todo texto antigo tem o mesmo status de clássico. Para um determinado escrito ter em seu título o termo “clássico” (經), significa que conquistou um apreço especial. Normalmente os livros que possuem esse termo no seu título, são obras fundamentais de um determinado campo. Como exemplo, recordo aqui alguns textos já citados aqui, como o Daodejing (道德經), o Huangdineijing (黃帝內經) ou o próprio Yijing (易經). Esse último, o “Clássico das Mutações”, tem sido objeto de um curso de introdução desde o ano passado, que deve ocorrer em Brasília em meados de maio.

No que diz respeito aos textos clássicos chineses, mais especificamente os clássicos taoistas, ou ao menos aquelas obras dotadas de interesse para a compreensão da tradição taoista, ressalto que estes textos não são apenas um tesouro da civilização chinesa, mas, além disso, são parte do patrimônio cultural da humanidade. A chamada filosofia yin-yang, condensa em poucas representações simbólicas – como por exemplo o símbolo do Taiji ou as linhas, trigramas e hexagramas do Yijing – toda uma percepção do mundo natural, do lugar do ser humano nele e uma apreensão quase instantânea do caráter dinâmico de fenômenos de toda ordem. Tudo pode ser apreendido intuitivamente como uma combinação temporária de proporções variáveis e de aspectos yin e yang, formando um complexo jogo de forças complementares . E é esse pensamento que está na base de várias artes e ciências tradicionais chinesas.

Voltando à pergunta inicial que motivou essa postagem, o valor destes textos clássicos no momento atual está justamente na possibilidade de nos oferecer outras possibilidades de acesso à complexidade do mundo contemporâneo. E justamente por ser uma compreensão de mundo de caráter não essencialista, que em vez de fixar as coisas em essências metafísicas, permite-nos percebê-las em suas fluidez característica. Manifestando-se no tempo e no espaço, tudo que sobe, desce. Tudo que nasce, morre. Tudo que expande, contrai. O que estava em repouso, move, e o que move, retorna a quietude. Isso tudo ocorre simultânea e incessantemente. Os clássicos taoistas nos ensinam a mover e perceber a vida como movimento. E, em momentos de crise e turbulência no mundo humano, quem sabe possam nos oferecer alguma sabedoria que nos permita gerar alternativas benéficas ao caos atual.

Clássicos: 6. ainda sobre o I Ching como oráculo

A postagem de hoje dá seguimento ao tema do uso oracular do Clássico das Mutações (易經), discutido previamente. O recurso à divinação é muito comum em sociedades tradicionais de todas partes do mundo, mas tal prática também é popular nos ambientes urbanos das sociedades globalizadas contemporâneas.

Pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

Dessa vez, convido a uma reflexão sobre o uso correto do oráculo. No contexto desse blog, a expressão “uso correto” equivale a “em consonância com o Tao”. Com isso, quero dizer que, idealmente, a relação que estabelecemos com o Clássico das Mutações deveria apoiar o cultivo de um modo de vida em sintonia com os ritmos de yin e yang na natureza, com uma combinação equilibrada de movimento e quietude na vida diária, e com uma atitude existencial pautada na amorosidade, na simplicidade e na ausência do “desejo de ser o primeiro”. (Essas são as três virtudes taoistas descritas por Laozi no Daodejing – 道德經).

Sugiro então alguns critérios para o uso oracular do Clássico. Em primeiro lugar, temos o critério das circunstâncias para uma consulta. Afinal, quando faz sentido consultar um oráculo? A resposta é simples: apenas quando se trata de uma questão crucial, uma decisão a tomar que implica sérias consequências e que é suficientemente complexa para gerar dúvidas sobre como prosseguir. Portanto, uma primeira advertência no uso salutar do oráculo é não fazer perguntas desnecessárias, quer dizer, relativas a assuntos banais ou situações nas quais já sabemos o que fazer.

Na melhor das hipóteses, um oráculo – ou qualquer outra forma de aconselhamento – deveria ser uma ferramenta auxiliar para o desenvolvimento da nossa própria sabedoria. Utilizo aqui o termo sabedoria como um saber viver, não como sinônimo de intelecto nem de astúcia. Saber viver no sentido de sensibilidade às qualidades das situações vividas. Sabedoria é uma forma de apreciação intuitiva dos processos da vida e suas nuances. O Clássico das Mutações pode ser uma ferramenta para o cultivo da sabedoria quando entendemos a sua linguagem, baseada na filosofia yin-yang, e o utilizamos com moderação, apenas quando estritamente necessário. Quando pessoas muito confusas consultam oráculos com frequência, é comum que se tornem fascinadas por eles, dependentes de suas respostas e que escutem apenas o que desejam e não o que necessitariam ouvir.

Sendo assim, uma segunda recomendação no uso do oráculo, seja como especialista, seja como consulente, é: aprenda a serenar o coração. Um coração agitado só pode fazer perguntas insensatas e obter respostas truncadas. Consequentemente, alguma estabilidade meditativa, alguma capacidade de esvaziar-se de expectativas e aceitar a vida como ela se apresenta é um requisito para o bom uso dessa ferramenta. É nesse estado que faz a pergunta, identifica-se os hexagramas e linhas que surgem como resposta, e contempla-se, com coragem e sinceridade, o seu sentido.

Quanto às respostas dadas pelo oráculo, contêm três dimensões: uma descrição da situação, um possível prognóstico de seu desenvolvimento caso as coisas sigam na direção atual, um conselho sobre a atitude de uma pessoa sábia diante da situação-problema.


Clássicos: : 5. O I Ching como professor

A postagem de hoje retoma a série clássicos. Mais uma vez, o tema é o Yìjīng (易經). Tanto um comentarista clássico, como Confúcio, como a transmissão oral que recebi, inaugurada no Brasil por mestre Liu Pai Lin, afirmam que o texto contém os segredos do Céu e da Terra. Sendo uma das principais referências tradicionais para compreender a filosofia yīn-yáng, o clássico pode, por isso mesmo, ser tratado como um professor que poderia nos iniciar na compreensão, desde que saibamos escutá-lo.

Por sua vez, para isso, uma via tradicional é a da transmissão oral. Uma pessoa viva, que encarna a experiência da compreensão e a exemplifica com sua presença corporal, aponta o caminho a seguir. De posse desse entendimento, podemos começar um diálogo com o “Clássico das Mutações”.

Como assinalou François Jullien em seu ensaio sobre o Yìjīng (易經), Figuras da Imanência, embora seja conhecido como um livro, o “Clássico das Mutações” começou sem palavras: um livro feito de linhas, ou como ele prefere dizer, traços. Nas duas linhas, contínua ou partida, está resumido tudo: yáng, movimento, firmeza, luminosidade, etc.; yīn, quietude, maleabilidade, obscuridade, etc.

Em combinações sucessivas, de duas, três e seis linhas, está codificada toda a cosmologia taoista. Em última instância, o que temos aqui é uma elaboração sofisticada do símbolo do Tàijí (太極)☯. Em poucas palavras, todos os fenômenos que ocorrem nos níveis da Terra, do ser humano e do Céu, podem ser sinteticamente descritos como diferentes combinações destes dois aspectos complementares, opostos, indissociáveis, em perpétua alternância. Compreender isso é a porta de entrada para uma compreensão do mundo que rompe totalmente com a noção de essência, no sentido que a metafísica ocidental deu ao termo. Aqui temos uma filosofia do movimento, da transformação, do jogo de forças. Um filosofia da fluidez.

Pintura da exposição temporária sobre os imortais. Acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

Sendo imagens de seis linhas, como um código de barras, quem criou os hexagramas usou vantajosamente a abstração, pois cada combinação de trigramas contém em si múltiplas possibilidades de interpretação, como é ilustrado na “Discussão dos Trigramas” que é parte das chamadas “Dez Asas”, a coletânea de comentários explicativos ao Clássico, escritos por Confúcio. Nesse texto, em particular, ficam evidentes as múltiplas possibilidades de significação de cada um dos trigramas, isto é, os oito conjuntos de três linhas que representam os fenômenos básicos da natureza, como vimos antes.

Por meio dessas imagens, o Clássico nos dá a ver, ou perceber, o mundo como jogo incessante de yīn e yáng. Uma maneira um tanto simplificada de explicar isso: digamos que é como se os antigos chineses tivessem inventado, milênios antes de nossos computadores, uma descrição da natureza em termos de um código binário, onde yáng é 1 e yīn é zero, sem com isso cair no erro de pensar o mundo em termos dualistas, visto que as oposições estão contidas no interior de todos os fenômenos e as definições de yīn e yáng são sempre contextuais e relacionais.

Esse modo de perceber está em consonância com vários dos saberes tradicionais chineses: medicina, geomancia, artes marciais, técnicas de longa vida, estratégia militar, mesmo a pintura ou a música, entre outros.