Como a compreensão do Daodejing e outros clássicos antigos pode contribuir para a boa prática da acupuntura?

Essa é uma pergunta que exige uma resposta cuidadosa e precisa. Obviamente, quem já leu o Clássico do Caminho e da Virtude (Dàodéjīng 道德經) sabe que este não é um texto médico, mas sim um texto filosófico. Lá não há nenhuma receita, nenhuma técnica terapêutica, nenhuma referência explícita à medicina chinesa.

Contudo, é um texto sobre o Caminho Natural (Dào 道). Essa palavra se refere à natureza das coisas, se preferirem, aos processos da natureza. Quem entende o Caminho, age com o mínimo de intervenção. Daí o uso da expressão paradoxal “não ação” (wúwéi 無謂). Compreender a natureza e intervir de forma não invasiva são habilidades que com certeza interessam ao/à acupunturista.

Embora esse conceito de Caminho, ou Tao, venha acompanhado de adjetivos como insondável, profundo e misterioso, a tradição oral taoista facilita nossa compreensão:

“Tao é Taichi. E Taichi é Yin e Yang em harmonia”.

A harmonia de Yin e Yang é o princípio básico para definir saúde no contexto da medicina chinesa. E resume o objetivo da prática terapêutica. E para isso, precisamos entender melhor Yin e Yang.

Nessa tarefa, o estudo dos clássicos chinesas traz uma grande contribuição. Pois a medicina chinesa é baseada em um tipo de raciocínio que se desenvolveu na civilização chinesa, bem diferente do pensamento ocidental que deu origem à ciência moderna. A medicina chinesa também se baseia em milênios de observação sistemática da natureza e no desenvolvimento de tratamentos por meio da experiência clínica de gerações de profissionais. Mas a linguagem que organiza esse raciocínio e informa a prática clínica é outra. Seus fundamentos são a filosofia Yin-Yang e a teoria dos Cinco Movimentos.

É aqui que entra o interesse pelo Daodejing. Seu autor, Laozi, nos explica com poemas, como funciona a natureza e como uma pessoa sábia deveria atuar, baseando-se nessa compreensão.

Vou ilustrar como este texto é rico, citando dois trechos de seus poemas:

“Existência e inexistência geram-se uma a outra,
Difícil e o fácil completam-se um ao outro,
Longo e curto estabelecem-se um pelo outro,
Alto e o baixo inclinam-se um pelo outro” (Daodejing, poema 2).

O que fica evidente neste trecho é que Yin e Yang, ao contrário da crença comum, não são duas coisas, que existem independentemente uma da outra. Em vez disso, são aspectos contrastantes e complementares de um fenômeno, que aparecem na nossa percepção. Assim, um termo só faz sentido em relação ao outro. Não existe algo difícil ou fácil em si, longo ou curto em si, alto ou baixo em si. Tudo isso depende de um termo de comparação, de um critério de medida. E é desse jeito para todos os pares de opostos que a imaginação humana possa criar.

Neste outro trecho, vemos a tendência natural à autorregulação:

“O Tao do Céu é como retesar o arco:
A parte superior abaixa, a parte inferior sobe.
A parte que possui sobra é diminuída,
A parte não suficiente é completada”
(Daodejing, poema 77).

O equilíbrio decorre de diminuir o excesso e suprir a falta. E esse processo é justamente representado de forma genial pelo símbolo do Taichi ☯: quando algo chega ao máximo se transforma no seu oposto. O movimento não pode seguir incessantemente, então se transforma em quietude, que por sua vez se transforma em movimento. Ao expandir até o máximo, é preciso contrair; ao contrair até o máximo, só nos resta expandir. Entendendo profundamente esse princípio, a civilização chinesa desenvolveu todas as suas artes e conhecimentos tradicionais, incluindo a medicina. Adquirindo maestria nesse entendimento dos movimentos da natureza, é possível reduzir nossos esforços e intervenções ao mínimo necessário, de tal modo, que parece que quase não fizemos nada especial, mas que tudo aconteceu sozinho, da melhor forma. E isso é a chamada “não ação”.

Esta pequena introdução é meu convite para estudarmos mais esse clássico precioso, o texto chinês mais traduzido para outras línguas em todo o mundo.

Conviver com (ou sobreviver a) períodos de limitação

Embora a vida seja movimento, esse movimento não é uniforme. Há períodos de expansão e fluidez, outros de retração e impedimentos, não importa o quanto tenhamos sabedoria e boa sorte. No entanto, o nível da dificuldade e do sofrimento dos tempos de limitação e infortúnio depende não só de circunstâncias alheias à nossa vontade – sejam elas naturais ou históricas -, mas também de nossos recursos subjetivos, existenciais, para lidar com elas. Para além da invenção individual, a arte taoista da existência pode trazer algum alento nessas situações.

Cachoeira Qiedong, arredores de Taipei, foto do autor, 2018.

No poema 78 do Daodejing (道德經), Laozi diz: “Sob o Céu/ Nada é mais suave e brando que a água/No entanto, para atacar o que é rígido e duro/ Nada pode se adiantar a ela/Nada pode substituí-la”. E a estrofe seguinte: “Assim/ A suavidade vence a força/ O brando vence o duro”. Essa metáfora do mundo natural, da água que escava a rocha sólida ou a contorna para seguir seu próprio curso, é um belo exemplo de sabedoria taoista para lidar com situações desafiantes: fluidez e adaptabilidade, em vez de rigidez e obstinação. Permanecer internamente fiel a si, mas sensível à situação, fazendo apenas o que é possível e necessário, até que o problema seja superado, às vezes de forma inesperada, pelo próprio curso da vida.

O sol refletido num córrego oculto na mata galeria, serra dos Pireneus, foto do autor, 2016.

Uma outra imagem inspiradora da água como metáfora do viver em situações adversas é o hexagrama Restrição ䷻, do Yijing (易經): abaixo o lago ☱, acima a água ☵, que se refere a um período de limitação inevitável. A água corrente se detém diante de um obstáculo, no caso uma depressão. E só pode voltar a correr depois de preencher totalmente esse espaço, até transbordar. Pacientemente, acumula forças até o momento propício para a superação. Tantas vezes não é possível avançar da maneira que pretendíamos e na velocidade que gostaríamos, mas é possível adaptarmo-nos às circunstâncias e seguir caminho. O desafio é manter as águas transparentes, límpidas, sem estagnar por frustração e impaciência. A marca de uma subjetividade saudável é a capacidade de seguir em frente, gerando novos sentidos, encontrando alternativas.

Quando o dilema é pessoal, a solução pode ser pessoal; mas quando o dilema é coletivo, em tempos como o nosso, de caos e crise social, a solução só pode estar no movimento solidário, para além de alternativas estritamente biográficas.