O Tao e o corpo contemporâneo

As preocupações com saúde e longevidade na civilização chinesa estão documentadas pelo menos desde o primeiro capítulo das Questões Simples (素問), livro que compõe o Clássico da Medicina Interna do Imperador Amarelo (黃帝內經): nele, Huangdi, o Imperador Amarelo, um dos soberanos míticos fundadores da civilização chinesa, pergunta ao seu conselheiro médico, Qibo, porque as pessoas no passado viviam até os cem anos com saúde enquanto “atualmente” (no terceiro milênio a.C.) vivem apenas algumas décadas e adoecem frequentemente. Desde os primórdios da tradição taoista, uma das expressões de um estado de equilíbrio com a natureza foi viver bem, o que inclui a saúde, vitalidade e longa vida. Talvez este seja um dos aspectos que permitiram esses conhecimentos terem um espaço no mundo contemporâneo globalizado. No entanto, aqui a preocupação com o corpo atingiu um novo patamar, uma verdadeira obsessão com a perfeição corporal…

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Obviamente, generalizações de larga escala falam mais de uma norma ou prática cultural, ou de uma tendência sistêmica que pode ser percebida e descrita. É uma estratégia útil para perceber certos fenômenos, mas não esgota as particularidades e contradições concretas do mundo.

“Decay”, foto de Julia Wang , licenciada para uso público por Creative Commons, CC BY-NC 4.0

Ainda assim, o que se pode concluir de diversos estudos das ciências sociais sobre o tema do corpo nas sociedades globalizadas contemporâneas é a emergência de uma nova “cultura somática” ou até mesmo uma espécie de “corpolatria”. Embora a justificativa seja a saúde, o que está em jogo é a boa forma, ou seja o valor da aparência corporal em conformidade com certos ideais estéticos quase inalcançáveis, como um indicador do caráter do sujeito. O “corpo perfeito”(sic.) se torna um objetivo em si, a ser alcançado por meio de uma combinação de fitness, dieta, recursos farmacológicos e modificações cirúrgicas. E, claro, a exibição dessas conquistas nas redes sociais, por meio de imagens digitalmente corrigidas. Nesse sentido, essa norma corporal é a contraparte da subjetividade contemporânea descrita na postagem anterior, marcada pelas mesmas angústias em torno da visibilidade.

Detalhe de pintura em papel, da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Na contracorrente disso, o corpo na tradição taoista não tem valor como base para uma identidade pessoal, porque essa é vista como fonte de preocupação e desgaste. Em vez disso, cultiva-se o corpo como um “pequeno universo”: suas estruturas e as substâncias que o compõem são as mesmas do mundo. Assim, o cultivo visa colocar-nos em harmonia com o Tao, com a natureza. E disso decorre a saúde e a longevidade. Os cinco movimentos (fogo, água, madeira, metal e água) que compõem o corpo, estando em harmonia, são a base para um equilíbrio existencial. Esse equilíbrio facilita a prática contemplativa, mas também relações harmônicas com o mundo. Por isso, a civilização clássica chinesa entendia que uma pessoa sábia, apenas com sua presença, podia influenciar beneficamente os seres à sua volta. O Clássico da Pureza e da Serenidade (清靜經) diz: “embora se fale em realizar o Tao, não há nada a atingir. Simplesmente os seres começam a se transformar por si mesmos”.

O Qì é a base da vida. Mas o que é Qì?

O fundamento taoista do pensamento chinês que é a base da medicina tradicional e do qìgōng de longevidade é uma filosofia do movimento, da mudança. Como compreensão da vida, e aqui se incluem tanto concepções de natureza como de corpo humano, o conceito de é central. Mas, afinal, o que é ?

detalhe de pintura do acervo temporário do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Uma maneira prática de tratar o assunto é entender o como uma linguagem dos antigos chineses para descrever as qualidades de diferentes fenômenos naturais: um organismo vivo, uma paisagem, um fenômeno climático, um alimento ou planta medicinal, inclusive um corpo humano, uma pessoa, sua condição de saúde ou doença, etc. Não se trata de algo no campo da crença. Não é preciso “acreditar em ” como se fosse algum tipo de entidade metafísica. Embora esse conceito remeta ao aspecto invisível dos fenômenos naturais, que move ou anima, o qì se percebe com os sentidos, é algo que se sente, como qualquer artista marcial, praticante de qìgōng, especialista em fēngshuǐ ou acupunturista pode atestar. De fato, aprender qualquer um desses conhecimentos tradicionais chineses é familiarizar-se na prática com isso.

O pictograma em estilo caligráfico.

O caractere mais frequentemente utilizado para representar (氣), deriva historicamente do caractere vento (風), o que levou alguns estudiosos, especialmente da escola francesa, a descrever o como sopro. Em sua estrutura, é formado pelos caracteres para vapor e arroz, conotando um aspecto sutil do ar e dos alimentos. Há também outro caractere para (炁) que consta dos talismãs taoistas e que, segundo a explicação do mestre Pailin, remete ao aspecto yáng de luminosidade e calor: fogo do Céu. Em geral, o conceito de tem sido traduzido para línguas ocidentais como “energia”, “vitalidade” ou “força vital”, inclusive em traduções conceituadas de textos clássicos chineses, manuais de medicina tradicional e na transmissão oral de muitos mestres chineses.

Especialistas dos Estudos Chineses, como a francesa Elizabeth Rochat de la Valée ou o brasileiro Orley Dulcetti Júnior, apontam que se refere à capacidade de movimento e transformação. Ou seja, é a chave para entender todos os fenômenos naturais da perspectiva chinesa. Apesar de muito usados, termos como energia, vitalidade e força vital são alheios ao pensamento chinês antigo. Derivam de tendências do pensamento científico e filosófico europeu e foram utilizados desde as primeiras traduções dos clássicos chineses para línguas ocidentais, ainda no século XVIII. Esses termos podem ser úteis por serem familiares, mas trazem consigo armadilhas, pois nos levam para o terreno da crença ou da tentativa de demonstração da existência objetiva de uma força ou substância, às vezes até apelando para uma confirmação por parte da ciência experimental ocidental.

Mestre Liu Pailin era bastante taxativo ao afirmar que os métodos taoistas que ensinava era baseados em um conhecimento da natureza, a essência da civilização chinesa, sem uma conotação mística ou religiosa. Desde a perspectiva da tradição taoista, uma boa maneira de compreender o que é é pela experiência pessoal com os treinamentos de qìgōng, tàijíquán, dǎoyǐn, meditação, etc. Praticando, desenvolvemos uma nova sensibilidade corporal e aprendemos a perceber o por meio de certas sensações descritas pela tradição (frio, calor, peso, formigamento, corrente elétrica, fluxo, vibração) que surgem espontaneamente durante os treinamentos. Além disso, os estudos de antropologia dos sentidos e antropologia da corporeidade podem ser ferramentas úteis para entender esses fenômenos e nos familiarizar com esse importante conceito chinês.

Aprender o Tao: 3. o lugar do gesto

Nessa nova postagem da série, o foco está no aprendizado prático. Para saber fazer, dependemos de uma capacidade humana fundamental de perceber e reproduzir semelhanças, que Walter Benjamin chamou de “faculdade mimética”. Consideremos que, nesse contexto, ela se manifesta como a capacidade de observar, reconhecer e reproduzir movimentos corporais, com suas sutis qualidades implícitas e sensações características, ideia que já havia desenvolvido no capítulo 6 de minha tese de doutorado, dedicado ao aprendizado do Tàijíquán.

Imortal voando num dragão, detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2019.

Mas como isso participa do aprendizado do Tao? Duas respostas provisórias: I) pelo fato de aprendermos a sentir com o corpo e no corpo a naturalidade e a fluidez eficaz; II) e de adquirirmos habilidades motoras e perceptivas que são o fundamento de vários saberes taoistas. Quanto ao primeiro aspecto, destaco que certos conceitos filosóficos caros ao taoismo, como os de wújí (無極), de tàijí (太極) ou de wúwéi (無為), por exemplo, são de difícil compreensão quando ficam restritos ao nível do intelecto, mas algo simples no plano da experiência corporal. No começo, ao observar como faz o/a mestre/a, ou ao menos algum/a praticante mais experiente, fica evidente uma certa graciosidade eficaz, sem esforço e aparentemente sem intencionalidade. Depois, com o tempo de treinamento, isso se evidencia na experiência pessoal, ao se ganhar gradualmente maestria sobre uma determinada técnica, até que ela faça parte da potência do corpo, não sendo mais algo distinto dele. Uma vez compreendido o gesto exemplar da técnica, com suas nuances sutis, o caminho é repetir e repetir, treinando até se apropriar dele. Em um primeiro momento, para certos/as estudantes, o intelecto pode ajudar a sistematizar uma compreensão rudimentar inicial, mas o verdadeiro aprendizado é sem palavras. É ele que sedimenta o conhecimento, que passa a fazer parte do repertório potencial de habilidades corporais.


É assim que 1 hábil artista marcial executa uma técnica em uma fração de segundo, reagindo à situação sem pensar. Também desse modo, 1 acupunturista experiente lê toda a condição de 1 paciente ao tocar seus pulsos e auscultá-los e insere as agulhas em pontos precisos de modo indolor. Dessa maneira, também a meditação começa, simplesmente ao se assumir a postura corporal e a atitude existencial correta: o se manifesta e começa a circular espontaneamente. Cada uma das habilidades que venho desenvolvendo gradualmente ao longo dos anos se deve à convivência com exemplos vivos: o mestre, um/a professor/a, um/a irmã/o de treinamento mais generosa/o que abriu as portas da compreensão ao proporcionar uma experiência marcante. Uma vez entendida a direção a seguir, só então, livros, imagens, vídeos e outros recursos didáticos e mnemônicos podem cumprir seu papel como ferramentas auxiliares ao aprendizado direto (corpo a corpo), graças à experiência pessoal previamente adquirida. O Caminho não se esgota: quanto mais se aprofunda, mais há a aprender e a compartilhar. Mas a partir de certo ponto é um aprendizado diferente: em vez de aumentar o volume de conhecimento, aprofunda-se a sua compreensão a tal ponto que o conhecimento se simplifica e se integra. Começamos a perceber os mesmos princípios que se expressam em diferentes áreas e múltiplas aplicações. Que perfeição! O próprio treinamento, se praticado corretamente, torna-se também um professor.

A Eficácia dos Treinamentos: 2. uma explicação fenomenológica

Na postagem de hoje, como na anterior, continuo a discussão sobre a eficácia dos treinamentos taoistas, só que dessa vez, desde uma outra chave de leitura: uma fenomenologia cultural da corporeidade.

Evitando uma longa e difícil discussão teórica que não é relevante para @ leitor não especialista, refiro-me aqui a um posicionamento que leva em conta o corpo como sujeito da cultura, considerando a experiência sensóriomotora e afetiva a base de nossa existência. É a capacidade de movimento próprio, percepção e afeto, aliada a um ajuste existencial ao ambiente circundante que torna possível toda a vida animada. E neste contexto, a experiência sensível precede a linguagem e o intelecto, tanto do ponto de vista lógico quanto cronológico/evolutivo.

Flechar o Ganso Selvagem, mais um exercício da famosa série Baduanjing. Foto do autor, setembro de 2018, da ilustração do século XIX, acervo do National Palace Museum, Taipei.

A hipótese de que por meio da experiência corporal podemos acessar um domínio da vida que antecede a linguagem e o intelecto é compatível com as práticas corporais taoistas utilizadas como meio para o cultivo de si. No caso, a pergunta seria: como exercícios lentos – caracterizados pela circularidade, pelo relaxamento, pela atenção ao eixo vertical e ao movimento que parte do centro de gravidade do corpo – podem promover uma transformação subjetiva, existencial?

Simplesmente pela criação e consolidação de novos hábitos posturais, motores e perceptivos, que tem um efeito global sobre o corpo. Como este não está separado da subjetividade, mas ambos compõem uma unidade, aprender novas técnicas corporais e criar novos hábitos pode ser uma das chaves para uma mudança subjetiva, existencial. Um aspecto fundamental aqui é o efeito do ritmo sobre a consciência. Uma maneira mais encarnada de entender uma cultura é como uma paisagem sensorial total que é marcada por seus próprios ritmos, texturas, sabores e cheiros.

Simplificando: no caso do mundo cultural taoista, treinando o hábito de manter o corpo relaxado e alinhado, de utilizar apenas a força necessária à execução de uma tarefa, de permanecer imóvel por longos períodos e de manter a atenção no centro de gravidade do corpo, de mover-se lentamente de forma circular, cultivamos, literalmente, um senso de centramento e equilíbrio existencial, refinamos nossa sensibilidade às circunstâncias do momento presente. O movimento em câmera lenta dos exercícios de qigong e taijiquan tem uma qualidade meditativa, que favorece a consciência do momento presente, por meio de uma apreensão direta, que dispensa as palavras e conceitos.


Imagem ilustrativa do exercício para o Triplo Aquecedor, da série Baduanjing. Foto ao autor, acervo do National Palace Museum, Taipei, setembro de 2018.

Esse retorno a uma consciência corporal pré-verbal, que percebe a postura e o movimento sem a necessidade de palavras, corresponde, em alguma medida, a um retorno à condição pré-natal. Assim, além de seus benefícios para a saúde, descritos em linguagem tradicional na postagem anterior, esses métodos ensinam uma atitude existencial caracterizada por um silêncio pleno de presença, de uma atenção relaxada, ao mesmo tempo a base da meditação e o efeito de sua prática prolongada.

A Eficácia dos Treinamentos: 1. uma explicação com base na tradição

Nessa postagem e na próxima, dedico-me à responder a seguinte pergunta: por que milhões de pessoas, durante incontáveis gerações na China e atualmente em vários países no mundo contemporâneo, praticam os treinamentos taoistas? A primeira parte da resposta é: por sua comprovada eficácia no cultivo da vida e da saúde, bem como no desenvolvimento de certas habilidades.


Baduanjing, ou os Oito Panos de Seda, famosa série de exercícios tradicionais para a saúde. Ilustração do século XIX, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor.

Portanto, não se trata de uma questão de crença, mas sim de experiência acumulada, acessível a quem pratica com seriedade. Tampouco se trata apenas de comprovar por experiência própria. Os treinamentos se baseiam num conhecimento sofisticado do corpo, que tem como referência a teoria médica chinesa e a cosmologia taoista.

Dito de uma maneira mais genérica, os diversos treinamentos são maneiras tradicionais para cultivar um equilíbrio dinâmico, no próprio corpo, entre yin e yang que, unidos em harmonia, formam um Taiji ☯. Essa atividade de regulação é a própria ação do Tao, segundo o poema 77 do Daodejing (道德經):

O Caminho do Céu é como o retesar do arco

A parte superior abaixa, a parte inferior sobe

A parte que possui sobra é diminuída

A parte não suficiente é completada

E era nesse sentido que mestre Liu Pailin afirmava que ensinava os treinamentos do Taiji, não apenas do Taijiquan. Ohando para um panorama geral dos treinamentos de nossa linhagem, faço a seguinte lista de benefícios básicos, utilizando de forma livre o vocabulário tradicional chinês:

Outra da série de ilustrações do século XIX do Baduanjing, ou os Oito Panos de Seda. Acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor.
  • Eliminar o turvo, causador de doenças, resultante da invasão de fatores patogênicos externos, mas também acumulado em função da alimentação, de tensões e de emoções excessivas e turbulentas.
  • Captar o de fontes naturais (o sol, a lua, certas constelações, montanhas, cachoeiras, florestas, árvores ancestrais, rochedos, o mar) para suprir o do corpo
  • Flexibilizar tendões e articulações.
  • Remover os bloqueios que impedem a livre circulação de e sangue. E promover uma circulação abundante e suave.
  • Equilibrar os cinco movimentos (五行):metal, água, madeira, fogo, terra.
  • Tonificar a essência (精) e o (氣 ou 炁), regular o shén (神), o que proporciona ao mesmo tempo longevidade e serenidade.
  • Despertar a espiritualidade latente do ser humano.

A alquimia interna taoista possui um aforismo que descreve de forma mais sofisticada e hermética todo o caminho da prática, que vai da condição pós-natal de uma pessoa comum à condição pré-natal de um ser completamente iluminado, como um imortal (仙) da mais alta categoria:

Treinar o jīng (精) para gerar qì (氣 ou 炁); treinar o para gerar shén (神); treinar o shén para entrar na vacuidade; treinar a vacuidade para unir-se ao Tao (道)

Essa descrição sintética e cifrada, no entanto, transcende a prática comum, para a saúde, e refere-se ao cultivo como caminho de vida, uma situação mais rara e que depende de algumas condições especiais: a obtenção de ensinamentos autênticos, a ajuda de um/a professor/a qualificadx, a dedicação cotidiana à prática.

O Corpo Taoista: 4. a educação corporal

Nesta quarta postagem da série O Corpo Taoista, o assunto é a educação corporal como arte da existência. Levar em consideração apenas as concepções de corpo sem atentar para as práticas corporais taoistas seria um grave mal entendido, pois os conceitos são descrições que permitem expressar e cultivar experiências. Traduzindo em termos práticos, cultivar o Tao equivale a uma (re)educação dos sentidos, da postura e dos modos de se mover. Mais uma vez, como a expressão dos mesmos princípios básicos, o corpo taoista senciente e em movimento, percebe sem se agitar e move-se em conformidade com o que é observado na natureza como a  chave para a continuidade: movimento lento, contínuo, gradual e circular, como foi reconhecido pelos antigos sábios taoistas ao contemplarem os astros, os ciclos das estações e outros fenômenos naturais. Ou como afirma a transmissão oral, inspirada no  Yijing: “o Céu e a Terra são duradouros porque sabem se mover continuamente”. Não só o movimento corporal se inspira nos ritmos naturais, mas também se harmoniza à manifestação cíclica de yin e yang no universo.  Há também inúmeros exercícios baseados nos movimentos de animais, reais ou míticos, uma apropriação seletiva de suas qualidades. O Caminho é percorrido por meio de um duplo aprendizado: contemplando diariamente a natureza e praticando os métodos transmitidos ao longo das gerações, tendo como exemplo uma pessoa viva que encarna a tradição com seu próprio corpo, como foi o caso do mestre Liu Pai Lin ao longo de cerca de duas décadas no Brasil.

mestres taoistas

Na foto, da direita para esquerda, mestre Liu Pailin e alguns de seus mestres: Liu Beizhong (linhagem Kunlun), o ancião Nanshi Laoren, Liao Kong (linhagem Longmen), Tanlaisheng (linhagem Jinshan).

 

 

O Corpo Taoista: 3. a especificidade do ser humano

Nessa terceira postagem da série O Corpo Taoista, recapitulo uma lição aprendida da  transmissão do mestre Liu Pai Lin, a particularidade do ser humano, como ponto de união entre Céu e Terra, se expressa em algumas características corporais de nossa espécie: o bipedismo, as mãos de cinco dedos e o fantástico cérebro humano. A postura bípede faz da coluna vertebral um eixo vertical. A cabeça e as mãos se conectam com o Céu, o baixo ventre e os pés se conectam com a Terra. Mais precisamente, as digitais dos dedos e o língtái (靈台), situado na região do terceiro ventrículo, conectam-se com os 10 Troncos Celestes (天干), enquanto a sola dos pés e o yīnqiào (陰竅), situado nos genitais internos, conectam-se com os 12 Ramos Terrestres (地支). São estas características que permitem captar o qì da natureza, para cultivar a vida e o espírito. O qì do Céu e o  da Terra se reúnem no centro do corpo, formando um Taiji, em torno do qual está um Bagua. Portanto, cultivar essa ligação é, ao mesmo tempo, qìgōng (炁功) e meditação (静坐). Mantendo as mãos e a atenção sobre a barriga, literalmente tomamos consciência do nosso centro, nosso Taiji, fazemos as eletricidades de cima e de baixo interagirem.

6 centros

Além disso, um ser humano vivo possui 6 Centros (六神竅), relacionados a diferentes aspectos da consciência, que permitem a interação com o da natureza para cultivar o Tao. A circulação dos 6 centros, ou pequeno universo, é um método clássico de meditação taoista. (Na foto acima, o diagrama dos 6 Centros utilizado pelo mestre Liu Pai Lin).

O Corpo Taoista: 2. O País Interior

Nessa segunda postagem da série O Corpo Taoista, desenvolvo o ponto anterior. O corpo, como pequeno universo, possui uma paisagem interna que, como objeto de contemplação meditativa, pode ser descrito como “país interior”. Esse entendimento justifica a leitura dos conselhos para o bom governo no 3º poema do Daodejing (道德經) como governo de si:

A pessoa sagrada governa                                                                                                  Esvazia seu coração                                                                                                             Enche seu ventre                                                                                                            Enfraquece suas vontades                                                                                           Robustece seus ossos

O coração é a sede do shén (): tem o sentido amplo de mente, ao mesmo tempo pensamento e emoção. O ventre, a barriga, remete ao centro do corpo, a região em torno do umbigo, a raiz ou origem fetal (胎元). Vontades aqui são desejos. Robustecer os ossos é um dos efeitos do cultivo da vida (命功). Assim a pessoa sábia cultiva a serenidade do coração, a plenitude do e a simplicidade no modo de vida. E vivendo assim obtém a combinação de longevidade e serenidade.

Mas o país interior pode ter ainda conotações mais literais: composto de mar, campos, bosques e montanhas, por palácios nos quais estão divindades que habitam os órgãos e regem a saúde, como no célebre diagrama do Neijingtu, abaixo.

O Corpo Taoista: 1. ponto de partida

As postagens desse mês serão focadas na temática do corpo. Uma característica marcante da tradição taoista é justamente que a espiritualidade não se opõe à corporeidade. Mais precisamente, o corpo vivido é a base do caminho.  Em primeiro lugar, contrastando com a ideia de corpo-coisa descrito como “máquina maravilhosa”, fundante para a medicina e as ciências da vida na civilização ocidental, o corpo taoista é um “pequeno universo”. Essa afirmação tem um sentido  preciso,  que combina a teoria dos cinco movimentos constitutiva da medicina tradicional chinesa desde o Huangdi Neijing, e a filosofia yin/yang apresentada em clássicos como o Daodejing e o Yijing. O corpo humano é formado pelas mesmas potências que compõem e permeiam o mundo natural. Essa afirmação ampla não seria questionada pela ciência ocidental moderna, para a qual é evidente que a matéria animada e inanimada tem a mesma origem e componentes básicos. No entanto, no caso do corpo taoista, a conotação é um pouco distinta. As conexões e semelhanças entre o corpo humano e os fenômenos naturais são também da ordem de correspondências e ressonâncias, não só de componentes básicos comuns a eles.  órgãos, vísceras, tecidos e fluidos do corpo humano correspondem aos mesmos cinco movimentos (wuxing) – fogo, água, terra, metal e árvore – que formam a paisagem natural. Além disso, determinados centros sutis ressoam com o mesmo qì que permeia a Terra e o Céu. Esse entendimento é o pano de fundo para o treinamento taoista, como cultivo do que é natural e retorno à natureza.

(Na foto, altar do deus da montanha, templo Zhinan, Taipei)

Estéticas da Existência em Fluxo: Corporeidade Taoista e Mundo Contemporâneo

Estéticas de Existência em Fluxo é o título de outro artigo que publiquei em 2011 na revista Ciências Sociais e Religião. Nele, refleti sobre a relevância da tradição taoista no mundo atual, ao se difundir fora da China e das comunidades chinesas da diáspora. Resumindo em umas poucas linhas, o argumento é que o taoismo proporciona uma linha de fuga à instabilidade das condições da vida urbana contemporânea, acirradas pelo capitalismo de consumo e pela privatização do bem público. Fora de apropriações consumistas superficiais, o taoismo poderia ser lido como uma verdadeira “arte da existência”. Seu modo de vida, avesso à aceleração e ao consumismo característico das formas vigentes de capitalismo. Quando bem sucedido, o treinamento taoista favorece uma reorientação existencial  em decorrência do aprendizado corporal consistente: aprender a perceber,  mover-se e sentir de um novo modo, implica aprender a ser. Relaxar toda tensão e esforço desnecessário, desfrutar dos prazeres da vida sem se exaurir, equilibrar atividade e repouso. São várias as metáforas clássicas, presentes no Daodejing (道德經) para expressar o viver em consonância com o Tao: a espontaneidade, maleabilidade e energia inesgotável de uma criancinha,  a perfeição da madeira bruta, a fluidez da água…

Qiedong fall