Retorno à Primavera com uma semana de aulas abertas gratuitas

A primavera chegou, trazendo o impulso de renovação do elemento Madeira. Começamos um novo ciclo, aproveitando o movimento do Qì na natureza. E para comemorar, na semana de 4 a 8 de outubro, teremos aulas abertas gratuitas em todas as nossas turmas regulares. Veja o calendário acima e inscreva-se nas aulas de seu interesse na página de aulas no nosso site!

Para as aulas online, enviaremos às pessoas inscritas um link para o encontro virtual no Zoom.

Para as aulas presenciais, estaremos ao ar livre, no Espaço Mandala do Parque Olhos d’Água, mas seguiremos todas as medidas de segurança habituais: uso obrigatório de máscara e distanciamento social. Traga sua própria garrafa de água e frasco de álcool 70. Por favor, faça sua inscrição para estabelecermos um canal de comunicação eficaz, em caso de algum imprevisto, como chuva.

Meditação Taoista: 04. relaxamento e perseverança

Relaxar é uma capacidade natural (e necessária) do nosso organismo, tanto do ponto de vista da filosofia taoista quanto dos conhecimentos modernos das ciências biológicas sobre o corpo humano. Contudo, em nossos tempos de estresse contínuo, excesso de estímulos sensoriais e inúmeras demandas a atender na vida pessoal e profissional, muitas pessoas estão se tornando incapazes de vivenciar um estado de relaxamento. Em casos mais graves, não conseguem nem mesmo dormir. Há também quem se sinta uma fadiga constante mesmo quando descansa. Mas o mais comum talvez seja uma situação mais moderada: estar constantemente em estado de certa tensão e inquietude, que nos impede não apenas de descansar, mas também de aproveitar plenamente momentos de alegria e prazer. A meditação pode ser um caminho para nos reconectar com nossa habilidade natural de relaxar.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Além disso, muitxs de nós, para relaxar e aliviar as tensões, recorremos a distrações contínuas e outras formas de não estar consciente do momento presente, para esquecer temporariamente das tensões e problemas, os sofrimentos passados e as angústias sobre o futuro. Certamente, uma parte disso se deve a condições sociais que são estruturais do nosso tempo, e que demandam soluções coletivas. Por outro lado, nesse contexto, a distração, como fuga do presente, se torna um hábito profundamente arraigado, de tal modo que estar presente, em contato com o que acontece aqui e agora, torna-se algo difícil até de se imaginar. Quando se fala em “presença”, demoramos a entender do que se trata, pois nos acostumamos a estar todo tempo ocupadxs com nossas memórias e expectativas. Aqui também, a meditação oferece uma oportunidade para reaprender a arte de estar totalmente presente, por meio de métodos simples.

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O psicólogo Mihály Csíkszentmihályi, foto do seu perfil na Claremont Graduate Univesity,

Talvez alguns/mas de nós tenham lembrança de momentos em que estavam totalmente absorvidas em uma atividade: uma brincadeira, um esporte, tocar um instrumento, pintar, dançar, etc. Quem sabe vivenciamos um estado de fluxo, conforme a definição do psicólogo Mihály Csíkszentmihályi: um estado de fusão entre a consciência e a atividade realizada, com um foco completo no momento presente e uma prazerosa sensação de realizar a atividade de forma bem sucedida sem esforço.

Num nível mais avançado, meditar é encontrar repetidamente essa experiência de fluxo na sessão formal de meditação. Mas também é acostumar-se a essa maneira de existir e poder vivenciar isso com frequência crescente na vida cotidiana, cuidando das tarefas diárias e no contato com outras pessoas e demais seres vivos.

Praticando com constância, mas respeitando nossos limites, estar presente e relaxado se torna um hábito. Para isso, praticamos com muita gentileza:

1) encontre uma postura confortável e alinhada, que nos permita ficar algum tempo relativamente imóvel. Mas não é a imobilidade forçada de transformar nosso corpo numa estátua: o corpo respira e faz micro-ajustes no alinhamento, os músculos tensos relaxam, liberando a tensão desnecessária.

2) permaneça na sessão apenas enquanto a mente está relaxada/relaxando. Não lutamos contra o diálogo interior, nem tentamos prolongar à força os momentos de quietude e silêncio. Aqui vários métodos para focar a mente podem nos ajudar a relaxar.

Nos dois casos, é mais sábio fazer sessões curtas e pausas durante as sessões, praticando com muita gentileza, para cultivar relaxamento e presença, em vez de fazer da prática de meditação mais uma fonte de estresse. Com paciência, gradualmente, meditar fica fácil e os benefícios ficam óbvios.

Meditação Taoista: 03. Afinal, para que meditar?

Na postagem de hoje, a ideia é oferecer ao público interessado uma explicação simples, sem tecnicalidades, sobre o que é meditação taoista e para que praticá-la. Um ponto de partida simples é entender que a meditação é um método. Mas um método para que?

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Vamos à resposta mais direta: no nível mais profundo, a meditação taoista é um método para cultivar o que os antigos chineses chamaram de Caminho Natural, que é uma tradução razoável para o termo Tao. Em vez de usar termos filosoficamente complicados, digamos que, na prática, a meditação é um método que desenvolve gradualmente em nós a capacidade de passar cada vez mais tempo em um estado que combina relaxamento, serenidade, sensibilidade ao ambiente à nossa volta, e prontidão para agir em conformidade com o que a situação demanda em um momento específico. Ou seja, não meditamos para sermos pessoas melhores, nem obter algo. Nem se trata de ficar passivo/a, insensível ou indiferente. Em vez disso, meditamos para aprender a reduzir toda tensão, força e identidade desnecessárias, permitindo que as qualidades de nossa natureza essencial se manifestem. Quando nos acostumamos a permanecer em um estado de relaxamento alerta, menos identificados/as com uma identidade sólida associada a desejos e metas, viver fica mais simples. Então, a tradição taoista confia no potencial para bem viver, presente em todos/as nós, que se revela quando nosso está equilibrado e a tensão se dissolve.

Os métodos taoistas se dividem em treinos de movimento e treinos de serenidade. A meditação silenciosa na postura sentada é o treino de serenidade por excelência. Nela, trabalhamos ao mesmo tempo a serenidade e a vitalidade, como expliquei na primeira postagem dessa série. A primeira etapa na prática desse tipo de meditação é o restabelecimento de nossa vitalidade e do equilíbrio de nosso organismo, descrito pelos antigos chineses em termos de Yin e Yang e dos chamados cinco “elementos” (metal, água, madeira, fogo e terra), que correspondem aos órgãos, tecidos e funcionamento de nosso corpo, como tenho explicado desde a primeira postagem sobre medicina tradicional chinesa. Como na concepção chinesa não há uma separação entre corpo e mente, o equilíbrio de nosso organismo está diretamente ligado ao equilíbrio emocional. Assim, quando nossas energias estão equilibradas, é mais fácil meditar. E ao mesmo tempo, na medida que praticamos meditação, aumenta nossa capacidade de autorregulação, o que permite lidar com situações que antes nos deixariam doentes, exaustas/os ou agitadas/os.

O que a meditação oferece é um momento com condições ideias para cultivar a serenidade e “recarregar nossas baterias“. Paramos temporariamente nossas atividades cotidianas, largamos os projetos e preocupações, sentamos em um local silencioso e que inspire tranquilidade. E nessas condições praticamos algumas técnicas para favorecer o relaxamento, a lucidez e a vitalidade. Mas com o tempo de prática regular, os estados de serenidade, relaxamento e vigor que vivenciamos durante a sessão formal de meditação podem ser vivenciados no cotidiano quando não estamos meditando. Algo em nós mudou sem que tenhamos deliberadamente tentado mudar ou aperfeiçoar nada.

Pintura em nanquim, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

Assim como a água que brota de uma nascente e se torna disponível para nutrir a vida dos seres vivos que ali habitam, ou o sol que nasce a cada dia iluminando e aquecendo a terra, espontaneamente se manifesta um potencial para ação eficaz que é benéfico para nós mesmos/as e para quem está à nossa volta. Quando estamos revigorados/as e relaxados/as fica mais fácil estar disponível para os/as outros/as do que quando estamos tensos/as, ensimesmados/as, focados/as em nossas dores e dificuldades. E como explicou o mestre Pailin, esse é o sentido de ter uma vida longa e saudável: poder expressar nosso potencial para benefício coletivo, compartilhando e apoiando o desenvolvimento dos/as outros/as.

Caso deseje aprender a praticar, em março de 2020 teremos um curso de introdução em Brasília.

Meditação Taoista: 02. a postura de meditação

A postagem de hoje dá seguimento à série sobre meditação. Dessa vez, o foco é no aspecto prático, mas sem perder de vista os fundamentos. A consciência da postura durante a prática formal de meditação é um aspecto que precisa ser considerado na suas devidas proporções; não é toda a prática, nem é algo que deveria ser negligenciado. Saber que postura assumir é uma parte importante do conhecimento prático sobre como meditar.

Se a meditação é uma prática do Tao, então a naturalidade é algo que precisa ser cultivado nela. Por isso, aqui o princípio de base é “não forçar”. Persistindo com paciência, há um desenvolvimento gradual. Ao forçar em busca de resultados, há o risco que ficarmos exaustos/as, frustrados/as e, assim, desistir.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Cada tradição meditativa tem suas próprias convenções, recomendações e atitudes sobre a postura de meditação. Foi o que aprendi estudando as instruções de escolas diferentes. No caso do taoismo, a meditação pode ser praticada em várias posturas imóveis, sejam de pé, sentado ou deitado. E mesmo em movimento, como é o caso quando praticamos Qigong ou Taijiquan de forma particularmente lenta, serena e focada, com atenção ao menor gesto. Quanto à postura sentada, podemos imaginar erroneamente que a meditação só ocorre se formos capazes de manter uma perfeita postura de lótus. E isso pode chegar mesmo a se tornar uma obsessão que nos desvia do objetivo de meditar. Mas a postura não é algo que assumimos para impressionar outras pessoas, nem é uma proeza, ou uma meta. Em vez disso, é um dos pontos de partida para nossa prática, pois a meditação também é uma prática corporal. O corpo em equilíbrio, livre de tensão, desconforto e doença, medita com mais facilidade.

O alinhamento, a estabilidade e o relaxamento de nossa postura ajudam a permanecer um tempo quietos/as, sem tensão. Então, a postura deve estar de acordo com os limites e possibilidades de nosso corpo, em função da nossa flexibilidade, disposição vital, faixa etária, etc. Devemos ser capazes de relaxar nela, sem adormecer e sem perder o alinhamento postural. E para isso, não é necessário atingir uma postura de lótus perfeita, embora essa seja considerada por muitas pessoas uma postura excelente para meditação. Pois ela é útil para a prática desde que o/a praticante seja capaz de permanecer nela confortavelmente. Se não é o caso, podemos meditar em meio lótus, ou simplesmente de pernas cruzadas, mas também sentando em uma cadeira, sem reclinar o corpo e encurvar a coluna. Como aqui o foco não está no controle, na força de vontade ou na resistência a estímulos desagradáveis, é importante que a postura de meditação seja suficientemente confortável para permitir que prestemos atenção no treinamento que vamos praticar, e não nas dores e tensões no corpo e na mente que surgem do desafio de manter uma postura forçada.

Com essa orientação, a meditação passa a ser um momento de descanso, de “recarregar as baterias”, e não de luta para alcançar algo. Meditando durante um lapso de tempo em que a postura está confortável, podemos estender gradualmente as sessões, até sermos capazes de permanecer um longo tempo praticando.

Esse e outros aspectos serão abordados em mais detalhes em um curso que será dado pela primeira vez em março de 2020.

Meditação Taoista: 01. dificuldades básicas

Meditação começou a se tornar um tema popular em contextos globais já faz algumas décadas, talvez pelo menos desde os anos 60 do século XX, objeto de estudo de eruditos acadêmicos, de curiosidade em circuitos contraculturais, mesmo um bem simbólico rentável no mercado espiritual new age e, mais recentemente, um método terapêutico reconhecido por setores da ciência médica e psicológica convencional (como é o caso do sistema mindfulness, originalmente desenvolvido por neurocientistas a partir das técnicas budistas clássicas de meditação Shamata). Várias tradições asiáticas praticam métodos contemplativos há milênios e os circuitos contemporâneos de comunicação intercultural global permitiram a sua difusão para outros contextos culturais. Além disso, há toda sorte de novas sínteses e experimentações e literalmente milhares de professores e professoras de meditação, nem sempre devidamente treinadxs e suficientemente experientes para ensinar, pelos critérios tradicionais. Em nossos tempos de excesso de individualismo, a meditação tem inclusive sido erroneamente incorporada ao arsenal de tecnologias de empoderamento individual, em consonância com o que foi chamado de “materialismo espiritual” pelo controverso mestre budista tibetano Chogyam Trungpa.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Aqui, o assunto é a meditação taoista em um contexto por assim dizer mais fiel à sua origem: o cultivo simultâneo da vida e do espírito. Quando falamos de meditação taoista, é importante lembrar que há vários métodos, a depender da linhagem. No caso do taoismo no Brasil, e referindo-me ao legado do mestre Pailin, o que ensinou a seus discípulos e discípulas, foi principalmente técnicas de meditação silenciosa que combinam o cultivo da serenidade, do Vazio e a circulação do por certos centros e trajetos (como o Pequeno Universo, a Via Láctea e os Oito Vasos Maravilhosos).

Mestre Liu recomendava a meditação “Sentar na Calma” como parte do treinamento para quem buscava a saúde e a longevidade, mas também para desenvolver sua espiritualidade latente, entendendo isso sem nenhum teor religioso. E explicava os fundamentos filosóficos da prática, citando clássicos taoistas como o Daodejing e o Yijing.

Falando do ponto de vista do iniciante, é preciso um entendimento intelectual correto do que é a prática e para que praticar. É preciso também obter instruções confiáveis para não perder tempo e não arriscar a saúde e a sanidade.

Detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor setembro de 2018.

Do ponto de vista do entendimento intelectual, dos vários conceitos presentes nos textos filosóficos e manuais taoistas, talvez um dos que gere mais confusão, não apenas para iniciantes, é o Vazio. Por um lado, essa palavra tem nas línguas ocidentais uma conotação negativa, até niilista. Ao falarmos em Vazio, quem não está familiarizado com a terminologia taoista e budista pode imaginar, erroneamente, negação, ausência, falta, nada. E consequentemente sentir angústia. Então é preciso primeiro entender que o Vazio, ou vacuidade, aqui se refere metaforicamente ao espaço aberto da potencialidade, onde tudo acontece e se manifesta. É como o silêncio antes e entre os sons, a quietude antes e entre os movimentos, o espaço entre os objetos e fenômenos. E não uma ausência dolorosa ou negação da vida. Em vez disso, é uma aspecto necessário da vida. A própria vida é uma alternância contínua entre quietude e movimento, como está expresso graficamente no símbolo do Taiji ☯. Embora a vacuidade seja uma experiência que não é totalmente descritível, é importante um entendimento inicial na direção correta.

Detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor setembro de 2018.

Do contrário, surgem dificuldades para por em prática instruções sobre cultivar o Vazio na meditação. Com a postura corporal, o método e a atitude mental corretas, surgem espontaneamente momentos de grande quietude na meditação, uma lucidez relaxada e silenciosa. A atividade mental agitada e incessante que os chineses chamaram de “macaco dos pensamentos” se detém espontaneamente. Esse é um momento para cultivar o Vazio. Não se trata de ficar pensando a respeito do vazio, para entendê-lo intelectualmente. Nem de passar um tempo imaginando como seria esse vazio. Muito menos de imaginar as coisas como vazias. Outro erro comum é imaginar que meditar depende de impedir pela força o fluxo da consciência, para chegar a um estado artificial totalmente livre de pensamentos. Isso não só é exaustivo e improdutivo, mas é também um erro tem efeitos colaterais nocivos. O capítulo 3 do Zuò Wàng Lùn (Tratado sobre Sentar e Esquecer), afirma que, ao proceder assim, cortando bruscamente toda atividade mental durante a meditação, a pessoa desenvolve uma dificuldade crescente de raciocinar e pensar, que não é o objetivo da meditação.

Para concluir, se a meditação é um método para atingir o estado natural, é possível começar a entender o que é meditação taoista por eliminação: não visa estados extraordinários, mas sim revelar algo que já está presente em nosso ser quando relaxamos; não é fugir da realidade, “viajar” ou adormecer, mas estar alerta e consciente; mas isso não se faz por uma concentração forçada, e sim por um foco relaxado que permite repousar a consciência.

Em março de 2020 está agendado um curso de meditação taoista em Brasília .

Compreender o Tao: 5. Intelecto x experiência

Embora o taoismo tenha vários textos clássicos, há algo de errado com a ideia de que é uma filosofia, no sentido acadêmico ocidental do termo. Isso fica evidente já no primeiro capítulo do maior texto clássico taoista, o Dàodéjīng: o grande Tao não pode ser nomeado. Ou seja, está além da capacidade humana de conceituar, definir em palavras. Logo, está além do intelecto. Compreender o Tao não é uma tarefa intelectual. Por isso, no Dàodéjīng também se diz que o caminho do estudo é aumentar a cada dia, mas o caminho do Tao é diminuir a cada dia, até chegar à não ação (wúwéi)

Mas também não é algo em que se deva acreditar. Compreender o Tao não é sobre “fé”. O Caminho Natural, é simplesmente como as coisas são, o funcionamento da natureza. Existe uma maneira de compreender por meio do sentir, da experiência direta sem palavras.

Assim, os mestres e mestras do Tao apontaram o caminho, indiretamente, por meio das artes (poesia, música, caligrafia, pintura, artes marciais) e diretamente, ensinando métodos de cultivo do e de meditação. A ideia aqui é que é mais fácil apreciar o Tao quando estamos em sintonia com os ritmos da natureza. E quando os cinco movimentos, ou elementos, presentes no nosso corpo estão em equilíbrio, quando nossa capacidade de autorregulação está no seu pleno potencial, é mais fácil estar em harmonia com a natureza.

Naturalmente o coração está mais sereno, a vida fica mais simples sem desejos desnecessários e emoções tempestuosas. E com o coração regulado, é mais fácil repousar no silêncio e na quietude. Nesse estado, o Tao é fácil de compreender, por experiência pessoal, com a sensibilidade, não com o intelecto.

Na prática, como se faz isso? Treinando diariamente os métodos para o cultivo da vida e para a serenidade, como explicado por um professor ou uma professora devidamente qualificado/a. É a prática que nos leva a descobertas pessoais a transformações palpáveis.

O Tao como vida em relação

“Tao é Taichi, e Taichi é harmonia de yin e yang”. Essa afirmação tradicional tem uma consequência no entendimento do caminho taoista como a unidade de uma compreensão sobre a vida e de uma arte de viver. A vida é percebida como um jogo dinâmico de aspectos complementares, opostos, alternados, sempre organizados em relações. E o bem viver seria um exercício de sensibilidade e ajuste às condições e relações do momento, visando o equilíbrio, a fluidez e a ação eficaz com o mínimo de desgaste. Compreendendo corretamente o funcionamento da natureza, ou do Céu e da Terra, e desenvolvendo pela prática uma sintonia com esse funcionamento, a vida fica mais simples. Assim, “filosofia” e “treinamento” taoista não são coisas separadas, mas os dois lados do caminho. Em uma época de tantas experiências de solidão, isolamento e excessivo individualismo, talvez os antigos sábios chineses tenham algo a nos ensinar…

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Certamente, há todo uma dimensão social nessas experiências, uma desagregação do espaço público, o desmantelamento de políticas de bem estar e seguridade social, associados a uma desregulamentação que favorece o mercado e prejudica as vidas das pessoas comuns, a ausência de projetos para o bem comum, tudo isso associado a uma excessiva individualização nos ambientes urbanos globalizados. Então, a solidão está associada uma instabilidade nas condições sociais, a um enfraquecimento da profundidade e diversidade de vínculos significativos e, ao mesmo tempo, a um aumento da importância individual e da necessidade de visibilidade e popularidade.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

No entanto, se voltamos à concepção taoista sobre a vida, nunca estamos de fato separados/as do mundo nem das demais pessoas. Estudando a filosofia taoista e a medicina tradicional chinesa, podemos nos dar conta disso em um nível intelectual. Praticando meditação e qigong podemos nos dar conta disso pela experiência vivida, de conexão com o mundo à nossa volta e seus habitantes. Um corpo vivo é feito dos mesmos materiais que a natureza. E é sua permeabilidade ao ar, à água, aos alimentos, ao que torna a vida possível. A metáfora ocidental fundadora da identidade pessoal – eu como algo dentro, enquanto o mundo está fora – induz a um erro de percepção, com consequências existenciais. O mundo não está fora de nós, nós sempre estivemos dentro do mundo. E os seres humanos vivem graças às relações: não teríamos chegado à idade adulta sem cuidados, ajuda e aprendizagem oferecida por outras pessoas; a maioria de nós não poderia sequer sobreviver sem o trabalho e os conhecimentos de outras pessoas. Resumindo, assim como não poderemos viver se destruirmos o ambiente natural, a vida também não é possível sem solidariedade e cuidado mútuo. Ou até é possível, mas às custas da nossa sanidade e até mesmo de nossa humanidade.

Certamente direitos e liberdades individuais são um ganho, mas se tornam uma maldição quando não vem acompanhados de responsabilidades coletivas e respeito aos mesmos direitos e liberdades das demais pessoas. A convivência íntima se torna uma tirania e as relações sociais se tornam formas de exploração e opressão.

O que aprendi de meus mestres é que o cuidado de si, o cultivo da vitalidade e da serenidade, a conquista da saúde e da longevidade, o despertar da sabedoria, é parte do processo de aprender a cuidar dos/as outros/as. É porque temos equilíbrio que podemos ser uma presença benéfica. Só tem sentido uma vida longa se com ela podemos beneficiar nossas comunidades e partilhar conhecimentos e experiência acumulada.

Tao: o silêncio entre as palavras

Compreender o Tao é paradoxal. Por isso Laozi disse: “Minha palavra é bastante fácil de compreender/ bastante fácil de praticar/ mas, sob o céu, ninguém consegue compreendê-la/ ninguém consegue praticá-la” (Dàodéjīng, poema 70) . O que os antigos chineses chamaram de Caminho ou Caminho Natural é algo que está sempre presente a cada experiência, simplesmente como as coisas são. Mas está tão perto, é tão simples, que, por isso mesmo, está aquém ou além das palavras. Daí, no contexto taoista, desde a antiguidade aos dias atuais, pessoas sábias utilizaram termos como “indescritível”, “sem nome”, “profundo”, “grande”, “misterioso” ou “maravilha”, na tentativa de apontar a direção, de ensinar-nos a reconhecer do que se trata, por meio de nossa própria experiência.

Imortal voando num dragão, detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.
Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, setembro de 2018.

Não é algo que o intelecto consegue apreender, não é algo que possa ser explicado, mensurado, provado. Mas é algo que pode ser percebido, treinando a sensibilidade. E quando isso acontece, e temos a sorte de contar coma orientação de 1 mestre ou mestra competente, temos uma experiência nítida e livre de dúvida. Lendo as biografias de mestres e imortais do passado, podemos encontrar tanto perfis mais contemplativos, pessoas que se recolheram em montanhas e florestas para cultivar o Tao, quanto pessoas que tiveram uma existência comum, com uma vida simples em família e ganhando seu sustento com uma profissão. Se não temos o desejo de viver reclusos/as nas montanhas, ou a condição para fazê-lo, podemos praticar na vida que vivemos, na cidade. Mais importante dos que as condições externas ideais para praticar – como as que foram buscadas por eremitas, monges e monjas ao longo da história da China – é a capacidade de encontrar o silêncio em nós mesmos/as, pelo menos alguns instantes todos os dias. Uma maneira estruturada para fazer disso um hábito é aprender um método confiável de meditação. Mas se diz que a base para praticar, antes mesmo de aprender qualquer técnica, é regular o coração (Tiáoxīn 調心): isso significa simplificar a vida, reduzindo desejos, necessidades e ambições desnecessárias.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, setembro de 2018.

E de posse dessa simplicidade básica, não só a meditação, mas qigong, artes marciais, pintura, caligrafia, música, medicina, enfim todas as artes tradicionais praticadas por taoistas, podem ser um porta de entrada para o Tao. Todas elas valorizaram o aprendizado prático, o refinamento da sensibilidade, a fluidez do gesto, a atenção combinada ao relaxamento, o ajuste à situação concreta do presente. Na quietude da meditação formal; nos movimentos lentos e circulares do qigong; nos movimentos ágeis e precisos das artes marciais (seja o combate com as mãos livres, ou com armas, como a espada); no pincel que traça paisagens ou palavras entremeadas de espaços vazios; nas notas musicais que ressoam ritmicamente entre silêncios; na acuidade dos métodos diagnósticos e no uso eficaz dos tratamentos (com massagem, agulhas, ventosas, moxabustão). etc. Em todas essas situações está presente o potencial para entrar em contato com as qualidades do estado natural, a união de quietude e movimento contínuo. Mas além de todas as artes tradicionais, com sua beleza, cada atividade trivial do cotidiano também é uma preciosa oportunidade para perceber o estado natural, desde que estejamos vivos/as, relaxados/as e atentos/as.

O Tao e a exaustão contemporânea

Na postagem de hoje, damos continuidade ao diálogo entre a tradição taoista e o mundo contemporâneo. Já há algumas décadas o estresse e as doenças dele decorrentes foram consideradas um dos grandes problemas mundiais de saúde pública nas grandes cidades. Mais recentemente, a Organização Mundial da Saúde lançou um alerta sobre os danos causados pelo estresse no ambiente de trabalho. Não é que a tensão e a exaustão fossem desconhecidas de nossos ancestrais. Em sua análise sobre a origem das doenças, o excesso de trabalho foi considerado pela medicina tradicional chinesa como um fator de adoecimento, por desgastar os recursos do organismo, esgotando precocemente o e o jīng. Quem deseja viver muito deveria buscar um equilíbrio entre atividade e repouso, não simplesmente entre trabalho e lazer. Essa advertência é uma aplicação elementar da filosofia yīn-yáng ao manejo da saúde e o cultivo da vida. Para que haja equilíbrio, onde há movimento precisa haver também quietude, em uma saudável alternância, um tàijí ☯.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016

No entanto, em nossos tempos de aceleração constante, de movimento desenfreado, essa questão se tornou mais aparente e urgente. Hoje em dia, são muitos os apelos para a corrida desenfreada: incontáveis estímulos, tarefas, conexões, informações, atividades, desejos de consumo, imperativos da sobrevivência. Agitadxs e nervosxs, acabamos ficando exaustxs, por excesso de trabalho, mas também na tentativa de aliviar a tensão, nos momentos de lazer. Relaxar, uma resposta natural do organismo, que pode ocorrer periodicamente a qualquer momento, tornou-se um luxo, algo que necessita de todo um aparato técnico para ser obtida por alguns instantes. Uma civilização do excesso. Mas onde queremos chegar, correndo assim? Adoecemos e envelhecemos precocemente, antes de poder desfrutar dos resultados de nossos esforços. Como já dizia, repetidas vezes, o mestre Pailin: “pessoas de meia idade, andem devagar” (a caminho do cemitério)!

A população urbana tem desaprendido o valor do silêncio, do repouso, da contemplação. A vida contemporânea é pautada por um verdadeiro horror à quietude, ao espaço vazio, à pausa. E não é simplesmente insensatez individual, mas uma insanidade coletiva, sistêmica. É um imperativo dessa entidade metafísica insaciável, o Mercado: trabalhe, produza, enriqueça, lucre. Mas é também um hábito profundamente entranhado em nossos corpos. Mesmo quando deixamos o ambiente de trabalho, seguimos em uma atividade incessante, nem que seja entreter-se na tela de um dispositivo eletrônico. E assim avançamos, dia a dia, à beira do colapso. Não são apenas trabalhadores e trabalhadores exploradxs que vivem assim, mas também seus patrões. De fato, é preciso estar numa posição muito privilegiada no mundo profissional para poder recusar trabalho, estabelecer limites, desfrutar de horas suficientes de descanso e lazer. Não é uma questão apenas de discernimento individual e sabedoria, mas de condições sociais objetivas.

O filósofo Byung-Chul Han (1959-)

O filósofo Byung-Chul Han descreve a situação atual em seu livro “Sociedade do Cansaço“. Vivemos em uma sociedade do desempenho, formada por “empresários de si mesmos”(p.23), individualmente responsáveis por seu próprio sucesso ou fracasso, que naufragam na depressão quando não conseguem cumprir a obrigação de ter sucesso. Essa exigência constante de sucesso, visibilidade, produtividade é que nos leva à exaustão. O excesso exaustivo de desempenho tornou-se sinônimo de investir na própria carreira e até na própria vida, uma forma de autoexploração. Daí a epidemia de depressão, como “cansaço de fazer e de poder”(p.29), numa sociedade em que é preciso poder tudo. O excesso não está somente no trabalho, mas também nos estímulos, informações e desejos. Daí, uma atenção dispersa, incapaz de contemplar, que se entendia com facilidade e odeia o tédio. Han faz um elogio à contemplação profunda e ao lento, que embora não se refira às práticas taoistas e sua arte da existência, bem que podem nos servir aqui: “Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. […] No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas” (p. 36).

Detalhe de pintura da exposição temporária “imortais”, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Séculos antes da crise civilizatória atual, a tradição taoista já havia descoberto o valor da contemplação, cultivada na imobilidade do corpo por meio da meditação, e nos movimentos suaves e lentos das técnicas que hoje chamamos de qìgōng e tàijíquán, mas cujos princípios são muito mais antigos que esses nomes modernos. Silêncio e quietude, não como conceitos abstratos, mas como experiências saboreadas com o corpo. A serenidade não só como aspecto de um caminho contemplativo, se preferirem espiritual, mas como parte integrante do cultivo da vida, da boa saúde, aqui compreendida como equilíbrio dinâmico, não como justificativa para a obsessão pela boa forma.

Conviver com (ou sobreviver a) períodos de limitação

Embora a vida seja movimento, esse movimento não é uniforme. Há períodos de expansão e fluidez, outros de retração e impedimentos, não importa o quanto tenhamos sabedoria e boa sorte. No entanto, o nível da dificuldade e do sofrimento dos tempos de limitação e infortúnio depende não só de circunstâncias alheias à nossa vontade – sejam elas naturais ou históricas -, mas também de nossos recursos subjetivos, existenciais, para lidar com elas. Para além da invenção individual, a arte taoista da existência pode trazer algum alento nessas situações.

Cachoeira Qiedong, arredores de Taipei, foto do autor, 2018.

No poema 78 do Daodejing (道德經), Laozi diz: “Sob o Céu/ Nada é mais suave e brando que a água/No entanto, para atacar o que é rígido e duro/ Nada pode se adiantar a ela/Nada pode substituí-la”. E a estrofe seguinte: “Assim/ A suavidade vence a força/ O brando vence o duro”. Essa metáfora do mundo natural, da água que escava a rocha sólida ou a contorna para seguir seu próprio curso, é um belo exemplo de sabedoria taoista para lidar com situações desafiantes: fluidez e adaptabilidade, em vez de rigidez e obstinação. Permanecer internamente fiel a si, mas sensível à situação, fazendo apenas o que é possível e necessário, até que o problema seja superado, às vezes de forma inesperada, pelo próprio curso da vida.

O sol refletido num córrego oculto na mata galeria, serra dos Pireneus, foto do autor, 2016.

Uma outra imagem inspiradora da água como metáfora do viver em situações adversas é o hexagrama Restrição ䷻, do Yijing (易經): abaixo o lago ☱, acima a água ☵, que se refere a um período de limitação inevitável. A água corrente se detém diante de um obstáculo, no caso uma depressão. E só pode voltar a correr depois de preencher totalmente esse espaço, até transbordar. Pacientemente, acumula forças até o momento propício para a superação. Tantas vezes não é possível avançar da maneira que pretendíamos e na velocidade que gostaríamos, mas é possível adaptarmo-nos às circunstâncias e seguir caminho. O desafio é manter as águas transparentes, límpidas, sem estagnar por frustração e impaciência. A marca de uma subjetividade saudável é a capacidade de seguir em frente, gerando novos sentidos, encontrando alternativas.

Quando o dilema é pessoal, a solução pode ser pessoal; mas quando o dilema é coletivo, em tempos como o nosso, de caos e crise social, a solução só pode estar no movimento solidário, para além de alternativas estritamente biográficas.