O Tao e a ação na vida

Existe um motivo para que os antigos textos taoistas tenham atravessado tantas gerações, é a sabedoria que eles contêm. Há algo a aprender com as experiências desses seres humanos extraordinários que habitaram épocas, paisagens e mundos culturais tão distantes dos nossos. Os clássicos taoistas preservaram uma compreensão profunda sobre o viver, nascida da capacidade de ficar em silêncio e observar a natureza, nela incluída a humanidade. Observando as mudanças e seus ciclos, presentes em todos os níveis, sintetizaram seu entendimento refinado em símbolos, como o do Taichi (Tàijí ), ou os hexagramas do Yìjīng, ou em versos, como os do Dàodéjīng, porque o que havia a dizer sobre a vida não cabe muito bem na linguagem linear do intelecto. A reflexão de hoje trata do que podemos aprender com o Tao sobre a ação.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.
Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

E, ao pensar em ação numa abordagem taoista, haveria duas direções a seguir: os princípios que orientam a conduta e a importância da espontaneidade. Falar em conduta poderia nos levar a pensar em termos de moral, e até de uma moral religiosa, visto que o taoismo tem sido objeto de estudo no campo da religião comparada, da história e da antropologia da religião. Mas sem ir nessa direção, acho mais interessante apontar para o essencial. A inspiração que encontro nos clássicos como orientação para a conduta são três princípios que vimos em postagens anteriores, e descritos por Laozi como três tesouros: amorosidade, simplicidade e não querer ser o primeiro sobre a terra. Esses princípios dão o tom de uma atitude existencial, mas não equivalem a regras ou mandamentos. Inclusive, o apelo ao moralismo é sintoma da perda de contato com as qualidades naturais do Tao, como podemos ver no poema 18 do Dàodéjing: “Quando se perde o Grande Caminho/ Surgem a bondade e a justiça/ Quando aparece a inteligência / Surge a grande hipocrisia / Quando os seis parentes não estão em paz / Surgem o amor filial e o amor paternal / Quando há desordem e confusão no reino/ Surge o patriota”.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

O Huáinánzĭ, que também está entre os mais importantes clássicos taoistas, ilustra a atitude taoista marcada por um certo relativismo moral, mas que não se confunde com cinismo. Pelo contrário, reflete um senso de adequação à situação, que depende de uma sensibilidade contextual , que oferece uma alternativa ao moralismo. Para dar uma ideia do que se trata, alguns fragmentos: “Certo e errado são situacionais. Na situação apropriada, nada é errado. Sem a situação apropriada, nada é certo”. Ou ainda: “O que é certo em um caso não é certo em outro, o que é errado em um caso não é errado em outro”. E mais adiante, na mesma sessão, conclui: “Portanto, líderes esclarecidos não impõem leis inúteis ou ouvem palavras ineficazes”.

Por fim, o tema da espontaneidade é central para o taoismo, sendo essa uma das características dos seres iluminados. Mas não se trata de espontaneidade, como frequentemente entendemos, no sentido de seguir os próprios impulsos sem discernimento, de fazer o que der na telha. A espontaneidade do Tao, é não ação, no sentido que a ação brota do vazio, da serenidade do coração e da receptividade que responde perfeitamente à necessidade da situação. Acontece assim, porque naquele instante não há uma identidade pessoal que protagoniza a ação como marca da sua presença no mundo. Não é um eu que age, há apenas o agir em harmonia com as circunstâncias, por isso, parece que nada foi feito, ou que ninguém agiu, mas ainda assim, ocorreu o que era necessário e eficaz. Quem sabe cada 1 de nós pôde experimentar isso, ainda que brevemente, mesmo uma única vez. Que isso possa nos inspirar a praticar formas de esquecermos de nós mesmos/as, para o bem de todos/as nós.

Tao, natureza e cultura

Uma das traduções mais frequentes para Tao (Dào 道) é caminho ou, mais precisamente, “o caminho natural”. E o taoismo seria, portanto, uma tradição que ensina a seguir o Tao, portanto, a estar em harmonia com a natureza. Mas de que estamos falando quando usamos os termos “natural” e “natureza”?

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.
Pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor, setembro 2018.

Ao falar em natural, ou natureza, num sentido taoista, a primeira imagem que surge é a alternância de yīn e yáng, observável nos ciclos do mundo natural: dias e noites, movimentos dos astros, fases da lua, estações do ano, marés. Isso também é observável nas formas pelas quais animais e plantas respondem a esses ciclos. E no próprio corpo humano: a grande circulação diária do pelos doze canais ordinários, correspondentes aos órgãos e vísceras, e o próprio ciclo de vida, do nascimento à morte, conforme descrito pela medicina tradicional chinesa. Baseada numa longa observação desses e outros processos durante muitas gerações, a tradição taoisa desenvolveu estratégias para manter o equilíbrio de yīn e yáng no ser humano, adaptando-se de modo inteligente às circunstâncias do mundo natural, em vez de se prejudicar por causa delas. O primeiro sentido da expressão “caminho natural” é bastante literal: o modo como as coisas funcionam na natureza, seus ciclos e fluxos. E estar em harmonia com a natureza é, portanto, adequar o modo de vida a esses processos. Por exemplo, quanto a que tipos de treinamentos fazer em que horário do dia ou época do ano.

Mas será que esse amor à natureza, o valor do natural, precisa ser inimigo dos desenvolvimentos tecnológicos? Ao longo da história da China, justamente por seu gosto em observar a natureza, muitas inovações técnicas foram desenvolvidas por taoistas. Aqui, basta pensar nos desenvolvimentos significativos no campo da medicina chinesa, uma das tradições médicas mundiais reconhecidas pela OMS. Ou seja, o respeito à natureza não está em contradição com o desenvolvimento técnico. Por outro lado, não se trata de uma narrativa cosmológica do privilégio humano sobre os outros seres, como a que caracterizou a tradição judaico-cristã e seus desdobramentos na modernidade, não apenas em nações ocidentais, mas pelo mundo afora.

Foto de satélite dos incêndios na Amazônia visíveis do espaço em 13 de agosto. Fonte: Nasa Earth Observatory.

Num momento como o atual, em que a relação predatória com o meio ambiente chega a níveis trágicos e catastróficos, como é ilustrado pela crise climática global, pelas toneladas de plástico poluindo os oceanos e mais recentemente pelo incêndio devastador na floresta amazônica, é preciso questionar as bases dos modelos de desenvolvimento e de relação com a natureza que têm movido esse movimento coletivo insano e suicida nas sociedades globalizadas e, especificamente, em nosso país. O descaso com a vida do planeta, inclusive com as vidas humanas, movido por uma ganância irracional, produziu uma infraestrutura de exploração que funciona de forma automática na geração de lucro, sem limites éticos nem preocupação com danos e consequências, uma verdadeira máquina de autodestruição. O que está em jogo é o ar, a água, o solo, os animais e plantas que dividem o planeta conosco, nossa própria sobrevivência, ameaçada por um processo que trouxe consigo uma crescente desigualdade econômica. Recursos vitais que pertencem a todos os seres estão sendo esgotados e destruídos para o enriquecimento de poucos e a pobreza de muitos.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

Neste sentido, dar ouvidos a outras vozes, ao saber acumulado de outras civilizações pode justamente inspirar uma atitude existencial mais respeitosa e abrangente com o mundo natural do qual fazemos parte, sem uma oposição entre o mundo humano e a natureza. Foi justamente a suposição de uma supremacia humana que tem justificado moralmente a devastação do meio ambiente, a extinção de outras formas de vida, a perturbação do delicado equilíbrio entre os diversos seres. Não se trata de negar o desenvolvimento tecnológico, mas de orientá-lo desde uma perspectiva de cuidado com a vida, de harmonia com a paisagem, de solidariedade entre seres humanos, fazendo uso dos recursos de uma forma mais sensata, que atente às gerações futuras, a reverter os danos causados até o presente e a gerar formas de extrair os recursos necessários sem exaurir a Terra.

Aqui faço essa reflexão inspirado pelas gerações de contemplativos taoistas que observaram com admiração o Céu, a Terra e os dez mil seres, no seu funcionamento cíclico, e buscaram meios para habitar o cosmo em harmonia com o fluxo da vida. Mas do mesmo modo, podemos buscar inspiração na sabedoria tradicional dos povos da floresta em nosso próprio país, que travam uma dura batalha pela sobrevivência.

O Tao e o consumo contemporâneo

Continuando o diálogo sobre o mundo contemporâneo, o tema de hoje é o consumo. Vários autores definiram as sociedades globalizadas atuais como sociedades de consumo. Essa ordem de coisas tem algumas consequências: a exaustão dos recursos naturais e a produção de uma quantidade imensa de lixo; o aumento da porcentagem da população mundial excluída dos direitos e serviços básicos, a formação de um novo tipo de subjetividade consumista. “Os consumidores são acima de tudo acumuladores de sensações“, como afirmou o sociólogo Zygmunt Bauman. Poderíamos dizer que um dos motores da sociedade de consumo é o desejo individual incessante. O contentamento não é bom para os negócios, pois um consumidor satisfeito não é levado a consumir mais. Óbvio, essa constatação não se aplica a bilhões de miseráveis e excluídos da globalização, desprovidos dos recursos e confortos básicos, mas é sobre saber se contentar quando se tem o suficiente, a virtude taoista da simplicidade, ou moderação.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016

Para Laozi, justamente o excesso de desejos é uma das raízes do infortúnio, como é descrito nos poemas 44 e 46 do Daodejing. Por isso, o elogio à simplicidade (no poema 67), também traduzida como moderação. Não é que não deveríamos desfrutar a vida, o problema são os excessos e o desperdício de recursos (justamente o que caracteriza o consumo, a lógica de jogar fora o que ainda é útil e está em bom estado, para continuar a consumir, de comer e beber quando já nos saciamos). Não faz sentido recomendar uma atitude ascética como alternativa ao consumismo, em tempos de obsessão pelo prazer e pelo bem estar. De fato, bastaria ter algum senso de proporção, exercitar algum contentamento.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.
Detalhe da mesma pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.

“As cinco cores tornam os olhos humanos cegos/ As cinco notas tornam os ouvidos humanos surdos/ Os cinco sabores tornam a boca humana insensível/ Carreiras de caça no campo tornam o coração humano enlouquecido/ Os bens de difícil obtenção tornam a caminhada humana prejudicada” (Daodejing, Poema 12). Esses versos antigos podem nos lembrar a cena do consumo contemporâneo: em busca de novas sensações, prazeres e experiências, vagando sem descanso. Fáceis de se entediar, incapazes de tolerar pequenas frustrações, os indivíduos consumidores vivem uma vida de conforto aparente, e insatisfação de bastidores.

O excesso de estímulos é cansativo e deixa o coração agitado. Na agitação, perdemos a sensibilidade. Nas grandes metrópoles, ficar insensibilizado diante da quantidade de imagens, do ruído excessivo, dos odores da poluição, do ritmo nervoso, das frustrações, relações ásperas e tensões diárias, é quase uma resposta de sobrevivência, mas que a longo prazo pode nos embrutecer e adoecer. De tempos em tempos, coisas simples, como um pouco de sol e ar puro, uma caminhada no parque, um banho de cachoeira, exercícios ao ar livre, olhar o céu, assim como um contato humano autêntico, podem nos devolver o estado de relaxamento que é necessário para ter alguma sensibilidade. E essa sensibilidade é necessária para desfrutar a vida.

O Tao e a exaustão contemporânea

Na postagem de hoje, damos continuidade ao diálogo entre a tradição taoista e o mundo contemporâneo. Já há algumas décadas o estresse e as doenças dele decorrentes foram consideradas um dos grandes problemas mundiais de saúde pública nas grandes cidades. Mais recentemente, a Organização Mundial da Saúde lançou um alerta sobre os danos causados pelo estresse no ambiente de trabalho. Não é que a tensão e a exaustão fossem desconhecidas de nossos ancestrais. Em sua análise sobre a origem das doenças, o excesso de trabalho foi considerado pela medicina tradicional chinesa como um fator de adoecimento, por desgastar os recursos do organismo, esgotando precocemente o e o jīng. Quem deseja viver muito deveria buscar um equilíbrio entre atividade e repouso, não simplesmente entre trabalho e lazer. Essa advertência é uma aplicação elementar da filosofia yīn-yáng ao manejo da saúde e o cultivo da vida. Para que haja equilíbrio, onde há movimento precisa haver também quietude, em uma saudável alternância, um tàijí ☯.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016

No entanto, em nossos tempos de aceleração constante, de movimento desenfreado, essa questão se tornou mais aparente e urgente. Hoje em dia, são muitos os apelos para a corrida desenfreada: incontáveis estímulos, tarefas, conexões, informações, atividades, desejos de consumo, imperativos da sobrevivência. Agitadxs e nervosxs, acabamos ficando exaustxs, por excesso de trabalho, mas também na tentativa de aliviar a tensão, nos momentos de lazer. Relaxar, uma resposta natural do organismo, que pode ocorrer periodicamente a qualquer momento, tornou-se um luxo, algo que necessita de todo um aparato técnico para ser obtida por alguns instantes. Uma civilização do excesso. Mas onde queremos chegar, correndo assim? Adoecemos e envelhecemos precocemente, antes de poder desfrutar dos resultados de nossos esforços. Como já dizia, repetidas vezes, o mestre Pailin: “pessoas de meia idade, andem devagar” (a caminho do cemitério)!

A população urbana tem desaprendido o valor do silêncio, do repouso, da contemplação. A vida contemporânea é pautada por um verdadeiro horror à quietude, ao espaço vazio, à pausa. E não é simplesmente insensatez individual, mas uma insanidade coletiva, sistêmica. É um imperativo dessa entidade metafísica insaciável, o Mercado: trabalhe, produza, enriqueça, lucre. Mas é também um hábito profundamente entranhado em nossos corpos. Mesmo quando deixamos o ambiente de trabalho, seguimos em uma atividade incessante, nem que seja entreter-se na tela de um dispositivo eletrônico. E assim avançamos, dia a dia, à beira do colapso. Não são apenas trabalhadores e trabalhadores exploradxs que vivem assim, mas também seus patrões. De fato, é preciso estar numa posição muito privilegiada no mundo profissional para poder recusar trabalho, estabelecer limites, desfrutar de horas suficientes de descanso e lazer. Não é uma questão apenas de discernimento individual e sabedoria, mas de condições sociais objetivas.

O filósofo Byung-Chul Han (1959-)

O filósofo Byung-Chul Han descreve a situação atual em seu livro “Sociedade do Cansaço“. Vivemos em uma sociedade do desempenho, formada por “empresários de si mesmos”(p.23), individualmente responsáveis por seu próprio sucesso ou fracasso, que naufragam na depressão quando não conseguem cumprir a obrigação de ter sucesso. Essa exigência constante de sucesso, visibilidade, produtividade é que nos leva à exaustão. O excesso exaustivo de desempenho tornou-se sinônimo de investir na própria carreira e até na própria vida, uma forma de autoexploração. Daí a epidemia de depressão, como “cansaço de fazer e de poder”(p.29), numa sociedade em que é preciso poder tudo. O excesso não está somente no trabalho, mas também nos estímulos, informações e desejos. Daí, uma atenção dispersa, incapaz de contemplar, que se entendia com facilidade e odeia o tédio. Han faz um elogio à contemplação profunda e ao lento, que embora não se refira às práticas taoistas e sua arte da existência, bem que podem nos servir aqui: “Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. […] No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas” (p. 36).

Detalhe de pintura da exposição temporária “imortais”, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Séculos antes da crise civilizatória atual, a tradição taoista já havia descoberto o valor da contemplação, cultivada na imobilidade do corpo por meio da meditação, e nos movimentos suaves e lentos das técnicas que hoje chamamos de qìgōng e tàijíquán, mas cujos princípios são muito mais antigos que esses nomes modernos. Silêncio e quietude, não como conceitos abstratos, mas como experiências saboreadas com o corpo. A serenidade não só como aspecto de um caminho contemplativo, se preferirem espiritual, mas como parte integrante do cultivo da vida, da boa saúde, aqui compreendida como equilíbrio dinâmico, não como justificativa para a obsessão pela boa forma.

O Qì é a base da vida. Mas o que é Qì?

O fundamento taoista do pensamento chinês que é a base da medicina tradicional e do qìgōng de longevidade é uma filosofia do movimento, da mudança. Como compreensão da vida, e aqui se incluem tanto concepções de natureza como de corpo humano, o conceito de é central. Mas, afinal, o que é ?

detalhe de pintura do acervo temporário do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Uma maneira prática de tratar o assunto é entender o como uma linguagem dos antigos chineses para descrever as qualidades de diferentes fenômenos naturais: um organismo vivo, uma paisagem, um fenômeno climático, um alimento ou planta medicinal, inclusive um corpo humano, uma pessoa, sua condição de saúde ou doença, etc. Não se trata de algo no campo da crença. Não é preciso “acreditar em ” como se fosse algum tipo de entidade metafísica. Embora esse conceito remeta ao aspecto invisível dos fenômenos naturais, que move ou anima, o qì se percebe com os sentidos, é algo que se sente, como qualquer artista marcial, praticante de qìgōng, especialista em fēngshuǐ ou acupunturista pode atestar. De fato, aprender qualquer um desses conhecimentos tradicionais chineses é familiarizar-se na prática com isso.

O pictograma em estilo caligráfico.

O caractere mais frequentemente utilizado para representar (氣), deriva historicamente do caractere vento (風), o que levou alguns estudiosos, especialmente da escola francesa, a descrever o como sopro. Em sua estrutura, é formado pelos caracteres para vapor e arroz, conotando um aspecto sutil do ar e dos alimentos. Há também outro caractere para (炁) que consta dos talismãs taoistas e que, segundo a explicação do mestre Pailin, remete ao aspecto yáng de luminosidade e calor: fogo do Céu. Em geral, o conceito de tem sido traduzido para línguas ocidentais como “energia”, “vitalidade” ou “força vital”, inclusive em traduções conceituadas de textos clássicos chineses, manuais de medicina tradicional e na transmissão oral de muitos mestres chineses.

Especialistas dos Estudos Chineses, como a francesa Elizabeth Rochat de la Valée ou o brasileiro Orley Dulcetti Júnior, apontam que se refere à capacidade de movimento e transformação. Ou seja, é a chave para entender todos os fenômenos naturais da perspectiva chinesa. Apesar de muito usados, termos como energia, vitalidade e força vital são alheios ao pensamento chinês antigo. Derivam de tendências do pensamento científico e filosófico europeu e foram utilizados desde as primeiras traduções dos clássicos chineses para línguas ocidentais, ainda no século XVIII. Esses termos podem ser úteis por serem familiares, mas trazem consigo armadilhas, pois nos levam para o terreno da crença ou da tentativa de demonstração da existência objetiva de uma força ou substância, às vezes até apelando para uma confirmação por parte da ciência experimental ocidental.

Mestre Liu Pailin era bastante taxativo ao afirmar que os métodos taoistas que ensinava era baseados em um conhecimento da natureza, a essência da civilização chinesa, sem uma conotação mística ou religiosa. Desde a perspectiva da tradição taoista, uma boa maneira de compreender o que é é pela experiência pessoal com os treinamentos de qìgōng, tàijíquán, dǎoyǐn, meditação, etc. Praticando, desenvolvemos uma nova sensibilidade corporal e aprendemos a perceber o por meio de certas sensações descritas pela tradição (frio, calor, peso, formigamento, corrente elétrica, fluxo, vibração) que surgem espontaneamente durante os treinamentos. Além disso, os estudos de antropologia dos sentidos e antropologia da corporeidade podem ser ferramentas úteis para entender esses fenômenos e nos familiarizar com esse importante conceito chinês.

Conviver com (ou sobreviver a) períodos de limitação

Embora a vida seja movimento, esse movimento não é uniforme. Há períodos de expansão e fluidez, outros de retração e impedimentos, não importa o quanto tenhamos sabedoria e boa sorte. No entanto, o nível da dificuldade e do sofrimento dos tempos de limitação e infortúnio depende não só de circunstâncias alheias à nossa vontade – sejam elas naturais ou históricas -, mas também de nossos recursos subjetivos, existenciais, para lidar com elas. Para além da invenção individual, a arte taoista da existência pode trazer algum alento nessas situações.

Cachoeira Qiedong, arredores de Taipei, foto do autor, 2018.

No poema 78 do Daodejing (道德經), Laozi diz: “Sob o Céu/ Nada é mais suave e brando que a água/No entanto, para atacar o que é rígido e duro/ Nada pode se adiantar a ela/Nada pode substituí-la”. E a estrofe seguinte: “Assim/ A suavidade vence a força/ O brando vence o duro”. Essa metáfora do mundo natural, da água que escava a rocha sólida ou a contorna para seguir seu próprio curso, é um belo exemplo de sabedoria taoista para lidar com situações desafiantes: fluidez e adaptabilidade, em vez de rigidez e obstinação. Permanecer internamente fiel a si, mas sensível à situação, fazendo apenas o que é possível e necessário, até que o problema seja superado, às vezes de forma inesperada, pelo próprio curso da vida.

O sol refletido num córrego oculto na mata galeria, serra dos Pireneus, foto do autor, 2016.

Uma outra imagem inspiradora da água como metáfora do viver em situações adversas é o hexagrama Restrição ䷻, do Yijing (易經): abaixo o lago ☱, acima a água ☵, que se refere a um período de limitação inevitável. A água corrente se detém diante de um obstáculo, no caso uma depressão. E só pode voltar a correr depois de preencher totalmente esse espaço, até transbordar. Pacientemente, acumula forças até o momento propício para a superação. Tantas vezes não é possível avançar da maneira que pretendíamos e na velocidade que gostaríamos, mas é possível adaptarmo-nos às circunstâncias e seguir caminho. O desafio é manter as águas transparentes, límpidas, sem estagnar por frustração e impaciência. A marca de uma subjetividade saudável é a capacidade de seguir em frente, gerando novos sentidos, encontrando alternativas.

Quando o dilema é pessoal, a solução pode ser pessoal; mas quando o dilema é coletivo, em tempos como o nosso, de caos e crise social, a solução só pode estar no movimento solidário, para além de alternativas estritamente biográficas.

Benefícios do Taichi e da medicina chinesa: uma explicação para o público em geral

Na postagem de hoje, o objetivo é tornar acessível ao público leigo o valor de dois conhecimentos tradicionais chineses: o Taichi e a acupuntura. A tarefa exige um caminho antropológico: um tentativa de tradução cultural. E a pergunta que pretendo responder é a seguinte: como explicar o sentido e a finalidade dessas duas práticas para um público formado numa visão biomédica de saúde e numa visão “fitness” de exercício? A resposta se destina a esse público, ou a praticantes e especialistas das práticas chinesas que estão em busca de formas simples de tornar a sua atividade compreensível para essas pessoas.

mestre Liu Pailin (1907-2000), pioneiro da divulgação do Taichi e da medicina chinesa no Brasil

O benefícios do Taichi e da medicina tradicional chinesa são mundialmente conhecidos e inclusive comprovados por pesquisas na área de saúde, como pode ser constatado consultando as plataformas de artigos científicos e também alguns livros destinados a um público mais amplo. Ao longo de várias postagens anteriores, tentei tornar essas informações acessíveis, como nas séries Medicina Tradicional Chinesa e Benefícios da Prática em Detalhes. No entanto, os conhecimentos tradicionais chineses se baseiam em princípios muito diferentes daqueles que fundamentam tanto a medicina convencional ocidental quanto as formas mais comuns de atividade física ocidental, ambas baseadas na mesma concepção (cartesiana) de corpo, entendido como “máquina maravilhosa”.

Em primeiro lugar, a medicina tradicional e os exercícios chineses para saúde e longa vida não se baseiam em uma separação entre corpo e mente: o aspecto material e “energético” de nosso corpo e a nossa consciência formam uma unidade dinâmica e complexa. Muito antes da ciência ocidental ter desenvolvido uma medicina psicossomática, os antigos chineses já haviam correlacionado os processos emocionais e o equilíbrio fisiológico, tanto em suas concepções de saúde, quanto de doença. Assim, tanto um desequilíbrio funcional pode implicar desequilíbrio emocional, quanto emoções excessivamente intensas e prolongadas podem ocasionar disfunções no nível fisiológico. Além disso, além dos componentes materiais do corpo, estruturas anatômicas, tecidos, órgãos e vísceras, os antigos chineses entenderam que o corpo é também composto por aspectos mais sutis, não perceptíveis diretamente, mas identificáveis qualitativamente, pelas condições de um determinado corpo.

Dentre estes aspectos sutis, talvez o conceito mais central seja o de (氣 ou 炁), normalmente traduzido como “energia”, “força vital” ou “vitalidade”. A discussão entre especialistas em filosofia chinesa e medicina tradicional tem questionado essas traduções, por sua imprecisão, ou melhor, porque as três noções mencionadas acima são alheias ao pensamento chinês e derivam respectivamente da física newtoniana e da filosofia vitalista, ambas de origem europeia.

Uma maneira relativamente simples de explicar a noção de é relacioná-la à capacidade de movimento e transformação, no corpo humano e na natureza em geral. Assim, todos os processos da vida, humana, animal e vegetal, animada e inanimada, podem ser descritos em termos de qualidades e quantidades distintas de qì.

Voltando ao nosso tema, toda a medicina chinesa, mas também o taichi, podem ser descritos como uma ciência tradicional do , ou se preferirem, um “trabalho sobre o ” (qìgōng 氣功 ou 炁功).

Mais precisamente, o que faz a acupuntura ao tratar uma doença é primeiro entender a natureza de uma doença específica como um tipo processual de desequilíbrio do , seja pela invasão do corpo por um fator patogênico externo (calor, frio, umidade, secura), seja por um desequilíbrio dos tipos de associados aos órgãos e vísceras (segundo a teoria dos cinco movimentos, metal, água, madeira, fogo e terra), seja por fatores alimentares, de estilo de vida ou emocionais. E, em seguida, utilizar as agulhas ou outros métodos) para regular o , removendo excessos, bloqueios que prejudicam seu livre fluxo, e/ou suplementando deficiências. Portanto, o objetivo da medicina chinesa é apoiar os processos de autorregulação presentes no próprio organismo.

Já o Taichi, e outros exercícios tradicionais chineses, podem ser pensados como qìgōng (氣功), formas cultivar o qì: circular, equilibrar, captar, acumular, etc. A lógica não é a do esforço, performance e exercício estenuante, ao contrário dos exercícios físicos convencionais. Ao contrário, são práticas lentas e suaves que promovem o desenvolvimento gradual e a preservação das capacidades corporais, trabalhando de forma suave e inteligente a força, a flexibilidade, o equilíbrio, a respiração natural e sobretudo a consciência corporal e a serenidade.

Clássicos: 7. a atualidade dos clássicos

Nessa nova postagem da série, um tema mais amplo. Em que se baseia o valor dos textos clássicos, e especificamente, dos clássicos chineses, no mundo contemporâneo? Começo a resposta com uma reflexão mais geral: um clássico, no sentido mais estrito do termo, é um texto que sobreviveu até nossos dias porque atravessou gerações e sobreviveu a várias transformações históricas. Isso se deve ao fato que, ao longo de tanto tempo, continuou a nos inspirar com ideias e conhecimentos relevantes. Pensadores como Hans Gadamer e Mikhail Bakhtin destacaram que o valor de um clássico está, justamente, em sua riqueza de significados, em sua abertura quase infinita para novas leituras, o que permite sua atualização. Em ambos, a leitura demanda uma atitude dialógica, de escuta do que o texto tem a nos dizer.

Paisagem com caligrafia, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

No caso chinês, há uma especificidade interessante: nem todo texto antigo tem o mesmo status de clássico. Para um determinado escrito ter em seu título o termo “clássico” (經), significa que conquistou um apreço especial. Normalmente os livros que possuem esse termo no seu título, são obras fundamentais de um determinado campo. Como exemplo, recordo aqui alguns textos já citados aqui, como o Daodejing (道德經), o Huangdineijing (黃帝內經) ou o próprio Yijing (易經). Esse último, o “Clássico das Mutações”, tem sido objeto de um curso de introdução desde o ano passado, que deve ocorrer em Brasília em meados de maio.

No que diz respeito aos textos clássicos chineses, mais especificamente os clássicos taoistas, ou ao menos aquelas obras dotadas de interesse para a compreensão da tradição taoista, ressalto que estes textos não são apenas um tesouro da civilização chinesa, mas, além disso, são parte do patrimônio cultural da humanidade. A chamada filosofia yin-yang, condensa em poucas representações simbólicas – como por exemplo o símbolo do Taiji ou as linhas, trigramas e hexagramas do Yijing – toda uma percepção do mundo natural, do lugar do ser humano nele e uma apreensão quase instantânea do caráter dinâmico de fenômenos de toda ordem. Tudo pode ser apreendido intuitivamente como uma combinação temporária de proporções variáveis e de aspectos yin e yang, formando um complexo jogo de forças complementares . E é esse pensamento que está na base de várias artes e ciências tradicionais chinesas.

Voltando à pergunta inicial que motivou essa postagem, o valor destes textos clássicos no momento atual está justamente na possibilidade de nos oferecer outras possibilidades de acesso à complexidade do mundo contemporâneo. E justamente por ser uma compreensão de mundo de caráter não essencialista, que em vez de fixar as coisas em essências metafísicas, permite-nos percebê-las em suas fluidez característica. Manifestando-se no tempo e no espaço, tudo que sobe, desce. Tudo que nasce, morre. Tudo que expande, contrai. O que estava em repouso, move, e o que move, retorna a quietude. Isso tudo ocorre simultânea e incessantemente. Os clássicos taoistas nos ensinam a mover e perceber a vida como movimento. E, em momentos de crise e turbulência no mundo humano, quem sabe possam nos oferecer alguma sabedoria que nos permita gerar alternativas benéficas ao caos atual.

Clássicos: 6. ainda sobre o I Ching como oráculo

A postagem de hoje dá seguimento ao tema do uso oracular do Clássico das Mutações (易經), discutido previamente. O recurso à divinação é muito comum em sociedades tradicionais de todas partes do mundo, mas tal prática também é popular nos ambientes urbanos das sociedades globalizadas contemporâneas.

Pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

Dessa vez, convido a uma reflexão sobre o uso correto do oráculo. No contexto desse blog, a expressão “uso correto” equivale a “em consonância com o Tao”. Com isso, quero dizer que, idealmente, a relação que estabelecemos com o Clássico das Mutações deveria apoiar o cultivo de um modo de vida em sintonia com os ritmos de yin e yang na natureza, com uma combinação equilibrada de movimento e quietude na vida diária, e com uma atitude existencial pautada na amorosidade, na simplicidade e na ausência do “desejo de ser o primeiro”. (Essas são as três virtudes taoistas descritas por Laozi no Daodejing – 道德經).

Sugiro então alguns critérios para o uso oracular do Clássico. Em primeiro lugar, temos o critério das circunstâncias para uma consulta. Afinal, quando faz sentido consultar um oráculo? A resposta é simples: apenas quando se trata de uma questão crucial, uma decisão a tomar que implica sérias consequências e que é suficientemente complexa para gerar dúvidas sobre como prosseguir. Portanto, uma primeira advertência no uso salutar do oráculo é não fazer perguntas desnecessárias, quer dizer, relativas a assuntos banais ou situações nas quais já sabemos o que fazer.

Na melhor das hipóteses, um oráculo – ou qualquer outra forma de aconselhamento – deveria ser uma ferramenta auxiliar para o desenvolvimento da nossa própria sabedoria. Utilizo aqui o termo sabedoria como um saber viver, não como sinônimo de intelecto nem de astúcia. Saber viver no sentido de sensibilidade às qualidades das situações vividas. Sabedoria é uma forma de apreciação intuitiva dos processos da vida e suas nuances. O Clássico das Mutações pode ser uma ferramenta para o cultivo da sabedoria quando entendemos a sua linguagem, baseada na filosofia yin-yang, e o utilizamos com moderação, apenas quando estritamente necessário. Quando pessoas muito confusas consultam oráculos com frequência, é comum que se tornem fascinadas por eles, dependentes de suas respostas e que escutem apenas o que desejam e não o que necessitariam ouvir.

Sendo assim, uma segunda recomendação no uso do oráculo, seja como especialista, seja como consulente, é: aprenda a serenar o coração. Um coração agitado só pode fazer perguntas insensatas e obter respostas truncadas. Consequentemente, alguma estabilidade meditativa, alguma capacidade de esvaziar-se de expectativas e aceitar a vida como ela se apresenta é um requisito para o bom uso dessa ferramenta. É nesse estado que faz a pergunta, identifica-se os hexagramas e linhas que surgem como resposta, e contempla-se, com coragem e sinceridade, o seu sentido.

Quanto às respostas dadas pelo oráculo, contêm três dimensões: uma descrição da situação, um possível prognóstico de seu desenvolvimento caso as coisas sigam na direção atual, um conselho sobre a atitude de uma pessoa sábia diante da situação-problema.


Clássicos: : 5. O I Ching como professor

A postagem de hoje retoma a série clássicos. Mais uma vez, o tema é o Yìjīng (易經). Tanto um comentarista clássico, como Confúcio, como a transmissão oral que recebi, inaugurada no Brasil por mestre Liu Pai Lin, afirmam que o texto contém os segredos do Céu e da Terra. Sendo uma das principais referências tradicionais para compreender a filosofia yīn-yáng, o clássico pode, por isso mesmo, ser tratado como um professor que poderia nos iniciar na compreensão, desde que saibamos escutá-lo.

Por sua vez, para isso, uma via tradicional é a da transmissão oral. Uma pessoa viva, que encarna a experiência da compreensão e a exemplifica com sua presença corporal, aponta o caminho a seguir. De posse desse entendimento, podemos começar um diálogo com o “Clássico das Mutações”.

Como assinalou François Jullien em seu ensaio sobre o Yìjīng (易經), Figuras da Imanência, embora seja conhecido como um livro, o “Clássico das Mutações” começou sem palavras: um livro feito de linhas, ou como ele prefere dizer, traços. Nas duas linhas, contínua ou partida, está resumido tudo: yáng, movimento, firmeza, luminosidade, etc.; yīn, quietude, maleabilidade, obscuridade, etc.

Em combinações sucessivas, de duas, três e seis linhas, está codificada toda a cosmologia taoista. Em última instância, o que temos aqui é uma elaboração sofisticada do símbolo do Tàijí (太極)☯. Em poucas palavras, todos os fenômenos que ocorrem nos níveis da Terra, do ser humano e do Céu, podem ser sinteticamente descritos como diferentes combinações destes dois aspectos complementares, opostos, indissociáveis, em perpétua alternância. Compreender isso é a porta de entrada para uma compreensão do mundo que rompe totalmente com a noção de essência, no sentido que a metafísica ocidental deu ao termo. Aqui temos uma filosofia do movimento, da transformação, do jogo de forças. Um filosofia da fluidez.

Pintura da exposição temporária sobre os imortais. Acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

Sendo imagens de seis linhas, como um código de barras, quem criou os hexagramas usou vantajosamente a abstração, pois cada combinação de trigramas contém em si múltiplas possibilidades de interpretação, como é ilustrado na “Discussão dos Trigramas” que é parte das chamadas “Dez Asas”, a coletânea de comentários explicativos ao Clássico, escritos por Confúcio. Nesse texto, em particular, ficam evidentes as múltiplas possibilidades de significação de cada um dos trigramas, isto é, os oito conjuntos de três linhas que representam os fenômenos básicos da natureza, como vimos antes.

Por meio dessas imagens, o Clássico nos dá a ver, ou perceber, o mundo como jogo incessante de yīn e yáng. Uma maneira um tanto simplificada de explicar isso: digamos que é como se os antigos chineses tivessem inventado, milênios antes de nossos computadores, uma descrição da natureza em termos de um código binário, onde yáng é 1 e yīn é zero, sem com isso cair no erro de pensar o mundo em termos dualistas, visto que as oposições estão contidas no interior de todos os fenômenos e as definições de yīn e yáng são sempre contextuais e relacionais.

Esse modo de perceber está em consonância com vários dos saberes tradicionais chineses: medicina, geomancia, artes marciais, técnicas de longa vida, estratégia militar, mesmo a pintura ou a música, entre outros.