Clássicos: 1. o Tao e o I Ching

Esse mês teremos postagens sobre textos clássicos taoistas estudados em nossa linhagem. A transmissão taoista do mestre Liu Pai Lin afirma que o Clássico das Mutações (Yìjīng 易經), mais do que um oráculo, é uma descrição dos segredos do universo e uma chave para vários treinamentos taoistas.

Suas origens se perdem nas brumas do tempo. Antes de ser um livro, era um conjunto de símbolos, cuja criação foi atribuída a um sábio primordial legendário: Xī, um dos imperadores míticos criadores da civilização chinesa, que teria vivido no terceiro milênio antes de Cristo. Utilizou uma linha interrompida () para representar yīn() e uma linha contínua (), para yáng (). Com as linhas, compôs os oito trigramas. E com esses, os 64 hexagramas.

Ma-Lin-Fuxi-and-turtle
Fuxi, pintura em seda da dinastia Song.

Assim, formulou imagens que permitiriam representar simbolicamente todos os fenômenos e situações como combinações diversas de yīn e yáng, sejam fenômenos naturais, eventos históricos, relações sociais, instituições, objetos, etc.  A vantagem de imagens simples e sintéticas, no caso, sequências de seis linhas horizontais formando um hexagrama, é que podem evocar diferentes sentidos conforme a situação. Assim, codificam uma compreensão de como o universo funciona e ao mesmo tempo descrevem um evento ou circunstância particular, quando surgem como resposta a uma consulta oracular. Entender seu simbolismo exige uma combinação do  conhecimento intelectual dos sentidos tradicionais das imagens e do significado do texto que as elucida, aliado a uma apreensão intuitiva das nuances do símbolo e de seu sentido contextual. No mês de agosto, estarei em Goiânia para ministrar um curso de introdução ao I Ching.

O Corpo Taoista: 1. ponto de partida

As postagens desse mês serão focadas na temática do corpo. Uma característica marcante da tradição taoista é justamente que a espiritualidade não se opõe à corporeidade. Mais precisamente, o corpo vivido é a base do caminho.  Em primeiro lugar, contrastando com a ideia de corpo-coisa descrito como “máquina maravilhosa”, fundante para a medicina e as ciências da vida na civilização ocidental, o corpo taoista é um “pequeno universo”. Essa afirmação tem um sentido  preciso,  que combina a teoria dos cinco movimentos constitutiva da medicina tradicional chinesa desde o Huangdi Neijing, e a filosofia yin/yang apresentada em clássicos como o Daodejing e o Yijing. O corpo humano é formado pelas mesmas potências que compõem e permeiam o mundo natural. Essa afirmação ampla não seria questionada pela ciência ocidental moderna, para a qual é evidente que a matéria animada e inanimada tem a mesma origem e componentes básicos. No entanto, no caso do corpo taoista, a conotação é um pouco distinta. As conexões e semelhanças entre o corpo humano e os fenômenos naturais são também da ordem de correspondências e ressonâncias, não só de componentes básicos comuns a eles.  órgãos, vísceras, tecidos e fluidos do corpo humano correspondem aos mesmos cinco movimentos (wuxing) – fogo, água, terra, metal e árvore – que formam a paisagem natural. Além disso, determinados centros sutis ressoam com o mesmo qì que permeia a Terra e o Céu. Esse entendimento é o pano de fundo para o treinamento taoista, como cultivo do que é natural e retorno à natureza.

(Na foto, altar do deus da montanha, templo Zhinan, Taipei)

Compreender o Tao: 1. ponto de partida

Hoje inicio uma série de postagens, intitulada compreender o Tao. Além da óbvia distância cultural entre a tradição taoista e o horizonte cultural primário de praticantes não chineses e não chinesas, de nações ocidentais ou do hemisfério sul, como a nossa, existe um problema ainda mais básico. Em função de uma história de modernização e ocidentalização em escala mundial, o que não pode ser descrito pela linguagem de forma precisa nem compreendido por meio do intelecto tende a ser desconsiderado. E é justamente disso que trata o taoismo: o indizível que pode ser vivenciado. Transcrevo abaixo os dois primeiros versos do texto fundante da tradição taoista, o Daodejing (道德經), na tradução do mestre Liu Pai Lin e de Jerusha Chang:

“O Tao descrito como o Tao não é o verdadeiro Tao.

O inominável nenhum nome pode nomear” (Daodejing, poema 1).img_36531-e1524669487821.jpg

(Acima: o sentido da estrutura do pictograma, segundo mestre Liu Pai Lin. Ilustração originalmente publicada em: Saúde Longevidade, caderno 1, São Paulo, Associação Tai Chi Pai Lin, 1994, p. 16).

O pictograma Dào (道) é normalmente traduzido como “caminho”. O sentido do termo já foi debatido à exaustão tanto por estudiosos e estudiosas, como por praticantes taoistas. De forma aproximativa, remete a uma ideia de ordem cósmica, formulada em termos de padrões cíclicos, ao estado natural, ao mistério da vida, etc. Mas, o paradoxo é que Laozi afirma explicitamente que não é possível descrevê-lo. Ou seja, as palavras e o intelecto não são suficientes para realmente compreendê-lo. Pode ser reconhecido por meio da experiência meditativa e da contemplação dos fenômenos da natureza. Aqui, como em outras tradições contemplativas, os conceitos, as palavras, são meramente indicadores da direção a seguir.