O Tao e o consumo contemporâneo

Continuando o diálogo sobre o mundo contemporâneo, o tema de hoje é o consumo. Vários autores definiram as sociedades globalizadas atuais como sociedades de consumo. Essa ordem de coisas tem algumas consequências: a exaustão dos recursos naturais e a produção de uma quantidade imensa de lixo; o aumento da porcentagem da população mundial excluída dos direitos e serviços básicos, a formação de um novo tipo de subjetividade consumista. “Os consumidores são acima de tudo acumuladores de sensações“, como afirmou o sociólogo Zygmunt Bauman. Poderíamos dizer que um dos motores da sociedade de consumo é o desejo individual incessante. O contentamento não é bom para os negócios, pois um consumidor satisfeito não é levado a consumir mais. Óbvio, essa constatação não se aplica a bilhões de miseráveis e excluídos da globalização, desprovidos dos recursos e confortos básicos, mas é sobre saber se contentar quando se tem o suficiente, a virtude taoista da simplicidade, ou moderação.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016

Para Laozi, justamente o excesso de desejos é uma das raízes do infortúnio, como é descrito nos poemas 44 e 46 do Daodejing. Por isso, o elogio à simplicidade (no poema 67), também traduzida como moderação. Não é que não deveríamos desfrutar a vida, o problema são os excessos e o desperdício de recursos (justamente o que caracteriza o consumo, a lógica de jogar fora o que ainda é útil e está em bom estado, para continuar a consumir, de comer e beber quando já nos saciamos). Não faz sentido recomendar uma atitude ascética como alternativa ao consumismo, em tempos de obsessão pelo prazer e pelo bem estar. De fato, bastaria ter algum senso de proporção, exercitar algum contentamento.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.
Detalhe da mesma pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.

“As cinco cores tornam os olhos humanos cegos/ As cinco notas tornam os ouvidos humanos surdos/ Os cinco sabores tornam a boca humana insensível/ Carreiras de caça no campo tornam o coração humano enlouquecido/ Os bens de difícil obtenção tornam a caminhada humana prejudicada” (Daodejing, Poema 12). Esses versos antigos podem nos lembrar a cena do consumo contemporâneo: em busca de novas sensações, prazeres e experiências, vagando sem descanso. Fáceis de se entediar, incapazes de tolerar pequenas frustrações, os indivíduos consumidores vivem uma vida de conforto aparente, e insatisfação de bastidores.

O excesso de estímulos é cansativo e deixa o coração agitado. Na agitação, perdemos a sensibilidade. Nas grandes metrópoles, ficar insensibilizado diante da quantidade de imagens, do ruído excessivo, dos odores da poluição, do ritmo nervoso, das frustrações, relações ásperas e tensões diárias, é quase uma resposta de sobrevivência, mas que a longo prazo pode nos embrutecer e adoecer. De tempos em tempos, coisas simples, como um pouco de sol e ar puro, uma caminhada no parque, um banho de cachoeira, exercícios ao ar livre, olhar o céu, assim como um contato humano autêntico, podem nos devolver o estado de relaxamento que é necessário para ter alguma sensibilidade. E essa sensibilidade é necessária para desfrutar a vida.

Conviver com (ou sobreviver a) períodos de limitação

Embora a vida seja movimento, esse movimento não é uniforme. Há períodos de expansão e fluidez, outros de retração e impedimentos, não importa o quanto tenhamos sabedoria e boa sorte. No entanto, o nível da dificuldade e do sofrimento dos tempos de limitação e infortúnio depende não só de circunstâncias alheias à nossa vontade – sejam elas naturais ou históricas -, mas também de nossos recursos subjetivos, existenciais, para lidar com elas. Para além da invenção individual, a arte taoista da existência pode trazer algum alento nessas situações.

Cachoeira Qiedong, arredores de Taipei, foto do autor, 2018.

No poema 78 do Daodejing (道德經), Laozi diz: “Sob o Céu/ Nada é mais suave e brando que a água/No entanto, para atacar o que é rígido e duro/ Nada pode se adiantar a ela/Nada pode substituí-la”. E a estrofe seguinte: “Assim/ A suavidade vence a força/ O brando vence o duro”. Essa metáfora do mundo natural, da água que escava a rocha sólida ou a contorna para seguir seu próprio curso, é um belo exemplo de sabedoria taoista para lidar com situações desafiantes: fluidez e adaptabilidade, em vez de rigidez e obstinação. Permanecer internamente fiel a si, mas sensível à situação, fazendo apenas o que é possível e necessário, até que o problema seja superado, às vezes de forma inesperada, pelo próprio curso da vida.

O sol refletido num córrego oculto na mata galeria, serra dos Pireneus, foto do autor, 2016.

Uma outra imagem inspiradora da água como metáfora do viver em situações adversas é o hexagrama Restrição ䷻, do Yijing (易經): abaixo o lago ☱, acima a água ☵, que se refere a um período de limitação inevitável. A água corrente se detém diante de um obstáculo, no caso uma depressão. E só pode voltar a correr depois de preencher totalmente esse espaço, até transbordar. Pacientemente, acumula forças até o momento propício para a superação. Tantas vezes não é possível avançar da maneira que pretendíamos e na velocidade que gostaríamos, mas é possível adaptarmo-nos às circunstâncias e seguir caminho. O desafio é manter as águas transparentes, límpidas, sem estagnar por frustração e impaciência. A marca de uma subjetividade saudável é a capacidade de seguir em frente, gerando novos sentidos, encontrando alternativas.

Quando o dilema é pessoal, a solução pode ser pessoal; mas quando o dilema é coletivo, em tempos como o nosso, de caos e crise social, a solução só pode estar no movimento solidário, para além de alternativas estritamente biográficas.

Modo de vida taoista: 12. mínimo esforço = máxima eficiência

Na postagem dessa semana, damos continuidade aos temas do modo de vida taoista. Se é importante reduzir o esforço desnecessário e aprender a relaxar, isso não se confunde com uma espécie de elogio à preguiça nem com a suposição equivocada de que o universo irá prover tudo sem que se tome as medidas necessárias. Obviamente, dentre as medidas necessárias, podemos incluir a paciência, para agir apenas no momento certo. E a sensibilidade para perceber o que fazer e como fazer. Essa decisão depende de uma capacidade de sentir o potencial da situação e agir com precisão sobre as forças que se direcionam a um determinado resultado. Não se trata de uma decisão tão calculista e deliberada, mas de uma sintonia com o momento presente, que não necessita de um autor da ação, alguém que se identifica com o resultado. Mas ao contrário, que age como se ninguém estivesse fazendo nada em especial.

A ideia é de um estilo de ação que busca os espaços de mínima resistência. Zhuangzi (莊子) utiliza a imagem magistral do cozinheiro do príncipe Wen Hui, destrinchando a carne de um boi. Ao cortar exatamente “na linha natural”, “no espaço oculto”, “como uma brisa”, o fio da lâmina não se desgasta. Do mesmo modo, o elogio de Laozi (老子) à água nos poemas 8 e 78 do Daodejing (道德經) refere-se justamente à sua suavidade e capacidade de adaptar-se, fluir, preencher os espaços vazios, uma excelente metáfora da ação em conformidade com o Tao.

O paradoxo dessa ação eficaz e aparentemente sem qualquer esforço, é que resulta, para imensa maioria das pessoas, de um aprendizado longo, de treinamento constante. Aprendemos o Tao por meio da constância. O ideograma de mesmo nome ䷟, composto pelo trovão (☳) acima e o vento (☴) abaixo, representa o movimento incessante, uma combinação de iniciativa externa e suavidade interna, entre outras possibilidades de interpretação. Pela prática repetida e pelo desenvolvimento gradual, é possível chegar a um nível de maestria que não é o da virtuose, mas sim o da não ação (無為).


Modo de Vida Taoista: 11. Reduzir todo esforço desnecessário

A postagem de hoje retoma a série dedicada ao modo de vida taoista. Em tempos de exaustão coletiva, o princípio taoista da não ação, ao mesmo tempo pode soar absurdo e servir como um lembrete útil sobre outras possibilidades de existência e subjetividade.

lagoa de carpas, com um símbolo do Tao, nas montanhas de Yilan, Taiwan.

Uma instrução básica da transmissão do mestre Liu Pailin era: “não forçar”. Isso se aplica, em primeiro lugar, à prática regular dos treinamentos taoistas que, ao contrário da cultura fitness, não pressupõem que a dor é o requisito para o resultado. Mas também é um princípio válido para uma atitude existencial geral. Essa recomendação simples expressa a confiança no desenvolvimento gradual e contínuo, sem necessidade de rupturas abruptas e superação de limites por meio da luta.

De fato, na maioria de nossas atividades cotidianas, relações e projetos, aplicamos mais força que o necessário. No nível mais óbvio, observe quanta tensão muscular é aplicada em movimentos simples que podem ser feitos de forma mais econômica e eficaz se aprendemos a relaxar enquanto nos movemos e utilizar apenas a força necessária. Experimente prestar atenção em quanta força e tensão utiliza para escovar os dentes, girar uma maçaneta, preparar um alimento, lavar louça, subir uma escada, segurar o volante do carro, digitar ou qualquer outra tarefa cotidiana. Ao praticar taijiquan ou o abraço da árvore (zhanzhuang), aprendemos a relaxar os músculos ao mesmo tempo em que mantemos a postura, o alinhamento do corpo e nos movimentamos de forma harmônica. O que é aprendido pelo corpo nas sessões formais de treinamento, com o tempo pode ser transferido para as atividades diárias. Nosso treinamento se expressa em uma graciosidade corporal natural.

O excesso de esforço desnecessário fica óbvio no movimento corporal, mas pode ser descoberto também quando examinamos a nossa vida mental. Como é cansativo ficar pensando intensamente, sem parar, mesmo quando não há nenhum problema urgente que exija nossa atenção. E como é exaustivo ser arrastado por emoções tão intensas que levam a ações sem lucidez que nos geram arrependimento. Por isso, as práticas taoistas combinam movimento e serenidade, serenidade ao se mover, e movimento interno ao ficar imóvel. Como a inquietude do coração é a base para todo tipo de doença, aprender a serenar, a manter o coração tranquilo em todas as circunstâncias, não é apenas parte de uma prática meditativa ou de um caminho de vida, mas tem indiscutíveis efeitos para a saúde. Nas frenéticas realidades urbanas contemporâneas, pouca gente pode entender o valor do silêncio, da quietude, do repouso, mas principalmente do silêncio interno.

Por do sol na Serra dos Pirineus, foto do autor.

Mas não se trata de um silêncio artificial, que nega as experiências ou deseja congelar a consciência numa quietude forçada, que é como uma anestesia. Em nosso corpo e em toda a natureza, vida é movimento incessante. E nas consciências, vida é percepção incessante. O segredo é aprender ficar ao mesmo tempo atentx e relaxadx. Assim é possível perceber os espaços vazios entre os objetos, as pausas entre os movimentos, os silêncios entre os sons. Esse é um dos sentidos da experiência da vacuidade.

Justamente, como expliquei anteriormente, o wuwei não se refere a não fazer, mas sim ao fazer com o máximo de eficiência e o mínimo de esforço. Contudo, esse fazer eficaz depende da capacidade de se desfazer de um senso de autoria, de alguém que faz, e de permanecer “vazio”, no sentido de uma receptividade altamente adaptável. Quanto maior a sintonia com as circunstâncias, quanto mais fluidez e adaptabilidade, menos esforço é necessário para realizar uma tarefa e chegar a um resultado favorável. E, embora seja um princípio, é menos algo que se decide por em prática deliberadamente, do que a consequência ostensiva do resultado de um sistema de práticas que transforma o corpo e a subjetividade.

Modo de vida taoista: 10. A capacidade de “escutar”

Nessa nova postagem da série modo de vida taoista, o tema é o desenvolvimento da sensibilidade à situação presente e às condições do ambiente circundante. Embora seja uma tradição contemplativa, a prática taoista não deveria nos deixar mais ensimesmadxs. Ao invés disso, se desenvolvemos suavidade e fluidez, semelhantes à da água, tornamo-nos cada vez mais sensíveis e adaptáveis. Os ritmos e fluxos do da natureza ficam evidentes e ressoam no corpo. As situações da vida são respondidas de forma gradualmente menos premeditada. Sendo capazes de uma apreensão intuitiva do momento presente, é possível agir em conformidade com o que a situação pede. E isso gera menos desgaste e demanda menos esforço.

Modo de vida taoista: 9. Não desejar ser o primeiro

Nesta nova postagem sobre modo de vida taoista, o assunto é a terceira virtude descrita por Laozi. Normalmente traduzida como modestia ou humildade, uma tradução mais literal seria não querer ser o primeiro. O ponto central é não nutrir rivalidade, nem competir com outras pessoas. A ideia de concorrência, de vitória, o desejo de superar rivais são alheios ao Caminho. Por isso, muitos sábios taoistas famosos recusaram honrarias, títulos e cargos na administração imperial em sua época. O verdadeiro respeito e a apreciação genuína se comunicam por gestos, de coração a coração. Dispensam excessos de protocolo e polidez artificial, e não estimulam a vaidade.

Modo de Vida Taoista: 8. Amorosidade/compaixão

Outro aspecto do modo de vida taoista tem sido traduzido nas línguas ocidentais como compaixão ou amorosidade. O sentido do termo precisa ser contemplado com cuidado. Não se trata uma identidade pessoal bondosa, que ama ou sente compaixão, que deseja ser uma boa pessoa. Mas sim de uma disposição amorosa mais impessoal e abrangente, que respeita as outras vidas e atenta para o máximo benefício coletivo. Por isso se diz:

O Grande Tao não tem sentimentos, ama todos os seres.

O Grande Tao não tem coração, seu coração é vasto como o mundo.

Modo de vida taoista: 6. Lidando com pessoas e situações

Neste sexto post da série modo de vida taoista, o tema são os desafios do cotidiano. A medida do sucesso na prática é o saber viver, aqui definido como uma justa combinação de fluidez e sensibilidade. De nada adianta a prática formal de meditação sentada, qìgōng ou tàijíquán, se, fora da situação de treinamento somos incapazes de expressar as qualidades que vivenciamos nos treinos. Aprender a mover o corpo de forma suave e circular, ou manter o corpo imóvel e estável por um longo período, ou ainda a relaxar e manter o coração sereno, são capacidades que é aconselhável transpor também para as situações diárias, principalmente as de conflito ou dificuldade. Por isso se diz:

O verdadeiro Tao requer de nós que lidemos com o mundo real, mas ao fazê-lo, o coração não se agita.

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Foto do autor: Detalhe do portal de entrada do templo do imortal Dòngbīn, em Zhǐnán Gōng, Taipei.

Metaforicamente, é preciso desenvolver nas relações uma habilidade de escuta, recepção e direcionamento da intenção das outras pessoas, como um tuīshǒu, o treinamento de empurrar as mãos do tàijíquán. Sem entrar em confronto direto, sem impor-se pela força, delicadamente redirecionando e dissolvendo as tensões. É preciso adaptabilidade e escuta nas situações comuns: imprevistos, mal-entendidos, tarefas, mesmo tragédias. De fato, as situações desafiantes ficam mais fáceis de lidar, se tratadas com leveza e tranquilidade, pois uma parte significativa das dificuldades vem de nossa própria confusão e tensão desnecessária. Isso não significa nem indiferença, nem negligência diante da ação necessária, mas em vez disso, uma prontidão serena que permite acolher a situação como é, agir de forma eficaz diante dela.

Modo de vida taoista: 1. uma arte de viver

Esse mês nossas postagens serão dedicadas ao modo de vida taoista. Essa expressão tem um sentido amplo: o taoismo é uma arte da existência, a arte de viver em sintonia com o Tao (Dào 道).  Colocando adequadamente em prática  os princípios e treinamentos taoistas no dia-a-dia, as consequências esperadas são um coração amoroso e sereno, um corpo flexível, vigoroso e saudável, relações mais harmoniosas com o ambiente circundante e os seres. taiji dragoesSe compreendemos os princípios e se os métodos são praticados corretamente, a vida se simplifica. O coração se abre. Desenvolvemos fluidez. Um mestre ou mestra realizadx é alguém que exemplifica isso com seu corpo, sem ao menos ter de dizer algo a respeito.  A natureza é a primeira mestra, mas em geral é um ser humano  que nos ensina a perceber os segredos da natureza. E assim, o presente é passado de geração em geração. Aprender, praticar, sentir os benefícios, ensinar.

Estéticas da Existência em Fluxo: Corporeidade Taoista e Mundo Contemporâneo

Estéticas de Existência em Fluxo é o título de outro artigo que publiquei em 2011 na revista Ciências Sociais e Religião. Nele, refleti sobre a relevância da tradição taoista no mundo atual, ao se difundir fora da China e das comunidades chinesas da diáspora. Resumindo em umas poucas linhas, o argumento é que o taoismo proporciona uma linha de fuga à instabilidade das condições da vida urbana contemporânea, acirradas pelo capitalismo de consumo e pela privatização do bem público. Fora de apropriações consumistas superficiais, o taoismo poderia ser lido como uma verdadeira “arte da existência”. Seu modo de vida, avesso à aceleração e ao consumismo característico das formas vigentes de capitalismo. Quando bem sucedido, o treinamento taoista favorece uma reorientação existencial  em decorrência do aprendizado corporal consistente: aprender a perceber,  mover-se e sentir de um novo modo, implica aprender a ser. Relaxar toda tensão e esforço desnecessário, desfrutar dos prazeres da vida sem se exaurir, equilibrar atividade e repouso. São várias as metáforas clássicas, presentes no Daodejing (道德經) para expressar o viver em consonância com o Tao: a espontaneidade, maleabilidade e energia inesgotável de uma criancinha,  a perfeição da madeira bruta, a fluidez da água…

Qiedong fall