Na postagem de hoje, como na anterior, continuo a discussão sobre a eficácia dos treinamentos taoistas, só que dessa vez, desde uma outra chave de leitura: uma fenomenologia cultural da corporeidade.
Evitando uma longa e difícil discussão teórica que não é relevante para @ leitor não especialista, refiro-me aqui a um posicionamento que leva em conta o corpo como sujeito da cultura, considerando a experiência sensóriomotora e afetiva a base de nossa existência. É a capacidade de movimento próprio, percepção e afeto, aliada a um ajuste existencial ao ambiente circundante que torna possível toda a vida animada. E neste contexto, a experiência sensível precede a linguagem e o intelecto, tanto do ponto de vista lógico quanto cronológico/evolutivo.
A hipótese de que por meio da experiência corporal podemos acessar um domínio da vida que antecede a linguagem e o intelecto é compatível com as práticas corporais taoistas utilizadas como meio para o cultivo de si. No caso, a pergunta seria: como exercícios lentos – caracterizados pela circularidade, pelo relaxamento, pela atenção ao eixo vertical e ao movimento que parte do centro de gravidade do corpo – podem promover uma transformação subjetiva, existencial?
Simplesmente pela criação e consolidação de novos hábitos posturais, motores e perceptivos, que tem um efeito global sobre o corpo. Como este não está separado da subjetividade, mas ambos compõem uma unidade, aprender novas técnicas corporais e criar novos hábitos pode ser uma das chaves para uma mudança subjetiva, existencial. Um aspecto fundamental aqui é o efeito do ritmo sobre a consciência. Uma maneira mais encarnada de entender uma cultura é como uma paisagem sensorial total que é marcada por seus próprios ritmos, texturas, sabores e cheiros.
Simplificando: no caso do mundo cultural taoista, treinando o hábito de manter o corpo relaxado e alinhado, de utilizar apenas a força necessária à execução de uma tarefa, de permanecer imóvel por longos períodos e de manter a atenção no centro de gravidade do corpo, de mover-se lentamente de forma circular, cultivamos, literalmente, um senso de centramento e equilíbrio existencial, refinamos nossa sensibilidade às circunstâncias do momento presente. O movimento em câmera lenta dos exercícios de qigong e taijiquan tem uma qualidade meditativa, que favorece a consciência do momento presente, por meio de uma apreensão direta, que dispensa as palavras e conceitos.
Esse retorno a uma consciência corporal pré-verbal, que percebe a postura e o movimento sem a necessidade de palavras, corresponde, em alguma medida, a um retorno à condição pré-natal. Assim, além de seus benefícios para a saúde, descritos em linguagem tradicional na postagem anterior, esses métodos ensinam uma atitude existencial caracterizada por um silêncio pleno de presença, de uma atenção relaxada, ao mesmo tempo a base da meditação e o efeito de sua prática prolongada.