O Tao e as tecnologias de comunicação

O Taoismo (道家) é uma contribuição da civilização chinesa ao patrimônio cultural da humanidade. Essa antiga tradição, no entanto, não é uma peça de museu, um fóssil vivo, um documento arqueológico do passado distante, nem um tempero exótico com o qual consumidores e consumidoras das grandes cidades globalizadas possam apimentar a vida com mais distrações e experiências interessantes. Chegou até os dias de hoje por ter algo a dizer sobre o mundo em que vivemos. Ou melhor, porque tem algo a ensinar sobre a vida. Além disso, sobreviveu porque dialogou com as circunstâncias históricas, as culturas locais e as vidas cotidianas das pessoas que o praticaram, na China e pelo mundo afora. E particularmente, no momento atual, um ponto importante desse diálogo tem relação com as tecnologias de comunicação e seu impacto em nossas vidas. Esse é o tema da postagem de hoje.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016

Como já disse antes, a forma tradicional de transmitir o Tao é pela palavra falada e pelo gesto do mestre. Essa continua a ser a forma preferida pelos mestres e mestras taoistas, por ser a mais eficaz, a mais direta. No entanto, os tempos mudaram. Há algumas décadas o mundo se tornou mais conectado em termos de comunicação, informação e mesmo de deslocamento espacial de pessoas, coisas e símbolos. O que eram mundos culturais locais se abriram a novas misturas e conexões. Assim, as populações das grandes cidades do mundo passaram a estar expostas a uma multiplicidade de culturas, seja pelas migrações, seja pelos circuitos de arte, cultura e entretenimento, ou simplesmente pelas conexões digitais ao alcance da mão, em um celular ou computador.

Os tesouros culturais de mundos locais passaram a circular globalmente. No Brasil, foram milhares de imigrantes asiáticos que trouxeram consigo suas tradições. Esse foi o caso do mestre Liu Pailin, chegado ao Brasil no final dos anos 70, em visita a seus familiares já radicados no país. Ele foi um dos pioneiros chineses portadores dos conhecimentos do Taijiquan, da medicina tradicional e da meditação taoista, que divulgou pelo país afora por cerca de 20 anos. Percorrendo o Brasil, visitando a Argentina e o México, ele transmitiu oralmente os ensinamentos e deixou poucos escritos, principalmente apostilas de circulação interna em sua escola, apenas um livro, originalmente publicado no Japão com um discípulo, que foi posteriormente traduzido ao português, em 2007.

Como outros mestres tradicionais, seu legado perdura não só na memória e nos corpos de seus discípulos e discípulas, mas também no registros multimídia que agora também povoam a rede mundial de computadores: páginas de internet; vídeos no Youtube; perfis nas redes sociais dedicados a divulgar seu trabalho.

Não há nada de surpreendente nisso. Em tempos que a vida online e off-line se misturam, mesmo os conhecimentos corporais e a transmissão oral ecoam por essa via. A informação se tornou acessível numa escala nunca antes possível na história da humanidade. Apesar da transmissão nunca estar na íntegra num livro ou documento multimídia, fazendo a presença viva de quem instrui ainda indispensável, vários conhecimentos antes secretos se tornaram públicos. E é possível, inclusive, não apenas ter notícia de eventos, escolas e mestres pela web, mas também acompanhá-los à distância por meios das redes sociais e outras ferramentas. Agora é mais fácil saber onde encontrar as fontes confiáveis, desde que tenhamos critérios para filtrar o excesso de informação e imagens.

O paradoxo é que, em meio a tanto ruído, as palavras ditas sobre o Tao devem nos lembrar da importância do silêncio, ainda maior em nosso mundo performático e acelerado. Afinal, como diz o poema 23 do Dàodéjīng: “Falar pouco é o natural/ Um redemoinho não dura uma manhã/ Uma rajada de chuva não dura um dia”. O risco, ao se tentar comunicar o Tao para uma audiência virtual, é se perder na tentação da exibição de si que ronda toda ação nas redes sociais, na superficialidade para alcançar um maior público, no número de curtidas como valor.

O Qì é a base da vida. Mas o que é Qì?

O fundamento taoista do pensamento chinês que é a base da medicina tradicional e do qìgōng de longevidade é uma filosofia do movimento, da mudança. Como compreensão da vida, e aqui se incluem tanto concepções de natureza como de corpo humano, o conceito de é central. Mas, afinal, o que é ?

detalhe de pintura do acervo temporário do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Uma maneira prática de tratar o assunto é entender o como uma linguagem dos antigos chineses para descrever as qualidades de diferentes fenômenos naturais: um organismo vivo, uma paisagem, um fenômeno climático, um alimento ou planta medicinal, inclusive um corpo humano, uma pessoa, sua condição de saúde ou doença, etc. Não se trata de algo no campo da crença. Não é preciso “acreditar em ” como se fosse algum tipo de entidade metafísica. Embora esse conceito remeta ao aspecto invisível dos fenômenos naturais, que move ou anima, o qì se percebe com os sentidos, é algo que se sente, como qualquer artista marcial, praticante de qìgōng, especialista em fēngshuǐ ou acupunturista pode atestar. De fato, aprender qualquer um desses conhecimentos tradicionais chineses é familiarizar-se na prática com isso.

O pictograma em estilo caligráfico.

O caractere mais frequentemente utilizado para representar (氣), deriva historicamente do caractere vento (風), o que levou alguns estudiosos, especialmente da escola francesa, a descrever o como sopro. Em sua estrutura, é formado pelos caracteres para vapor e arroz, conotando um aspecto sutil do ar e dos alimentos. Há também outro caractere para (炁) que consta dos talismãs taoistas e que, segundo a explicação do mestre Pailin, remete ao aspecto yáng de luminosidade e calor: fogo do Céu. Em geral, o conceito de tem sido traduzido para línguas ocidentais como “energia”, “vitalidade” ou “força vital”, inclusive em traduções conceituadas de textos clássicos chineses, manuais de medicina tradicional e na transmissão oral de muitos mestres chineses.

Especialistas dos Estudos Chineses, como a francesa Elizabeth Rochat de la Valée ou o brasileiro Orley Dulcetti Júnior, apontam que se refere à capacidade de movimento e transformação. Ou seja, é a chave para entender todos os fenômenos naturais da perspectiva chinesa. Apesar de muito usados, termos como energia, vitalidade e força vital são alheios ao pensamento chinês antigo. Derivam de tendências do pensamento científico e filosófico europeu e foram utilizados desde as primeiras traduções dos clássicos chineses para línguas ocidentais, ainda no século XVIII. Esses termos podem ser úteis por serem familiares, mas trazem consigo armadilhas, pois nos levam para o terreno da crença ou da tentativa de demonstração da existência objetiva de uma força ou substância, às vezes até apelando para uma confirmação por parte da ciência experimental ocidental.

Mestre Liu Pailin era bastante taxativo ao afirmar que os métodos taoistas que ensinava era baseados em um conhecimento da natureza, a essência da civilização chinesa, sem uma conotação mística ou religiosa. Desde a perspectiva da tradição taoista, uma boa maneira de compreender o que é é pela experiência pessoal com os treinamentos de qìgōng, tàijíquán, dǎoyǐn, meditação, etc. Praticando, desenvolvemos uma nova sensibilidade corporal e aprendemos a perceber o por meio de certas sensações descritas pela tradição (frio, calor, peso, formigamento, corrente elétrica, fluxo, vibração) que surgem espontaneamente durante os treinamentos. Além disso, os estudos de antropologia dos sentidos e antropologia da corporeidade podem ser ferramentas úteis para entender esses fenômenos e nos familiarizar com esse importante conceito chinês.

A única constante na vida é a mudança

Continuando com o propósito de relacionar vida cotidiana e filosofia taoista, o tema da postagem de hoje é uma parte fundamental dela. Enquanto a maioria das tendências do pensamento filosófico ocidental, da antiguidade até pelo menos o início do século XX, trabalhou com a ideia metafísica de essência, que o mais importante é algo imutável, o fundamento do pensamento taoista é o movimento, a mudança. Isto está expresso em conceitos como Tao (Dào), yin-yang (yīn-yáng 陰陽), Taichi (Tàijí 太極), mutação ( 易), etc. Resumindo tudo isso num princípio simples: o caminho natural tende ao equilíbrio dinâmico; quando algo chega ao extremo se transforma no seu contrário.

Nebulosa planetária MyCn18, imagem do telescópio Hubble, NASA & ESA. O formato dessa nebulosa lembra muito a forma antiga do pictograma chinês “mistério” (xuán 玄).

Todos esses conceitos estão em consonância com uma característica fundamental de toda a vida, que podemos perceber ao observar a natureza, a sociedade ou nossa própria existência pessoal: tudo que está vivo está em perpétuo movimento. Na verdade, todo o universo, mesmo o que consideramos como matéria inanimada também está em movimento: nossos corpos e consciências, as sociedades e culturas, as plantas e animais, a paisagem geográfica, os corpos celestes e mesmo a menor das partículas. Em resumo, tudo é movimento, ritmo, mudança, transformação. Nesse ponto, o conhecimento tradicional chinês está em total concordância com o conhecimento científico moderno, seja da biologia, da física, da geografia, da astronomia, ou da história e das ciências sociais.

Pintura em seda, acervo do National Palace Museum, Taipei. foto do autor, setembro 2018.

Se isso é óbvio no nível material, também faz sentido ao observarmos com cuidado nossa experiência existencial: estar vivo é vivenciar constantemente novas percepções, impressões, emoções, pensamentos, incessantemente. Estamos vivos enquanto nossa capacidade de autorregulação continua a fazer as mudanças adaptativas necessárias, sejam metabólicas, fisiológicas, motoras, mas também emocionais e cognitivas, relacionais, um ajuste existencial contínuo, em todos os níveis, diante das situações que mudam a cada momento. Estar vivo é mover-se, mas também sensibilizar-se, aprender, descobrir.

mestre Liu Pailin (1907-2000).

O que a prática do Tao nos ensina é a nos manter em movimento de modo inteligente, em harmonia com o que cada momento pede, sem fazer força desnecessária, sem agitar o coração. Assim, saboreamos mais cada experiência, envelhecemos com sabedoria e saúde, passamos por situações difíceis com alguma serenidade, não nos desgastamos à toa. Não é casual que uma expressão de realização do Tao seja o riso, leve e espontâneo como o de uma criança pequena. Algo que só podemos vivenciar num estado de relaxamento. E essa leveza nos sensibiliza, quando estamos na presença de um mestre realizado. Foi assim que muitas pessoas começaram a praticar, após se encontrarem frente a frente com o mestre Liu Pai Lin, como ouvi repetidas vezes no final do anos 90, quando fazia meu trabalho de campo antropológico em sua escola. Também foi essa leveza que me fez buscar o caminho. Obrigado, mestre!

Benefícios da prática em detalhes: 6. uma síntese

Ao longo dessa série, meu esforço foi responder, de modo acessível ao público leigo, a seguinte pergunta: mas afinal, por que praticar exóticos exercícios chineses como taijiquan ou qigong? Qual a relevância dessas práticas nos dias de hoje?

As várias postagens anteriores tentaram evidenciar, com contribuições de pesquisas da medicina ocidental os inúmeros benefícios comprovados, mensuráveis desses exercícios, que justificam recomendar sua prática como prevenção e promoção de saúde, como maneira de envelhecer sem decrepitude e com qualidade de vida, mas também como recurso terapêutico complementar para várias doenças crônicas. Foi isso que pretendi compartilhar, em linguagem acessível e utilizando uma fonte confiável de divulgação do conhecimento médico convencional sobre o tema.

Tendo compreendido os benefícios da prática, fica fácil entender porque o treinamento regular, de preferência diário, é um dos segredos da notável vitalidade, saúde e vivacidade de espírito de tantos e tantas praticantes experientes na China e pelo mundo afora, inclusive no Brasil, onde o famoso mestre Liu Pailin, fundador de uma das escolas que pratico e ensino, teve um papel pioneiro na divulgação da medicina tradicional chinesa e do métodos taoistas de longa vida, como o taijiquan e tantos outros.

mestre Liu Pailin (1907-2000)

Voltando à explicação baseada no pensamento chinês, as teorias de fundo que orientaram o desenvolvimento de técnicas corporais taoistas e outros métodos chineses de saúde e longevidade, como o taijiquan, provêm da filosofia taoista e da medicina tradicional. Em vez de separar/opor corpo e mente, como na perspectiva cartesiana que formou a medicina convencional ocidental, a relação corpo e mente é concebida aqui como um contínuo. A consequência é que o equilíbrio do dos órgãos e vísceras contribui para o equilíbrio emocional e vivacidade da consciência, e vice-versa. A plenitude do , a harmonia de yin e yang, a capacidade de manter o coração sereno diante das circunstâncias: tudo isso é a base da saúde e da longevidade, mas também o fundamento para percorrer o caminho do Tao. O equilíbrio no corpo é a base que permite o cultivo da espiritualidade. Por isso, ainda que toda a prática beneficie ao mesmo tempo a saúde e a serenidade, práticas mais aprofundadas de meditação normalmente são ensinadas depois dx praticante aprender a regular o e o coração, aqui entendido no sentido de consciência. Ou nos termos tradicionais, o “cultivo da vida” começa antes do “cultivo do espírito” e é a sua base.

As agitações e preocupações da vida diária, a relação desproporcional entre movimento e quietude, tudo isso cobra o seu preço sobre nossa saúde e sanidade. E, vivendo numa grande cidade, fica cada vez mais difícil escapar do excesso de trabalho, mas também do desgaste excessivo nos momentos de lazer. Mestre Pailin recomendava: “pessoas de meia idade (após os 35 anos), andem devagar”. Havia uma ironia não dita nessa recomendação: devagar, “a caminho do cemitério”. Quem quer ter uma vida longa e possuir não só saúde, mas também boa disposição e manter suas capacidades cognitivas e corporais também na velhice precisa aprender a se preservar. Descansar, manter o coração sereno, interagir com o da natureza, usar apenas a força necessária para realizar uma tarefa. Essas são as recomendações básicas contidas nos inúmeros ensinamentos do mestre. E treinar, treinar e treinar. O mestre afirmava que não ousava ficar um dia sem praticar. Explicava que sua longevidade e impressionante boa saúde em idade avançada se deviam aos treinamentos, pois era de uma família em que as pessoas morriam muito jovens.

Compreender o Tao: 1. ponto de partida

Hoje inicio uma série de postagens, intitulada compreender o Tao. Além da óbvia distância cultural entre a tradição taoista e o horizonte cultural primário de praticantes não chineses e não chinesas, de nações ocidentais ou do hemisfério sul, como a nossa, existe um problema ainda mais básico. Em função de uma história de modernização e ocidentalização em escala mundial, o que não pode ser descrito pela linguagem de forma precisa nem compreendido por meio do intelecto tende a ser desconsiderado. E é justamente disso que trata o taoismo: o indizível que pode ser vivenciado. Transcrevo abaixo os dois primeiros versos do texto fundante da tradição taoista, o Daodejing (道德經), na tradução do mestre Liu Pai Lin e de Jerusha Chang:

“O Tao descrito como o Tao não é o verdadeiro Tao.

O inominável nenhum nome pode nomear” (Daodejing, poema 1).img_36531-e1524669487821.jpg

(Acima: o sentido da estrutura do pictograma, segundo mestre Liu Pai Lin. Ilustração originalmente publicada em: Saúde Longevidade, caderno 1, São Paulo, Associação Tai Chi Pai Lin, 1994, p. 16).

O pictograma Dào (道) é normalmente traduzido como “caminho”. O sentido do termo já foi debatido à exaustão tanto por estudiosos e estudiosas, como por praticantes taoistas. De forma aproximativa, remete a uma ideia de ordem cósmica, formulada em termos de padrões cíclicos, ao estado natural, ao mistério da vida, etc. Mas, o paradoxo é que Laozi afirma explicitamente que não é possível descrevê-lo. Ou seja, as palavras e o intelecto não são suficientes para realmente compreendê-lo. Pode ser reconhecido por meio da experiência meditativa e da contemplação dos fenômenos da natureza. Aqui, como em outras tradições contemplativas, os conceitos, as palavras, são meramente indicadores da direção a seguir.

Mestres do Tao: tradição, experiência e etnografia

Mestres do Tao é o título de um artigo que publiquei na Revista Horizontes Antropológicos em 2005, uma versão reduzida de um dos capítulos de minha tese de doutorado sobre a escola taoista do mestre Liu Pai Lin (1907-2000). Nele, reflito sobre o papel na narrativa no aprendizado do Tao, como a palavra se combina a outros modos de transmissão da tradição e os dilemas da tentativa de fazer uma descrição etnográfica dela. Naquele momento, a figura do mestre Pai Lin (foto abaixo) me impressionava por sua saúde e vivacidade de espírito, com mais de 90 anos. E por, literalmente, encarnar o que ensinava, um conhecimento vivencial sobre a vida, não uma “filosofia” no sentido de um saber meramente intelectual, desencarnado. Não tinha ainda a dimensão do impacto desse contato breve na minha biografia. Vinte anos depois deste primeiro encontro, percebo que o que me impressionou foi a possibilidade de existir com fluidez e relaxamento, com lucidez e alegria de viver, inclusive em uma idade tão avançada. Um encontro que deixou uma marca profunda e plantou as sementes do momento atual. IMG_1308.jpg