O Tao e as angústias contemporâneas

A postagem de hoje aborda um outro aspecto do diálogo possível da tradição taoista com os dilemas do nosso tempo. Obviamente, os textos clássicos antigos não disseram nada específico a respeito do momento atual, pois foram escritos séculos antes, por pessoas que nunca vivenciaram essas condições históricas e culturais. No entanto, a riqueza desses textos, de sua interpretação por praticantes vivxs é o que torna os clássicos úteis. Clássicos, aqui, são aqueles textos que contêm o termo jīng (經) em seu título. Alguns deles tem sido citados nesse blog com frequência, como o “Clássico de Medicina Interna do Imperador Amarelo” (Huángdìnèijīng 黃帝內經), o “Clássico das Mutações” (Yìjīng 易經) ou o “Clássico do Caminho e da Virtude” (Dàodéjīng(道德經).

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016
Zygmunt Bauman (1925-2017)

Algumas análises sobre o mundo contemporâneo apontam para a instabilidade da condições sociais e suas consequências nas vidas individuais. Por questões de espaço, não vou me estender aqui sobre isso. Mas talvez um dos autores mais conhecidos seja o sociólogo Zygmunt Bauman. Ele descreveu o mundo contemporâneo das sociedades globalizadas como um momento de instabilidade, velocidade, fluidez, consequentemente de imprevisibilidade e precariedade. Daí o termo modernidade líquida, a passagem de uma sociedade da estabilidade, da ordem e da produção, para uma nova configuração, de instabilidade, desregulamentação e consumo: a liquefação da modernidade. Um mundo com mais possibilidades, mas ao mesmo tempo, com mais desamparo: o grande risco é o de se tornar redundante. Por isso, ao analisar as angústias do início do século XX, descritas por Freud em 1930, Bauman constata que as angústias atuais são outras: mais associadas à insegurança e ao excesso de referências contraditórias do que ao excesso de ordem e à repressão. Não é por acaso que as formas predominantes de sofrimento psíquico atual – particularmente no campo da depressão, ansiedade e pânico, por contraste com a histeria e a neurose da época de Freud – apontem para a falta de um terreno sólido onde se apoiar, de uma direção segura a seguir e dos recursos para tomar decisões eficazes. Paradoxalmente, com a crise das instituições que deram o tom da modernidade, e a consequente insegurança e desorientação, os discursos fundamentalistas de todo tipo tenham se tornado tão sedutores: a promessa de segurança no interior de uma comunidade de iguais, deixando do lado de fora a diferença que amedronta e incomoda. Mais recentemente, não é casual o crescimento das formas mais fundamentalistas de cristianismo no Brasil e a ascensão de um novo conservadorismo marcado por discursos de ódio. E por outro lado, a popularidade de discursos individualistas ingênuos, bem exemplificados pela explosão do coaching, como se nosso sucesso ou fracasso, felicidade ou infortúnio, dependesse exclusivamente de nossa vontade, e como se nossos destinos coletivos não estivessem interligadas.

E como a filosofia e o modo de vida taoista podem oferecer alternativas a esse cenário? Parte da minha resposta se refere ao fato de praticar o Tao ser uma arte de viver. Em primeiro lugar, sendo uma filosofia do movimento, podemos entender que nunca houve nada sólido a que se agarrar: a mudança é a própria característica definidora da vida. Então nunca estivemos no controle, temos apenas possibilidades relativas de nos posicionar diante de situações que não controlamos. Mas podemos aprender a fluir inteligentemente de acordo com as circunstâncias, desenvolvendo a sensibilidade e a lucidez. Em segundo lugar, as três virtudes taoistas básicas – amorosidade, simplicidade e “não querer ser o primeiro sobre a terra” – descritas por Laozi, podem ser um antídoto aos venenos contemporâneos da relação predatória e consumista com os outros e à ambição desmedida que iguala o valor pessoal ao desempenho. Há milênios que essa referência fundante do taoismo recomenda cuidar da terra e de seus habitantes, seres humanos e não-humanos; desfrutar dos prazeres sem excesso e não desperdiçar os recursos; evitar a rivalidade e a competição.

Detalhe de pintura da exposição sobre os imortais, acervo temporário do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Feitos com constância, os treinamentos podem minorar o estresse e auxiliar a recuperar a sanidade nesse mundo caótico. Se conseguimos relaxar um pouco, temos condição de estar mais sensíveis ao momento presente, mais disponíveis para fazer contato com as outras pessoas, menos predispostxs a adoecer, sofrer acidentes ou iniciar conflitos desnecessários. E quando mesmo assim entramos em desequilíbrio, a medicina tradicional pode apoiar a capacidade natural de nosso corpo de se autorregular.

Clássicos: 7. a atualidade dos clássicos

Nessa nova postagem da série, um tema mais amplo. Em que se baseia o valor dos textos clássicos, e especificamente, dos clássicos chineses, no mundo contemporâneo? Começo a resposta com uma reflexão mais geral: um clássico, no sentido mais estrito do termo, é um texto que sobreviveu até nossos dias porque atravessou gerações e sobreviveu a várias transformações históricas. Isso se deve ao fato que, ao longo de tanto tempo, continuou a nos inspirar com ideias e conhecimentos relevantes. Pensadores como Hans Gadamer e Mikhail Bakhtin destacaram que o valor de um clássico está, justamente, em sua riqueza de significados, em sua abertura quase infinita para novas leituras, o que permite sua atualização. Em ambos, a leitura demanda uma atitude dialógica, de escuta do que o texto tem a nos dizer.

Paisagem com caligrafia, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

No caso chinês, há uma especificidade interessante: nem todo texto antigo tem o mesmo status de clássico. Para um determinado escrito ter em seu título o termo “clássico” (經), significa que conquistou um apreço especial. Normalmente os livros que possuem esse termo no seu título, são obras fundamentais de um determinado campo. Como exemplo, recordo aqui alguns textos já citados aqui, como o Daodejing (道德經), o Huangdineijing (黃帝內經) ou o próprio Yijing (易經). Esse último, o “Clássico das Mutações”, tem sido objeto de um curso de introdução desde o ano passado, que deve ocorrer em Brasília em meados de maio.

No que diz respeito aos textos clássicos chineses, mais especificamente os clássicos taoistas, ou ao menos aquelas obras dotadas de interesse para a compreensão da tradição taoista, ressalto que estes textos não são apenas um tesouro da civilização chinesa, mas, além disso, são parte do patrimônio cultural da humanidade. A chamada filosofia yin-yang, condensa em poucas representações simbólicas – como por exemplo o símbolo do Taiji ou as linhas, trigramas e hexagramas do Yijing – toda uma percepção do mundo natural, do lugar do ser humano nele e uma apreensão quase instantânea do caráter dinâmico de fenômenos de toda ordem. Tudo pode ser apreendido intuitivamente como uma combinação temporária de proporções variáveis e de aspectos yin e yang, formando um complexo jogo de forças complementares . E é esse pensamento que está na base de várias artes e ciências tradicionais chinesas.

Voltando à pergunta inicial que motivou essa postagem, o valor destes textos clássicos no momento atual está justamente na possibilidade de nos oferecer outras possibilidades de acesso à complexidade do mundo contemporâneo. E justamente por ser uma compreensão de mundo de caráter não essencialista, que em vez de fixar as coisas em essências metafísicas, permite-nos percebê-las em suas fluidez característica. Manifestando-se no tempo e no espaço, tudo que sobe, desce. Tudo que nasce, morre. Tudo que expande, contrai. O que estava em repouso, move, e o que move, retorna a quietude. Isso tudo ocorre simultânea e incessantemente. Os clássicos taoistas nos ensinam a mover e perceber a vida como movimento. E, em momentos de crise e turbulência no mundo humano, quem sabe possam nos oferecer alguma sabedoria que nos permita gerar alternativas benéficas ao caos atual.

Clássicos: : 5. O I Ching como professor

A postagem de hoje retoma a série clássicos. Mais uma vez, o tema é o Yìjīng (易經). Tanto um comentarista clássico, como Confúcio, como a transmissão oral que recebi, inaugurada no Brasil por mestre Liu Pai Lin, afirmam que o texto contém os segredos do Céu e da Terra. Sendo uma das principais referências tradicionais para compreender a filosofia yīn-yáng, o clássico pode, por isso mesmo, ser tratado como um professor que poderia nos iniciar na compreensão, desde que saibamos escutá-lo.

Por sua vez, para isso, uma via tradicional é a da transmissão oral. Uma pessoa viva, que encarna a experiência da compreensão e a exemplifica com sua presença corporal, aponta o caminho a seguir. De posse desse entendimento, podemos começar um diálogo com o “Clássico das Mutações”.

Como assinalou François Jullien em seu ensaio sobre o Yìjīng (易經), Figuras da Imanência, embora seja conhecido como um livro, o “Clássico das Mutações” começou sem palavras: um livro feito de linhas, ou como ele prefere dizer, traços. Nas duas linhas, contínua ou partida, está resumido tudo: yáng, movimento, firmeza, luminosidade, etc.; yīn, quietude, maleabilidade, obscuridade, etc.

Em combinações sucessivas, de duas, três e seis linhas, está codificada toda a cosmologia taoista. Em última instância, o que temos aqui é uma elaboração sofisticada do símbolo do Tàijí (太極)☯. Em poucas palavras, todos os fenômenos que ocorrem nos níveis da Terra, do ser humano e do Céu, podem ser sinteticamente descritos como diferentes combinações destes dois aspectos complementares, opostos, indissociáveis, em perpétua alternância. Compreender isso é a porta de entrada para uma compreensão do mundo que rompe totalmente com a noção de essência, no sentido que a metafísica ocidental deu ao termo. Aqui temos uma filosofia do movimento, da transformação, do jogo de forças. Um filosofia da fluidez.

Pintura da exposição temporária sobre os imortais. Acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

Sendo imagens de seis linhas, como um código de barras, quem criou os hexagramas usou vantajosamente a abstração, pois cada combinação de trigramas contém em si múltiplas possibilidades de interpretação, como é ilustrado na “Discussão dos Trigramas” que é parte das chamadas “Dez Asas”, a coletânea de comentários explicativos ao Clássico, escritos por Confúcio. Nesse texto, em particular, ficam evidentes as múltiplas possibilidades de significação de cada um dos trigramas, isto é, os oito conjuntos de três linhas que representam os fenômenos básicos da natureza, como vimos antes.

Por meio dessas imagens, o Clássico nos dá a ver, ou perceber, o mundo como jogo incessante de yīn e yáng. Uma maneira um tanto simplificada de explicar isso: digamos que é como se os antigos chineses tivessem inventado, milênios antes de nossos computadores, uma descrição da natureza em termos de um código binário, onde yáng é 1 e yīn é zero, sem com isso cair no erro de pensar o mundo em termos dualistas, visto que as oposições estão contidas no interior de todos os fenômenos e as definições de yīn e yáng são sempre contextuais e relacionais.

Esse modo de perceber está em consonância com vários dos saberes tradicionais chineses: medicina, geomancia, artes marciais, técnicas de longa vida, estratégia militar, mesmo a pintura ou a música, entre outros.

Medicina Tradicional Chinesa: 3. As agulhas de acupuntura

Nesta nova postagem da série medicina tradicional chinesa, começaremos a falar de seus métodos. O primeiro deles, talvez o mais característico dessa tradição médica é uso de agulhas especiais para tratar e prevenir doenças. img_4380Voltando ao Clássico Interno do Imperador Amarelo, o capítulo 1 do Lingshu (靈樞) descreve os dois princípios básicos do uso das agulhas: tonificar e dispersar. Isso corresponde à atividade natural do Tao, que tende ao equilíbrio: suprir o que está em deficiência; remover o patogênico que invadiu o corpo do exterior, ou o de um dos cinco movimentos que está em excesso, por motivos constitucionais, alimentares, emocionais, etc. E ensina como manipular os nove tipos de agulhas (existentes na época) e estimular os pontos de acupuntura, dependendo do propósito. Em particular, ao fazê-lo, a obtenção da sensação de acupuntura, déqì (得氣) é considerada fundamental para o efeito curativo da acupuntura. Esse fato, que a chegada ou obtenção do é crucial, mostra que, do ponto de vista tradicional, a acupuntura não é apenas  manipulação mecânica das agulhas. Sua prática possui uma dimensão de qìgōng, dependente da intenção e do  dx acupunturista.