Benefícios da prática em detalhes: 5. Mente calma e atenta

Na postagem de hoje sobre os benefícios da prática em detalhes, o assunto é a sua dimensão meditativa que, entre outros aspectos, tem efeitos na saúde cerebral e psicológica. Treinar taijiquan (e outros exercícios análogos, como qigong), além dos benefícios para a saúde descritos nas postagens anteriores, é também uma maneira dinâmica de cultivar uma qualidade meditativa por meio do movimento circular, lento e rítmico, a atenção total ao momento presente. Além disso, a respiração abdominal profunda propicia um aumento do relaxamento e do equilíbrio emocional. Utilizando os termos mais tradicionais para descrever a prática, o taijiquan e exercícios com princípios similares permitem cultivar ao mesmo tempo movimento e serenidade, equilibrando yin e yang. Cultivar e equilibrar o , alinhar a postura, manter o corpo forte e flexível, tudo isso contribui para uma sensação de bem-estar e estabilidade existencial.

Embora, ao falar em meditação em uma tradição de origem asiática, a primeira imagem a surgir na imaginação do público não especializado, com certa razão, é de alguém sentado no chão de pernas cruzadas, ao se comparar budismo e taoismo, observamos também que há métodos de meditação que utilizam posturas deitadas, de pé e mesmo em movimento, como a meditação andando budista, ou os exercícios com movimentos suaves desenvolvidos no contexto taoista. Inclusive há métodos para praticantes mais experientes, que visam manter a consciência meditativa durante todas as atividades cotidianas, contrastando cada vez menos a sessão formal de meditação e o viver.

No entanto, para iniciantes, o melhor é ter um momento específico e regular para desenvolver o hábito de estar presente no próprio corpo e completamente atentx à atividade que realiza naquele momento. Isso é particularmente precioso nas sociedades contemporâneas, cujo estilo de vida predominante, com suas intermináveis solicitações externas e distrações, forma pessoas cronicamente inquietas e distraídas. A incapacidade de relaxar, fazer silêncio e manter o foco sem tensão são problemas cada vez mais comuns nas grandes cidades. E uma boa parte das doenças crônicas contemporâneas tem como raiz o estresse. Considerando que o taijiquan (e similares) é uma alternativa não medicamentosa, livre de efeitos colaterais, simples e barata para os males do estresse atual, já dá uma ideia do valor desse verdadeiro patrimônio cultural da humanidade.

Pesquisas científicas nas áreas de saúde tanto revolucionaram a compreensão das relações entre mente e cérebro, quanto demonstraram os benefícios da prática para a saúde. Mais uma vez, refiro-me às contribuições do Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard para detalhar alguns desses aspectos. Em primeiro lugar, é importante mencionar a hipótese da neuroplasticidade: conforme o conhecimento atual das neurociências, sabe-se que novas células cerebrais crescem a vida toda e que nossos hábitos e desafios de vida constantemente remodelam as conexões cerebrais. Algumas pesquisas na área citadas por esses autores, indicam que exercícios psicossomáticos têm um efeito na saúde cerebral e não só nas demais capacidades físicas mencionadas em postagens anteriores, como equilíbrio, força, flexibilidade e coordenação motora, mas também em funções cognitivas como percepção, memória, atenção e no equilíbrio emocional. Particularmente, o taijiquan pode ser um importante recurso para preservar nossas faculdades físicas e mentais enquanto envelhecemos. As pesquisas em neurociência indicam que a prática regular de exercícios que estimulem corretamente o cérebro com novas aprendizagens – como tocar um instrumento musical, falar um novo idioma, fazer taijiquan ou dançar – favorecem o crescimento de novas células cerebrais, novas conexões neurais e a produção de neurotransmissores e neurorreceptores. E consequentemente podem ser uma ótima forma de manter a saúde cerebral por toda a vida. Citando vários estudos sobre os benefícios do taijiquan sobre a função cognitiva, os mesmo autores concluíram o seguinte: “O impacto do taiji sobre a função cognitiva pode ser atribuído, em parte aos seus efeitos sobre o condicionamento físico. […] No entanto, e de particular relevância para o taiji, estudos recentes indicam que os benefícios do exercício para a função cognitiva não se devem unicamente à aptidão cardiovascular, mas também à aptidão motora, que inclui equilíbrio, velocidade, coordenação, agilidade e força”(Wayne, Fuerst, 2016, p. 222). Outro ponto é que o exercício moderado parece ter um efeito maior de proteção contra perdas nas funções cognitivas, inclusive contra Alzheimer, do que exercícios extenuantes. No caso do taiji, uma vantagem adicional é a redução do estresse e a angústia, bem como o aumento da capacidade de lidar com situações potencialmente estressantes. E ainda, o aspecto imaginativo da prática tem um efeito cerebral complementar ao aspecto mais físico, com importantes efeitos sobre o cérebro e sobre o desempenho corporal. Acrescento a isso, que o conhecimento neurofisiológico acerca da meditação permite afirmar que sua prática regular beneficia as funções cognitivas, inclusive alterando a estrutura cerebral, e reduz o estresse.

Por fim, os autores concluem que, além dos aspectos citados acima, os benefícios do taiji decorrem também do fato que a prática coletiva permite aprender novas habilidades, participar de atividades de lazer e estabelecer vínculos sociais, tudo isso contribuindo para prevenir e retardar perdas da função cognitiva devido ao envelhecimento.

A Eficácia dos Treinamentos: 1. uma explicação com base na tradição

Nessa postagem e na próxima, dedico-me à responder a seguinte pergunta: por que milhões de pessoas, durante incontáveis gerações na China e atualmente em vários países no mundo contemporâneo, praticam os treinamentos taoistas? A primeira parte da resposta é: por sua comprovada eficácia no cultivo da vida e da saúde, bem como no desenvolvimento de certas habilidades.


Baduanjing, ou os Oito Panos de Seda, famosa série de exercícios tradicionais para a saúde. Ilustração do século XIX, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor.

Portanto, não se trata de uma questão de crença, mas sim de experiência acumulada, acessível a quem pratica com seriedade. Tampouco se trata apenas de comprovar por experiência própria. Os treinamentos se baseiam num conhecimento sofisticado do corpo, que tem como referência a teoria médica chinesa e a cosmologia taoista.

Dito de uma maneira mais genérica, os diversos treinamentos são maneiras tradicionais para cultivar um equilíbrio dinâmico, no próprio corpo, entre yin e yang que, unidos em harmonia, formam um Taiji ☯. Essa atividade de regulação é a própria ação do Tao, segundo o poema 77 do Daodejing (道德經):

O Caminho do Céu é como o retesar do arco

A parte superior abaixa, a parte inferior sobe

A parte que possui sobra é diminuída

A parte não suficiente é completada

E era nesse sentido que mestre Liu Pailin afirmava que ensinava os treinamentos do Taiji, não apenas do Taijiquan. Ohando para um panorama geral dos treinamentos de nossa linhagem, faço a seguinte lista de benefícios básicos, utilizando de forma livre o vocabulário tradicional chinês:

Outra da série de ilustrações do século XIX do Baduanjing, ou os Oito Panos de Seda. Acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor.
  • Eliminar o turvo, causador de doenças, resultante da invasão de fatores patogênicos externos, mas também acumulado em função da alimentação, de tensões e de emoções excessivas e turbulentas.
  • Captar o de fontes naturais (o sol, a lua, certas constelações, montanhas, cachoeiras, florestas, árvores ancestrais, rochedos, o mar) para suprir o do corpo
  • Flexibilizar tendões e articulações.
  • Remover os bloqueios que impedem a livre circulação de e sangue. E promover uma circulação abundante e suave.
  • Equilibrar os cinco movimentos (五行):metal, água, madeira, fogo, terra.
  • Tonificar a essência (精) e o (氣 ou 炁), regular o shén (神), o que proporciona ao mesmo tempo longevidade e serenidade.
  • Despertar a espiritualidade latente do ser humano.

A alquimia interna taoista possui um aforismo que descreve de forma mais sofisticada e hermética todo o caminho da prática, que vai da condição pós-natal de uma pessoa comum à condição pré-natal de um ser completamente iluminado, como um imortal (仙) da mais alta categoria:

Treinar o jīng (精) para gerar qì (氣 ou 炁); treinar o para gerar shén (神); treinar o shén para entrar na vacuidade; treinar a vacuidade para unir-se ao Tao (道)

Essa descrição sintética e cifrada, no entanto, transcende a prática comum, para a saúde, e refere-se ao cultivo como caminho de vida, uma situação mais rara e que depende de algumas condições especiais: a obtenção de ensinamentos autênticos, a ajuda de um/a professor/a qualificadx, a dedicação cotidiana à prática.

Medicina Chinesa e Treinamentos Taoistas: 3. longevidade e imortalidade

Nessa nova postagem da série, abordaremos o interesse pela longa vida. Desde o seu texto fundante, a medicina chinesa indaga sobre o tema, como é testemunhado no primeiro capítulo do Suwen (素問), no Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huangdineijing 黃帝內經), que mencionamos previamente. Um aspecto compartilhado do conhecimento tradicional da medicina e dos treinamentos taoistas é como manter a harmonia com o Tao, de modo a viver uma vida longa e saudável. Obviamente, além dos fatores constitucionais hereditários, o modo de vida em consonância com os ritmos da natureza é uma estratégia clássica para chegar a esse objetivo. Mas também, como apontamos na postagem passada, a prática regular dos treinamentos para cultivar a vida.

foto do autor, pintura sobre seda, National Palace Museum, Taipei.

 Ao falar em imortalidade, um tema recorrente na religiosidade popular chinesa e na alquimia taoista, à primeira vista, pareceria que se trata de uma imagem que leva às últimas consequências a busca da longevidade associada à compreensão da natureza. Encarna também o ideal de vida de gerações de praticantes que se retiraram para as montanhas e se dedicaram a uma vida contemplativa, como indicado pelo caractere chinês para imortal, xiān (仙), que contém em sua composição o caractere montanha, shān (山). Neste sentido, a imortalidade poderia ser tomada como “metáfora ou epíteto da alma realizada” (Bizerril, 2007, p. 120).  Alguém que se torna imortal não apenas possui uma vida muito mais longa que a de uma pessoa comum, mas também uma série de outros atributos especiais, inclusive poderes extraordinários.

Num sentido mais elevado, um/a imortal é uma pessoa que se aperfeiçoou, desenvolvendo o seu pleno potencial. Além do cultivo do seu , obtiveram uma completa equanimidade, livres de  impaciência, orgulho ou preocupações. Por isso, é dito: “o verdadeiro Tao requer de nós que lidemos com o mundo real, mas o coração não se agita”. Em completa sintonia com os ritmos da natureza e com as circunstâncias, são capazes de agir com compaixão. Tendo aprendido a esquecer-se completamente de si, podem praticar a não-ação (wúwéi 無為), a ação eficaz sem esforço. Podem ser pessoas sábias renomadas ou viver em completo anonimato, beneficiando secretamente o mundo à sua volta.

Dentre as habilidades extraordinárias tradicionalmente atribuídas a imortais devido à sua maestria do Tao, podemos citar: capacidades de cura; poderes de exorcismo; controle das condições climáticas; faculdades divinatórias; comunicação com animais, espirítos e divindades; imunidade aos elementos; controle sobre o próprio corpo; multiplicação e materialização/desmaterialização do corpo; invisibilidade; voo, etc. como belamente descrito em uma sessão da antologia de textos taoistas organizada por Livia Kohn, The Taoist Experience.

foto do autor, detalhe de pintura representando imortais taoistas,  National Palace Museum, Taipei.

O primeiro capítulo do Zhonglüchuandaoji (鍾呂傳道集) texto clássico de alquimia interna taoista, traduzido para o português, que contém conversações entre os imortais Zhongli Quan e Lü Dongbin, afirma que: “Havendo nascimento, haverá morte” (p.38). No entanto,  no contexto de uma concepção de ciclo de mortes e renascimentos, tanto o tipo de renascimento quanto a existência pós-morte podem ser afetadas pelo cultivo, que permite atingir o estado de imortal. Mas o imortal Zhongli diz: “tornar-se imortal não é a meta final do cultivo de si mesmo”(p. 39). E apresenta uma tipologia dos imortais: imortais fantasmas, imortais humanos, imortais espirituais, imortais terrestres e imortais celestes. A forma inferior é @ imortal fantasma, alguém que tentou cultivar o Tao sem a compreensão correta, não são imortais propriamente dit@s, mas fantasmas cuja existência yin continua.  @s imortais human@s também possuem uma compreensão incompleta do Tao, praticando apenas um método inflexivelmente, mas obtiveram boa saúde e vida longa. @s imortais terrestres obtiveram um nível moderado de realização e podem viver no reino humano sem morrer. Já @s imortais espirituais continuaram o seu treinamento no reino terrestre e transformaram seu corpo humano em um corpo sutil. Continuam o seu cultivo e agem em benefício da humanidade até tornarem-se imortais celestes, que residem nos reinos celestiais.

Isso tudo  apenas  dá uma ideia  desse fascinante tema na cosmologia tradicional chinesa. Imortais são personagens que aparecem com frequência na literatura, nas artes visuais, na religiosidade popular e nos clássicos taoistas.

Medicina Chinesa e Treinamentos Taoistas: 2. pré-natal e pós-natal

foto do autor: pintura sobre leque, National Palace Museum, Tapei.

Nessa nova postagem da série, mais uma reflexão na fronteira entre os dois campos. Desta vez, com relação ao uso das concepções chave de pré-natal e pós-natal, utilizadas por ambos. Dito de uma forma simples, o pré-natal remete ao estado embrionário literal e metaforicamente, ao período anterior ao nascimento  no caso de um ser humano, ao momento anterior à manifestação, no caso do universo. Já o pós-natal remete à vida humana ordinária após o nascimento, com seus processos de crescimento, maturação, envelhecimento e morte. E também aos ciclos do mundo natural: dias e noites, fases da lua, estações, o movimento dos astros, etc. No contexto da filosofia do Yìjīng (易經), o Clássico das Mutações, as duas condições podem ser expressas pelos dois diagramas do bāguà (八卦) conforme as figuras abaixo:

Particularmente, no caso da vida humana, há algumas aproximações e diferenças entre a descrição da medicina chinesa em geral e da tradição taoista, nos seguintes termos: o pré-natal corresponde àquilo (essência, qì, etc.) que foi recebido da natureza e de nossa mãe e nosso pai no momento da concepção, enquanto o pós-natal corresponde ao que é adquirido da nossa interação com o mundo, inclusive extraído do ar que respiramos e dos alimentos que ingerimos. O pré-natal representa, portanto, o que é inato, constitucional, hereditário na vida humana.  E então, uma vez perdido,  dificilmente pode ser recuperado. Sendo assim, o ciclo normal da vida humana, conforme descrito na filosofia do Yìjīng por meio do simbolismo do bagua pós-natal e dos 12 hexagramas do calendário, se inicia no estado totalmente yin d@ recém-nascid@, tenr@ e vulnerável, que se transforma gradualmente em pleno yáng, até que, ao chegar a plenitude, começa a declinar, perdendo yáng gradualmente, rumo à doença, à decrepitude e finalmente à morte, também descrita como totalmente yīn. A velocidade com que isso ocorrerá depende das condições e do estilo de vida, além da constituição de cada pessoa.

Contudo, esse processo natural pode ser positivamente afetado pelos treinamentos taoistas, que podem atrasar o relógio da vida, fazendo-a mais longa, de modo a envelhecer com vigor e lucidez. E até mesmo recuperar a essência e o pré-natal. Esse é um dos sentidos do chamado “Caminho do Retorno”. Esse aspecto da restauração da vitalidade e da preservação da saúde correspondem ao chamado treino ou cultivo da vida (mìng gōng 命功), a primeira etapa do caminho taoista. Esse foi um motivo que levou milhões de pessoas, no passado e no presente, a praticarem esses métodos, independente de se identificarem com o taoismo como um caminho de vida. Até aqui estamos no domínio do uso de exercícios preventivos ou terapêuticos como prática medicinal. Em nossa linhagem, mestre Liu Pailin e seu sucessor, mestre Liu Chihming, juntamente com seus discípulos e discípulas, ensinaram milhares de pessoas no Brasil a cuidar da saúde utilizando esse recurso, o treinamento diário de  práticas corporais baseadas num conhecimento tradicional sistemático acerca do .

Para além desse aspecto, o retorno ao pré-natal da tradição taoista é mais profundo: os treinamentos são o meio potencial para uma transformação completa –  ao mesmo tempo corporal, subjetiva e existencial –  que combina a plenitude da potência de movimento da vida a um estado de serenidade e espontaneidade, que permitiria estar em completa sintonia com as circunstâncias, de modo a agir de modo eficaz, mas sem esforço ou identificação pessoal com a ação.  Uma verdadeira arte de viver baseada na fluidez, que só se pode aprender por experiência. A plena realização dessa condição é encarnada na figura d@ imortal ou ser iluminado, que ainda será tema de alguma postagem futura.

Medicina chinesa e treinamentos taoistas: 1. aproximações e diferenças

Os Seis Centros (Liùshénqiào 六神竅), diagrama utilizada pelo mestre Liu Pailin em suas aulas de Daoyin e meditação. 

A postagem dessa semana inaugura uma nova série que discute as relações  entre medicina chinesa e treinamentos taoistas. É sabido que o fundamento filosófico e cosmológico da medicina chinesa pode ser corretamente descrito como taoista: a filosofia yīn/yáng e a teoria dos cinco movimentos são seus pilares. E além disso, conceitos, teorias e outros elementos da medicina tradicional informam tanto treinamentos para longevidade quanto métodos de meditação taoista. No entanto, não é necessário ser taoista para praticar medicina chinesa, nem tampouco praticar o taoismo implica um conhecimento aprofundado de medicina.

Hoje gostaria de responder a pergunta de um aluno de acupuntura: qual a relação entre o sistema de canais, colaterais (jīngluò 經絡) e os pontos de acupuntura (xué 穴) da medicina chinesa, e os centros (qiào 竅), campos de elixir (dāntián 丹田) e círculos/circulações (xuán 旋) dos treinamentos taoistas?

Em primeiro lugar, há certa correspondência entre o trajeto de algumas circulações utilizadas em treinamentos de qìgōng (e meditação) e canais extraordinários, como por exemplo o circuito formato pelo Vaso da Concepção e o Vaso Governador, no treinamento do “Pequeno Universo” ou “Circulação dos Seis Centros” (representados na ilustração acima). Grosso modo, Renmai e Dumai correspondem aos caminhos do Fogo e do Vento da alquimia interna taoista. Contudo, a circulação dos seis centros não segue pela superfície da cabeça, acompanhando os pontos do trajeto do Vaso Governador na linha mediana do crânio, em vez disso conecta vários centros importantes no interior da cabeça, o que poderíamos supor que corresponde a um ramo interno do Dumai.

Comparação semelhante pode ser feita entre os pontos de acupuntura e os centros. Existe uma correspondência entre algumas localizações importantes, mas não são idênticas. Por exemplo, o ponto VC1 ( Huìyīn 會陰), situado no períneo, corresponde ao centro Yīnqiào (陰竅), no entanto, este segundo se situa nos genitais internos. O ponto VG4 (mìngmén 命門) corresponde ao centro dos rins (shènqiào 腎竅), mas enquanto o ponto de acupuntura se situa na coluna vertebral, o centro se situa no interior do corpo, entre os rins e à frente da coluna. Resumindo, em geral os centros utilizados em meditação e qìgōng estão situados mais internamente no corpo, além do alcance do agulhamento, ao contrário dos pontos de acupuntura.

Além disso, há os campos de elixir, que são regiões maiores, que abrangem vários centros e pontos de acupuntura. A transmissão que recebi fala em três:  superior, médio e inferior. Estão situados, respectivamente, na cabeça, no peito e no ventre. Possuem funções e  localizações distintas do Triplo Aquecedor (Sānjiāo 三焦), víscera da medicina chinesa sem correspondência com as estruturas identificadas pela anatomia ocidental, mas que, entre outros aspectos, representa três conjuntos de funções fisiológicas: respiração/circulação, digestão, excreção.

Ou seja, é preciso prudência ao estudar os dois campos de conhecimento tradicional chinês, prestando atenção a aproximações e distinções. Minha recomendação é evitar o realismo ingênuo. Não se trata de descobrir uma verdade objetiva separada de construções simbólicas culturalmente situadas e de experiências corpóreas. Nenhum dos conceitos mencionados aqui refere-se a um objeto físico que pode ser apontado, mas compõem uma tecnologia cultural eficaz que permite prevenir e tratar doenças, promover a saúde e a longevidade, acessar experiências meditativas e desenvolver um certo tipo de consciência corporal.

Isso fica evidente quando constatamos as diferenças de terminologia, descrição e interpretação das várias linhagens taoistas, mas também quando fazemos estudos comparativos do que poderia ser chamado de “psicofisiologia do corpo sutil” conforme elaborada também em outras tradições como o yoga e o tantra, tanto hindu quanto budista, só para citar uns exemplos.

Quem supõe que os centros e campos de elixir descritos pelos taoistas sejam a mesma coisa que os chakras das tradições indianas, descobrirá, com surpresa, que suas formas, cores, localizações, funções e quantidades divergem enormemente. Mais interessante ainda, nem ao menos no interior de uma mesma tradição há esse consenso, exceto quando foi forçado em certas circunstâncias históricas.
A esse respeito, achei particularmente instrutivo o artigo de Christopher Wallis, the real story on the Chakras. Ele demonstra que, até o final do século XIX, não havia ainda um sistema unificado de chakras, mas sim várias versões, dependendo da escola. Foi a preservação e tradução de uma obra indiana para línguas ocidentais que fez o sistema de Sete chakras a concepção oficial e canônica do yoga. E afirma que os chakras tem função prescritiva e não descritiva, são um método ióguico e meditativo para organizar a circulação do prana no corpo de certa maneira, não a descrição de uma realidade a priori.
E por que me refiro a esse assunto em um blog sobre taoismo? Há uma analogia entre os diversos sistemas dentro uma mesma tradição e na comparação entre tradições distintas,  mas não há uma correspondência coerente. Podemos aprender a mesma lição proposta por Wallis a respeito também dos conceitos do taoismo e da medicina chinesa. São métodos para induzir certas experiências, uma linguagem eficaz, resultante da experiência acumulada de incontáveis gerações de praticantes, mas não são fatos objetivos a priori que devam ser debatidos dogmaticamente.

Medicina Tradicional Chinesa: 7. Dietoterapia


Na postagem de hoje da série medicina chinesa, o assunto é  alimentação. Congruente com outras medicinas tradicionais, os alimentos tem tanto uso preventivo e terapêutico, quanto os maus hábitos alimentares podem ser um fator de adoecimento. Podemos portanto selecionar, preparar e saborear a comida, prestando atenção nas recomendações da medicina chinesa. Assim combinamos o prazer de comer à boa saúde e à longevidade. Os princípios são diferentes da nutrologia e da medicina convencional ocidentais, pois não se trata de calorias nem propriamente da composição química dos alimentos, mas sim das qualidades do seu .  No nível mais elementar, o princípio é nutrir-se de alimentos diversificados das cinco cores e cinco sabores, correspondentes aos cinco movimentos (wǔxíng 五行): metal 金, água 水, madeira 木, fogo 火 e terra 土. Os alimentos também são classificados em função de sua natureza yin ou yang, fria, quente, neutra, etc.

Considerando o uso dos cinco sabores, no Huangdineijing (黃帝內經), o capítulo 4 do Suwen (素問) afirma: “A nutrição dos cinco órgãos deriva dos cinco sabores (picante, doce, ácido, amargo e salgado, que podem ser percebidos como gosto da comida), porém quando os cinco gostos são utilizados em excesso, eles lesam os cinco órgãos”. […] E mais adiante, após explicar as consequências da alimentação desequilibrada, conclui: “Por isso, se os cinco sabores forem adaptados a uma condição harmoniosa sem ingestão excessiva, o corpo todo irá receber ampla fonte de nutrição, e os tendões, ossos, energias, sangue e pele, irão se conservar em condição forte e normal. Portanto, aquele que for bom em equilibrar os cinco sabores, poderá gozar de longa vida”. Em níveis mais elaborados, determinados alimentos podem ser recomendados ou evitados, em função da constituição de 1 paciente, ou a prevenção/tratamento de uma patologia específica.

No entanto, o mundo contemporâneo trouxe outras componentes à relação entre alimentação e saúde, devido ao uso maciço de pesticidas na produção agrícola, bem como de hormônios e medicamentos na produção pecuária, que representam riscos à saúde frequentemente subestimados. Isso sem falar dos alimentos processados, repletos de aditivos químicos para evitar que estraguem antes de serem consumidos ou para tornar sua cor, sabor e aparência mais agradáveis. O desafio agora é que, além de combinar harmoniosamente alimentos diversificados, fonte da vida pós-natal, é preciso saber evitar aqueles alimentos que podem nos intoxicar e adoecer.

Medicina Tradicional Chinesa: 4. Moxabustão

Nessa nova postagem da série, falaremos de outro  tratamento clássico da medicina chinesa. A moxa é um método antigo que utiliza a artemísia, às vezes em combinação com outras ervas medicinais, para queimar, defumar e aquecer certas regiões do corpo, agindo sobre os pontos de acupuntura, os canais e os colaterais. Sua prática está registrada desde o século VI a.C. Originalmente o método mais utilizado era moxa direta, os cones de artemísia aplicados diretamente sobre a pele.

img_4121Nas dinastias Jin e Tang, desenvolveu-se a moxa indireta com interposição de um anteparo (de sal, gengibre, alho ou outra substância) entre o cone de artemísia e a pele. E, por fim, durante a dinastia Ming desenvolveu-se a moxa em bastão. Além desses métodos, há outros como a caixa de moxa, para aquecer uma região maior, ou as agulhas aquecidas com moxa. Mais recentemente, desenvolveu-se um bastão de moxa feito de carvão de artemísia que tem a vantagem de não emitir fumaça. Entre os seus efeitos terapêuticos clássicos estão: remover o Frio, o aquecer os canais, estimular a circulação de e sangue, tratar edemas, desintoxicação, bem como o fortalecimento geral do organismo. A moxa também é recomendada no tratamento de alguns tipos de lesões das articulações. 9af9dbd1-842e-4174-9952-c26f452e2fd7-1Para isso, uma aplicação clássica, considerada um verdadeiro tratamento para longevidade, é a aplicação regular de moxa no ponto zusanli (E36).

Medicina Tradicional Chinesa: 2. o estudo dos clássicos

Na postagem de hoje, damos seguimento ao tema da medicina chinesa. O Huangdineijing (黃帝內經), Clássico Interno do Imperador Amarelo, é certamente o mais fundamental dos textos antigos de medicina chinesa. E apesar da utilidade dos inúmeros manuais modernos, mais fáceis de ler, e das pesquisas experimentais recentes, que testemunham o desenvolvimento continuado desses conhecimentos, o clássico não se tornou obsoleto. Continua a ser uma referência para reflexão sobre os princípios profundos dessa tradição médica até os dias de hoje. huangdiNo primeiro capítulo do Suwen (素問), o Imperador Amarelo, uma dos imperadores míticos fundadores da civilização chinesa, que teria iniciado seu reinado no ano 2697 A.C., pergunta ao médico taoista Qibo porque os seres humanos do passado eram capazes de viver mais de cem anos em boas condições de saúde, enquanto os de sua época estavam decrépitos aos cinquenta. Obviamente, estamos diante da referência a uma época mítica quando se vivia em consonância com o Tao. E contrasta com a situação histórica na época em que o texto é escrito, na qual o desconhecimento do Tao levava a vidas curtas e adoecimento. Embora o texto seja antigo,  a lição contida na resposta de Qibo é simples e continua atual: conhecendo e cultivando a harmonia de Yīn e Yáng, é possível ter uma vida longa e saudável. Logo, a saúde começa com os hábitos. Um estilo de vida simples e sem excessos, nem de trabalho, nem nos prazeres. Atento aos ritmos do dia e das estações, para regular as atividades em harmonia com as condições naturais e protegendo-se de fatores climáticos prejudiciais. O cultivo do coração tranquilo diante dos acontecimentos da vida, sem euforia diante dos objetivos atingidos e desejos realizados, nem desespero diante das tragédias e frustrações. Portanto, a saúde resultaria de um saber viver combinado à constituição da pessoa. Os tratamentos se tornariam necessários quando saímos do equilíbrio e perdemos a capacidade de fluir com a vida, seja em função de nossos hábitos, sejam em função de acontecimentos que abalam o cotidiano.

Medicina Tradicional Chinesa: 1. A busca do Equilíbrio

  • Esse mês, inicia-se uma nova série de postagens, dedicada à prática da medicina tradicional chinesa. Esses são alguns de seus pressupostos fundamentais:
  • A relação de continuidade permanente entre o corpo humano e os fenômenos naturais: logo, o corpo não é um objeto discreto separado da natureza, mas é influenciado por todos os seus ciclos e processos;
  • A concepção de saúde como equilíbrio de yīn e yáng e equilíbrio entre os cinco movimentos (madeira, fogo, terra, metal e água), a mesma teoria que explica todos os fenômenos naturais se aplica também à saúde humana;
  • O tratamento, como restabelecimento do equilíbrio rompido, baseia-se em métodos que estimulam a própria capacidade autorregulatória do corpo: remove bloqueios que perturbam a livre circulação de e de sangue, supre o que está deficiente e dispersa o que está em excesso.
  • Baseados nesses pressupostos, os métodos empregados se apoiam numa profunda confiança na natureza e no potencial para saúde, desde que se adote um modo de vida favorável ao cultivo da saúde, em vez de meramente combater a doença quando já se instalou.
  • Modo de vida taoista: 4. Medicina tradicional chinesa

    Outro aspecto integrante do modo de vida taoista é a medicina tradicional chinesa. Ao longo da história do taoismo, o estudo e a prática da MTC foram importantes aspectos dessa tradição, como forma de praticar uma atividade compassiva e como parte do cultivo da vida. O estudo da massagem, acupuntura, moxabustão, ventosaterapia, fitoterapia, dietoterapia e outros saberes da medicina tradicional faz parte do currículo de muitas linhagens taoistas. Mesmo para quem não deseja exercer a MTC, seus conhecimentos se integram à vida cotidiana, em primeiro lugar como medicina preventiva, que visa manter o equilíbrio entre os cinco movimentos (metal 金, água 水, madeira 木, fogo 火 e terra 地), preservando a saúde integral e proporcionando vida longa com qualidade. Há recomendações sobre estilo de vida, de modo a desfrutar da alegria de viver ao mesmo tempo em que nos mantemos saudáveis. Um exemplo é a aplicação do conhecimento da grande circulação dos 12 ramos terrestres (地支), que rege os 12 meridianos ordinários do corpo humano para selecionar os horários das atividades do dia, mas também ao longo das estações do ano e fases da lua: treinamentos, refeições, trabalho, descanso, tratamentos, etc. Cada período de duas horas do dia é regido por um dos ramos terrestres, que correspondem a um dos zangfu e seu meridiano correspondente. A cada um dos doze horários de duas horas de duração, a circulação de qì estará no seu apogeu no canal correspondente. Assim por exemplo, no horário da madeira (23:00-3:00) o ideal é dormir para recuperar o qì da Vesícula e do Fígado. No horário mais quente do dia (11:00-13:00), pertencente ao coração, o ideal é treinar a serenidade, alimentar-se ou repousar. Aliás, o modo de vida como um aspecto da saúde está em consonância com o conhecimento médico moderno: muitas doenças crônicas resultam de hábitos e condições cotidianas e não apenas de propensões hereditárias.

    copa das árvores
    próximo à mata galeria do parque Olhos d’água, foto do autor.

    Além disso, para o pensamento clássico chinês, o corpo e a natureza não estão separados: possuem uma relação de correspondência. Por outro lado, há uma relação de determinação recíproca entre o qì dos órgãos e vísceras e as emoções.  Ou seja, o equilíbrio emocional é ao mesmo tempo um fator de promoção de saúde e um indicador de uma condição saudável. Quando entramos em desequilíbrio diante de situações de vida, o repertório da MTC está disponível para restaurar o equilíbrio temporariamente rompido.