O Tao como vida em relação

“Tao é Taichi, e Taichi é harmonia de yin e yang”. Essa afirmação tradicional tem uma consequência no entendimento do caminho taoista como a unidade de uma compreensão sobre a vida e de uma arte de viver. A vida é percebida como um jogo dinâmico de aspectos complementares, opostos, alternados, sempre organizados em relações. E o bem viver seria um exercício de sensibilidade e ajuste às condições e relações do momento, visando o equilíbrio, a fluidez e a ação eficaz com o mínimo de desgaste. Compreendendo corretamente o funcionamento da natureza, ou do Céu e da Terra, e desenvolvendo pela prática uma sintonia com esse funcionamento, a vida fica mais simples. Assim, “filosofia” e “treinamento” taoista não são coisas separadas, mas os dois lados do caminho. Em uma época de tantas experiências de solidão, isolamento e excessivo individualismo, talvez os antigos sábios chineses tenham algo a nos ensinar…

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Certamente, há todo uma dimensão social nessas experiências, uma desagregação do espaço público, o desmantelamento de políticas de bem estar e seguridade social, associados a uma desregulamentação que favorece o mercado e prejudica as vidas das pessoas comuns, a ausência de projetos para o bem comum, tudo isso associado a uma excessiva individualização nos ambientes urbanos globalizados. Então, a solidão está associada uma instabilidade nas condições sociais, a um enfraquecimento da profundidade e diversidade de vínculos significativos e, ao mesmo tempo, a um aumento da importância individual e da necessidade de visibilidade e popularidade.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

No entanto, se voltamos à concepção taoista sobre a vida, nunca estamos de fato separados/as do mundo nem das demais pessoas. Estudando a filosofia taoista e a medicina tradicional chinesa, podemos nos dar conta disso em um nível intelectual. Praticando meditação e qigong podemos nos dar conta disso pela experiência vivida, de conexão com o mundo à nossa volta e seus habitantes. Um corpo vivo é feito dos mesmos materiais que a natureza. E é sua permeabilidade ao ar, à água, aos alimentos, ao que torna a vida possível. A metáfora ocidental fundadora da identidade pessoal – eu como algo dentro, enquanto o mundo está fora – induz a um erro de percepção, com consequências existenciais. O mundo não está fora de nós, nós sempre estivemos dentro do mundo. E os seres humanos vivem graças às relações: não teríamos chegado à idade adulta sem cuidados, ajuda e aprendizagem oferecida por outras pessoas; a maioria de nós não poderia sequer sobreviver sem o trabalho e os conhecimentos de outras pessoas. Resumindo, assim como não poderemos viver se destruirmos o ambiente natural, a vida também não é possível sem solidariedade e cuidado mútuo. Ou até é possível, mas às custas da nossa sanidade e até mesmo de nossa humanidade.

Certamente direitos e liberdades individuais são um ganho, mas se tornam uma maldição quando não vem acompanhados de responsabilidades coletivas e respeito aos mesmos direitos e liberdades das demais pessoas. A convivência íntima se torna uma tirania e as relações sociais se tornam formas de exploração e opressão.

O que aprendi de meus mestres é que o cuidado de si, o cultivo da vitalidade e da serenidade, a conquista da saúde e da longevidade, o despertar da sabedoria, é parte do processo de aprender a cuidar dos/as outros/as. É porque temos equilíbrio que podemos ser uma presença benéfica. Só tem sentido uma vida longa se com ela podemos beneficiar nossas comunidades e partilhar conhecimentos e experiência acumulada.

O Tao e as angústias contemporâneas

A postagem de hoje aborda um outro aspecto do diálogo possível da tradição taoista com os dilemas do nosso tempo. Obviamente, os textos clássicos antigos não disseram nada específico a respeito do momento atual, pois foram escritos séculos antes, por pessoas que nunca vivenciaram essas condições históricas e culturais. No entanto, a riqueza desses textos, de sua interpretação por praticantes vivxs é o que torna os clássicos úteis. Clássicos, aqui, são aqueles textos que contêm o termo jīng (經) em seu título. Alguns deles tem sido citados nesse blog com frequência, como o “Clássico de Medicina Interna do Imperador Amarelo” (Huángdìnèijīng 黃帝內經), o “Clássico das Mutações” (Yìjīng 易經) ou o “Clássico do Caminho e da Virtude” (Dàodéjīng(道德經).

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016
Zygmunt Bauman (1925-2017)

Algumas análises sobre o mundo contemporâneo apontam para a instabilidade da condições sociais e suas consequências nas vidas individuais. Por questões de espaço, não vou me estender aqui sobre isso. Mas talvez um dos autores mais conhecidos seja o sociólogo Zygmunt Bauman. Ele descreveu o mundo contemporâneo das sociedades globalizadas como um momento de instabilidade, velocidade, fluidez, consequentemente de imprevisibilidade e precariedade. Daí o termo modernidade líquida, a passagem de uma sociedade da estabilidade, da ordem e da produção, para uma nova configuração, de instabilidade, desregulamentação e consumo: a liquefação da modernidade. Um mundo com mais possibilidades, mas ao mesmo tempo, com mais desamparo: o grande risco é o de se tornar redundante. Por isso, ao analisar as angústias do início do século XX, descritas por Freud em 1930, Bauman constata que as angústias atuais são outras: mais associadas à insegurança e ao excesso de referências contraditórias do que ao excesso de ordem e à repressão. Não é por acaso que as formas predominantes de sofrimento psíquico atual – particularmente no campo da depressão, ansiedade e pânico, por contraste com a histeria e a neurose da época de Freud – apontem para a falta de um terreno sólido onde se apoiar, de uma direção segura a seguir e dos recursos para tomar decisões eficazes. Paradoxalmente, com a crise das instituições que deram o tom da modernidade, e a consequente insegurança e desorientação, os discursos fundamentalistas de todo tipo tenham se tornado tão sedutores: a promessa de segurança no interior de uma comunidade de iguais, deixando do lado de fora a diferença que amedronta e incomoda. Mais recentemente, não é casual o crescimento das formas mais fundamentalistas de cristianismo no Brasil e a ascensão de um novo conservadorismo marcado por discursos de ódio. E por outro lado, a popularidade de discursos individualistas ingênuos, bem exemplificados pela explosão do coaching, como se nosso sucesso ou fracasso, felicidade ou infortúnio, dependesse exclusivamente de nossa vontade, e como se nossos destinos coletivos não estivessem interligadas.

E como a filosofia e o modo de vida taoista podem oferecer alternativas a esse cenário? Parte da minha resposta se refere ao fato de praticar o Tao ser uma arte de viver. Em primeiro lugar, sendo uma filosofia do movimento, podemos entender que nunca houve nada sólido a que se agarrar: a mudança é a própria característica definidora da vida. Então nunca estivemos no controle, temos apenas possibilidades relativas de nos posicionar diante de situações que não controlamos. Mas podemos aprender a fluir inteligentemente de acordo com as circunstâncias, desenvolvendo a sensibilidade e a lucidez. Em segundo lugar, as três virtudes taoistas básicas – amorosidade, simplicidade e “não querer ser o primeiro sobre a terra” – descritas por Laozi, podem ser um antídoto aos venenos contemporâneos da relação predatória e consumista com os outros e à ambição desmedida que iguala o valor pessoal ao desempenho. Há milênios que essa referência fundante do taoismo recomenda cuidar da terra e de seus habitantes, seres humanos e não-humanos; desfrutar dos prazeres sem excesso e não desperdiçar os recursos; evitar a rivalidade e a competição.

Detalhe de pintura da exposição sobre os imortais, acervo temporário do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Feitos com constância, os treinamentos podem minorar o estresse e auxiliar a recuperar a sanidade nesse mundo caótico. Se conseguimos relaxar um pouco, temos condição de estar mais sensíveis ao momento presente, mais disponíveis para fazer contato com as outras pessoas, menos predispostxs a adoecer, sofrer acidentes ou iniciar conflitos desnecessários. E quando mesmo assim entramos em desequilíbrio, a medicina tradicional pode apoiar a capacidade natural de nosso corpo de se autorregular.

A única constante na vida é a mudança

Continuando com o propósito de relacionar vida cotidiana e filosofia taoista, o tema da postagem de hoje é uma parte fundamental dela. Enquanto a maioria das tendências do pensamento filosófico ocidental, da antiguidade até pelo menos o início do século XX, trabalhou com a ideia metafísica de essência, que o mais importante é algo imutável, o fundamento do pensamento taoista é o movimento, a mudança. Isto está expresso em conceitos como Tao (Dào), yin-yang (yīn-yáng 陰陽), Taichi (Tàijí 太極), mutação ( 易), etc. Resumindo tudo isso num princípio simples: o caminho natural tende ao equilíbrio dinâmico; quando algo chega ao extremo se transforma no seu contrário.

Nebulosa planetária MyCn18, imagem do telescópio Hubble, NASA & ESA. O formato dessa nebulosa lembra muito a forma antiga do pictograma chinês “mistério” (xuán 玄).

Todos esses conceitos estão em consonância com uma característica fundamental de toda a vida, que podemos perceber ao observar a natureza, a sociedade ou nossa própria existência pessoal: tudo que está vivo está em perpétuo movimento. Na verdade, todo o universo, mesmo o que consideramos como matéria inanimada também está em movimento: nossos corpos e consciências, as sociedades e culturas, as plantas e animais, a paisagem geográfica, os corpos celestes e mesmo a menor das partículas. Em resumo, tudo é movimento, ritmo, mudança, transformação. Nesse ponto, o conhecimento tradicional chinês está em total concordância com o conhecimento científico moderno, seja da biologia, da física, da geografia, da astronomia, ou da história e das ciências sociais.

Pintura em seda, acervo do National Palace Museum, Taipei. foto do autor, setembro 2018.

Se isso é óbvio no nível material, também faz sentido ao observarmos com cuidado nossa experiência existencial: estar vivo é vivenciar constantemente novas percepções, impressões, emoções, pensamentos, incessantemente. Estamos vivos enquanto nossa capacidade de autorregulação continua a fazer as mudanças adaptativas necessárias, sejam metabólicas, fisiológicas, motoras, mas também emocionais e cognitivas, relacionais, um ajuste existencial contínuo, em todos os níveis, diante das situações que mudam a cada momento. Estar vivo é mover-se, mas também sensibilizar-se, aprender, descobrir.

mestre Liu Pailin (1907-2000).

O que a prática do Tao nos ensina é a nos manter em movimento de modo inteligente, em harmonia com o que cada momento pede, sem fazer força desnecessária, sem agitar o coração. Assim, saboreamos mais cada experiência, envelhecemos com sabedoria e saúde, passamos por situações difíceis com alguma serenidade, não nos desgastamos à toa. Não é casual que uma expressão de realização do Tao seja o riso, leve e espontâneo como o de uma criança pequena. Algo que só podemos vivenciar num estado de relaxamento. E essa leveza nos sensibiliza, quando estamos na presença de um mestre realizado. Foi assim que muitas pessoas começaram a praticar, após se encontrarem frente a frente com o mestre Liu Pai Lin, como ouvi repetidas vezes no final do anos 90, quando fazia meu trabalho de campo antropológico em sua escola. Também foi essa leveza que me fez buscar o caminho. Obrigado, mestre!

Cultivemos a quietude, antes que a vida nos obrigue a parar

Quando a filosofia taoista é apenas um assunto intelectual, interessa apenas a especialistas eruditos. Mas para quem pratica o Caminho, os princípios do Tao nos auxiliam a contemplar com mais sabedoria as experiências cotidianas, mesmo as mais banais. O seu valor está no domínio prático, como parte da nossa bússola existencial, não como um conhecimento exótico.

As sociedades contemporâneas se caracterizam por um verdadeiro excesso de movimento, estímulo sensorial e exigências de desempenho (na vida profissional, pessoal e até nos momentos de lazer). Habitantes das grandes cidades, aprendemos a temer o silêncio, a sentir angústia e tédio diante da quietude. Ficar paradx e em silêncio parece quase uma terrível punição.

No entanto, onde há movimento, precisa também haver quietude. É uma questão de equilíbrio. Mestre Pailin afirmou: “Tao é Taiji, e Taiji é yin e yang em harmonia”. Movendo sem descanso, nos desgastamos e acabamos encontrando infortúnios, como doenças e acidentes, que são apenas o resultado de nossa própria agitação e exaustão. Se não nos movemos o suficiente, estagnamos e enrijecemos. No entanto, nas sociedades contemporâneas, é mais frequente exagerar no movimento que na quietude: mesmo as pessoas mais sedentárias são levadas por um excesso de agitação. A solução está no meio termo: para viver bem, com saúde e sanidade, é preciso uma boa combinação de movimento e quietude. Uma lição simples, mas difícil de aprender.

A história do mestre Louva-a-deus em o Segredo dos Cinco Furiosos, captura de imagem ilustrativa 1, do autor.

Para alguns e algumas de nós, o universo parece se mover lento demais para nosso ritmo, como o mestre Louva-a-deus, personagem do universo Kungfu Panda em “O segredo dos Cinco Furiosos” (2008). Pessoalmente, conheço bem essa sensação. Foram anos de meditação para reduzi-la a um nível moderado.

A história do mestre Louva-a-deus em o Segredo dos Cinco Furiosos, captura de imagem ilustrativa 2, do autor.

Aceleradxs e desatentxs, ultraconfiantes, seguimos apressadamente em direção a desastres evitáveis. E nos surpreendemos quando acontecem. Não escutamos as advertências da vida e deixamos de tomar as precauções necessárias, simples.

A história do mestre Louva-a-deus em o Segredo dos Cinco Furiosos, captura de imagem ilustrativa 3, do autor.

Quando a vida nos obriga a parar, (no meu caso foi um acidente com fratura), tentamos resistir. Persistimos por um tempo nos maus hábitos que causaram o infortúnio. Mas finalmente nos aquietamos, a contragosto. Com sorte, brota alguma aceitação das circunstâncias. Quem sabe até desaceleramos?

A história do mestre Louva-a-deus em o Segredo dos Cinco Furiosos, captura de imagem ilustrativa 4, do autor.

Essas situações de restrição de movimentos, literal ou figurada, por doença ou acidente, podem ser uma ótima oportunidade para aprender o valor da quietude, da lentidão e da paciência. Uma bênção do universo disfarçada de desgraça. E para quem já pratica, uma oportunidade para aprofundar o treinamento e avaliar a sua qualidade, pois é na adversidade que vemos o quanto valeu a nossa prática. É fácil ficar sereno quando tudo segue a contento.

Por que utilizar um desenho animado, uma comédia de kung fu, para contar essa história, em vez dos clássicos taoistas? Porque a postagem de hoje se destina a leitores e leitoras urbanxs, apressadxs, talvez sem tempo ou paciência para ouvir os antigos sábios chineses.

Clássicos: 7. a atualidade dos clássicos

Nessa nova postagem da série, um tema mais amplo. Em que se baseia o valor dos textos clássicos, e especificamente, dos clássicos chineses, no mundo contemporâneo? Começo a resposta com uma reflexão mais geral: um clássico, no sentido mais estrito do termo, é um texto que sobreviveu até nossos dias porque atravessou gerações e sobreviveu a várias transformações históricas. Isso se deve ao fato que, ao longo de tanto tempo, continuou a nos inspirar com ideias e conhecimentos relevantes. Pensadores como Hans Gadamer e Mikhail Bakhtin destacaram que o valor de um clássico está, justamente, em sua riqueza de significados, em sua abertura quase infinita para novas leituras, o que permite sua atualização. Em ambos, a leitura demanda uma atitude dialógica, de escuta do que o texto tem a nos dizer.

Paisagem com caligrafia, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

No caso chinês, há uma especificidade interessante: nem todo texto antigo tem o mesmo status de clássico. Para um determinado escrito ter em seu título o termo “clássico” (經), significa que conquistou um apreço especial. Normalmente os livros que possuem esse termo no seu título, são obras fundamentais de um determinado campo. Como exemplo, recordo aqui alguns textos já citados aqui, como o Daodejing (道德經), o Huangdineijing (黃帝內經) ou o próprio Yijing (易經). Esse último, o “Clássico das Mutações”, tem sido objeto de um curso de introdução desde o ano passado, que deve ocorrer em Brasília em meados de maio.

No que diz respeito aos textos clássicos chineses, mais especificamente os clássicos taoistas, ou ao menos aquelas obras dotadas de interesse para a compreensão da tradição taoista, ressalto que estes textos não são apenas um tesouro da civilização chinesa, mas, além disso, são parte do patrimônio cultural da humanidade. A chamada filosofia yin-yang, condensa em poucas representações simbólicas – como por exemplo o símbolo do Taiji ou as linhas, trigramas e hexagramas do Yijing – toda uma percepção do mundo natural, do lugar do ser humano nele e uma apreensão quase instantânea do caráter dinâmico de fenômenos de toda ordem. Tudo pode ser apreendido intuitivamente como uma combinação temporária de proporções variáveis e de aspectos yin e yang, formando um complexo jogo de forças complementares . E é esse pensamento que está na base de várias artes e ciências tradicionais chinesas.

Voltando à pergunta inicial que motivou essa postagem, o valor destes textos clássicos no momento atual está justamente na possibilidade de nos oferecer outras possibilidades de acesso à complexidade do mundo contemporâneo. E justamente por ser uma compreensão de mundo de caráter não essencialista, que em vez de fixar as coisas em essências metafísicas, permite-nos percebê-las em suas fluidez característica. Manifestando-se no tempo e no espaço, tudo que sobe, desce. Tudo que nasce, morre. Tudo que expande, contrai. O que estava em repouso, move, e o que move, retorna a quietude. Isso tudo ocorre simultânea e incessantemente. Os clássicos taoistas nos ensinam a mover e perceber a vida como movimento. E, em momentos de crise e turbulência no mundo humano, quem sabe possam nos oferecer alguma sabedoria que nos permita gerar alternativas benéficas ao caos atual.