Cultivemos a quietude, antes que a vida nos obrigue a parar

Quando a filosofia taoista é apenas um assunto intelectual, interessa apenas a especialistas eruditos. Mas para quem pratica o Caminho, os princípios do Tao nos auxiliam a contemplar com mais sabedoria as experiências cotidianas, mesmo as mais banais. O seu valor está no domínio prático, como parte da nossa bússola existencial, não como um conhecimento exótico.

As sociedades contemporâneas se caracterizam por um verdadeiro excesso de movimento, estímulo sensorial e exigências de desempenho (na vida profissional, pessoal e até nos momentos de lazer). Habitantes das grandes cidades, aprendemos a temer o silêncio, a sentir angústia e tédio diante da quietude. Ficar paradx e em silêncio parece quase uma terrível punição.

No entanto, onde há movimento, precisa também haver quietude. É uma questão de equilíbrio. Mestre Pailin afirmou: “Tao é Taiji, e Taiji é yin e yang em harmonia”. Movendo sem descanso, nos desgastamos e acabamos encontrando infortúnios, como doenças e acidentes, que são apenas o resultado de nossa própria agitação e exaustão. Se não nos movemos o suficiente, estagnamos e enrijecemos. No entanto, nas sociedades contemporâneas, é mais frequente exagerar no movimento que na quietude: mesmo as pessoas mais sedentárias são levadas por um excesso de agitação. A solução está no meio termo: para viver bem, com saúde e sanidade, é preciso uma boa combinação de movimento e quietude. Uma lição simples, mas difícil de aprender.

A história do mestre Louva-a-deus em o Segredo dos Cinco Furiosos, captura de imagem ilustrativa 1, do autor.

Para alguns e algumas de nós, o universo parece se mover lento demais para nosso ritmo, como o mestre Louva-a-deus, personagem do universo Kungfu Panda em “O segredo dos Cinco Furiosos” (2008). Pessoalmente, conheço bem essa sensação. Foram anos de meditação para reduzi-la a um nível moderado.

A história do mestre Louva-a-deus em o Segredo dos Cinco Furiosos, captura de imagem ilustrativa 2, do autor.

Aceleradxs e desatentxs, ultraconfiantes, seguimos apressadamente em direção a desastres evitáveis. E nos surpreendemos quando acontecem. Não escutamos as advertências da vida e deixamos de tomar as precauções necessárias, simples.

A história do mestre Louva-a-deus em o Segredo dos Cinco Furiosos, captura de imagem ilustrativa 3, do autor.

Quando a vida nos obriga a parar, (no meu caso foi um acidente com fratura), tentamos resistir. Persistimos por um tempo nos maus hábitos que causaram o infortúnio. Mas finalmente nos aquietamos, a contragosto. Com sorte, brota alguma aceitação das circunstâncias. Quem sabe até desaceleramos?

A história do mestre Louva-a-deus em o Segredo dos Cinco Furiosos, captura de imagem ilustrativa 4, do autor.

Essas situações de restrição de movimentos, literal ou figurada, por doença ou acidente, podem ser uma ótima oportunidade para aprender o valor da quietude, da lentidão e da paciência. Uma bênção do universo disfarçada de desgraça. E para quem já pratica, uma oportunidade para aprofundar o treinamento e avaliar a sua qualidade, pois é na adversidade que vemos o quanto valeu a nossa prática. É fácil ficar sereno quando tudo segue a contento.

Por que utilizar um desenho animado, uma comédia de kung fu, para contar essa história, em vez dos clássicos taoistas? Porque a postagem de hoje se destina a leitores e leitoras urbanxs, apressadxs, talvez sem tempo ou paciência para ouvir os antigos sábios chineses.

Como o cultivo do Tao pode ajudar na superação de traumas físicos e emocionais?

Na postagem de hoje, gostaria de relacionar a prática do Tao ao seu potencial para recuperação da saúde e da sanidade, particularmente na superação de situações traumáticas. Como bem sabe quem se dedica à prática de qigong, taiji e medicina chinesa, ou ao estudo da filosofia que fundamenta essas práticas, vida é fluxo. As capacidades de movimento, de transformação e de adaptar-se às circunstâncias do presente, são as características dos processos naturais de manutenção da vida em um organismo sadio, mas também de uma subjetividade sã. Portanto, a fluidez é uma das características do Tao, 0 Caminho Natural. No nível do organismo, o livre fluxo de e sangue, combinado ao equilíbrio qualitativo e quantitativo entre as diferentes substâncias vitais é a base da saúde. No nível da consciência, a serenidade, o coração tranquilo, sensível e empático, mas livre de emoções excessivamente intensas e duradouras, é a base da sanidade. Conforme o pensamento chinês, não se trata de duas coisas separadas, mas de aspectos interdependentes de uma mesma totalidade, que se influenciam mutuamente.

Mas há momentos em que eventos abruptos da vida abalam nossas frágeis ilhas de sanidade: situações de dor intensa ou de adoecimento grave; ameaças à nossa vida e integridade; conflitos sérios em relacionamentos significativos; adversidades que abalam as fundações de qualquer senso de segurança. Em momentos assim, perdemos a capacidade de fluir e agir espontaneamente, seja por nos agarrarmos à nossa dor, seja por repetirmos, fora de contexto e de proporção, atitudes que já foram momentaneamente uma tentativa válida de nos proteger e sobreviver a uma tragédia. Perdemos contato com os processos dinâmicos da vida, nossa sensibilidade ao presente e aos outros seres fica comprometida. Um corpo enrijecido por uma lesão ou sua memória dolorosa, um coração fechado. E mais dor e confusão, por repetição de padrões disfuncionais. E por isso nos distanciamos do fluxo espontâneo da vida.

detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais. Acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

E como o cultivo do Tao pode nos ajudar a recuperar a fluidez, a capacidade natural de movimento e transformação? A primeira chave é a capacidade de relaxar. No estado de relaxamento, a capacidade de autorregulação do corpo é potencializada. As feridas cicatrizam mais rápido, o coração reaprende a ser leve. Como vimos em postagens anteriores, o relaxamento é um benefício tanto dos exercícios suaves do qigong, do taijiquan e práticas afins, quanto da meditação sentada, desde que praticados com constância e com orientação adequada. A segunda chave é o movimento harmônico – no sentido de rítmico, contínuo e fluido – que promove o alinhamento e o alongamento do corpo, ao mesmo tempo que incrementa a circulação de e sangue, restaurando seu fluxo correto. Para a mtc, um traumatismo físico, por exemplo, resultante de uma queda ou pancada, pode resultar em uma “síndrome de obstrução dolorosa”, um bloqueio que causa dor e limitação de movimento. Os exercícios previnem e tratam esses bloqueios, mas em casos mais graves, podemos usar todo o repertório da medicina chinesa – acupuntura, moxa, ventosas, ervas – para potencializar a recuperação. A terceira chave é habituar-se, por meio da meditação, a um estado mental ao mesmo tempo alerta e descontraído. É nesse estado que aprendemos a soltar a dor, a mágoa e as memórias de eventos perturbadores, reconectando-nos com a vivacidade do presente, pleno de novas possibilidades.

Essa explicação só aponta a direção, mas não substitui a prática com um/a professor/a qualificado/a. Somente com a experiência é possível saborear os benefícios maravilhosos.

Benefícios da prática em detalhes: 5. Mente calma e atenta

Na postagem de hoje sobre os benefícios da prática em detalhes, o assunto é a sua dimensão meditativa que, entre outros aspectos, tem efeitos na saúde cerebral e psicológica. Treinar taijiquan (e outros exercícios análogos, como qigong), além dos benefícios para a saúde descritos nas postagens anteriores, é também uma maneira dinâmica de cultivar uma qualidade meditativa por meio do movimento circular, lento e rítmico, a atenção total ao momento presente. Além disso, a respiração abdominal profunda propicia um aumento do relaxamento e do equilíbrio emocional. Utilizando os termos mais tradicionais para descrever a prática, o taijiquan e exercícios com princípios similares permitem cultivar ao mesmo tempo movimento e serenidade, equilibrando yin e yang. Cultivar e equilibrar o , alinhar a postura, manter o corpo forte e flexível, tudo isso contribui para uma sensação de bem-estar e estabilidade existencial.

Embora, ao falar em meditação em uma tradição de origem asiática, a primeira imagem a surgir na imaginação do público não especializado, com certa razão, é de alguém sentado no chão de pernas cruzadas, ao se comparar budismo e taoismo, observamos também que há métodos de meditação que utilizam posturas deitadas, de pé e mesmo em movimento, como a meditação andando budista, ou os exercícios com movimentos suaves desenvolvidos no contexto taoista. Inclusive há métodos para praticantes mais experientes, que visam manter a consciência meditativa durante todas as atividades cotidianas, contrastando cada vez menos a sessão formal de meditação e o viver.

No entanto, para iniciantes, o melhor é ter um momento específico e regular para desenvolver o hábito de estar presente no próprio corpo e completamente atentx à atividade que realiza naquele momento. Isso é particularmente precioso nas sociedades contemporâneas, cujo estilo de vida predominante, com suas intermináveis solicitações externas e distrações, forma pessoas cronicamente inquietas e distraídas. A incapacidade de relaxar, fazer silêncio e manter o foco sem tensão são problemas cada vez mais comuns nas grandes cidades. E uma boa parte das doenças crônicas contemporâneas tem como raiz o estresse. Considerando que o taijiquan (e similares) é uma alternativa não medicamentosa, livre de efeitos colaterais, simples e barata para os males do estresse atual, já dá uma ideia do valor desse verdadeiro patrimônio cultural da humanidade.

Pesquisas científicas nas áreas de saúde tanto revolucionaram a compreensão das relações entre mente e cérebro, quanto demonstraram os benefícios da prática para a saúde. Mais uma vez, refiro-me às contribuições do Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard para detalhar alguns desses aspectos. Em primeiro lugar, é importante mencionar a hipótese da neuroplasticidade: conforme o conhecimento atual das neurociências, sabe-se que novas células cerebrais crescem a vida toda e que nossos hábitos e desafios de vida constantemente remodelam as conexões cerebrais. Algumas pesquisas na área citadas por esses autores, indicam que exercícios psicossomáticos têm um efeito na saúde cerebral e não só nas demais capacidades físicas mencionadas em postagens anteriores, como equilíbrio, força, flexibilidade e coordenação motora, mas também em funções cognitivas como percepção, memória, atenção e no equilíbrio emocional. Particularmente, o taijiquan pode ser um importante recurso para preservar nossas faculdades físicas e mentais enquanto envelhecemos. As pesquisas em neurociência indicam que a prática regular de exercícios que estimulem corretamente o cérebro com novas aprendizagens – como tocar um instrumento musical, falar um novo idioma, fazer taijiquan ou dançar – favorecem o crescimento de novas células cerebrais, novas conexões neurais e a produção de neurotransmissores e neurorreceptores. E consequentemente podem ser uma ótima forma de manter a saúde cerebral por toda a vida. Citando vários estudos sobre os benefícios do taijiquan sobre a função cognitiva, os mesmo autores concluíram o seguinte: “O impacto do taiji sobre a função cognitiva pode ser atribuído, em parte aos seus efeitos sobre o condicionamento físico. […] No entanto, e de particular relevância para o taiji, estudos recentes indicam que os benefícios do exercício para a função cognitiva não se devem unicamente à aptidão cardiovascular, mas também à aptidão motora, que inclui equilíbrio, velocidade, coordenação, agilidade e força”(Wayne, Fuerst, 2016, p. 222). Outro ponto é que o exercício moderado parece ter um efeito maior de proteção contra perdas nas funções cognitivas, inclusive contra Alzheimer, do que exercícios extenuantes. No caso do taiji, uma vantagem adicional é a redução do estresse e a angústia, bem como o aumento da capacidade de lidar com situações potencialmente estressantes. E ainda, o aspecto imaginativo da prática tem um efeito cerebral complementar ao aspecto mais físico, com importantes efeitos sobre o cérebro e sobre o desempenho corporal. Acrescento a isso, que o conhecimento neurofisiológico acerca da meditação permite afirmar que sua prática regular beneficia as funções cognitivas, inclusive alterando a estrutura cerebral, e reduz o estresse.

Por fim, os autores concluem que, além dos aspectos citados acima, os benefícios do taiji decorrem também do fato que a prática coletiva permite aprender novas habilidades, participar de atividades de lazer e estabelecer vínculos sociais, tudo isso contribuindo para prevenir e retardar perdas da função cognitiva devido ao envelhecimento.

Medicina Chinesa e Treinamentos Taoistas: 2. pré-natal e pós-natal

foto do autor: pintura sobre leque, National Palace Museum, Tapei.

Nessa nova postagem da série, mais uma reflexão na fronteira entre os dois campos. Desta vez, com relação ao uso das concepções chave de pré-natal e pós-natal, utilizadas por ambos. Dito de uma forma simples, o pré-natal remete ao estado embrionário literal e metaforicamente, ao período anterior ao nascimento  no caso de um ser humano, ao momento anterior à manifestação, no caso do universo. Já o pós-natal remete à vida humana ordinária após o nascimento, com seus processos de crescimento, maturação, envelhecimento e morte. E também aos ciclos do mundo natural: dias e noites, fases da lua, estações, o movimento dos astros, etc. No contexto da filosofia do Yìjīng (易經), o Clássico das Mutações, as duas condições podem ser expressas pelos dois diagramas do bāguà (八卦) conforme as figuras abaixo:

Particularmente, no caso da vida humana, há algumas aproximações e diferenças entre a descrição da medicina chinesa em geral e da tradição taoista, nos seguintes termos: o pré-natal corresponde àquilo (essência, qì, etc.) que foi recebido da natureza e de nossa mãe e nosso pai no momento da concepção, enquanto o pós-natal corresponde ao que é adquirido da nossa interação com o mundo, inclusive extraído do ar que respiramos e dos alimentos que ingerimos. O pré-natal representa, portanto, o que é inato, constitucional, hereditário na vida humana.  E então, uma vez perdido,  dificilmente pode ser recuperado. Sendo assim, o ciclo normal da vida humana, conforme descrito na filosofia do Yìjīng por meio do simbolismo do bagua pós-natal e dos 12 hexagramas do calendário, se inicia no estado totalmente yin d@ recém-nascid@, tenr@ e vulnerável, que se transforma gradualmente em pleno yáng, até que, ao chegar a plenitude, começa a declinar, perdendo yáng gradualmente, rumo à doença, à decrepitude e finalmente à morte, também descrita como totalmente yīn. A velocidade com que isso ocorrerá depende das condições e do estilo de vida, além da constituição de cada pessoa.

Contudo, esse processo natural pode ser positivamente afetado pelos treinamentos taoistas, que podem atrasar o relógio da vida, fazendo-a mais longa, de modo a envelhecer com vigor e lucidez. E até mesmo recuperar a essência e o pré-natal. Esse é um dos sentidos do chamado “Caminho do Retorno”. Esse aspecto da restauração da vitalidade e da preservação da saúde correspondem ao chamado treino ou cultivo da vida (mìng gōng 命功), a primeira etapa do caminho taoista. Esse foi um motivo que levou milhões de pessoas, no passado e no presente, a praticarem esses métodos, independente de se identificarem com o taoismo como um caminho de vida. Até aqui estamos no domínio do uso de exercícios preventivos ou terapêuticos como prática medicinal. Em nossa linhagem, mestre Liu Pailin e seu sucessor, mestre Liu Chihming, juntamente com seus discípulos e discípulas, ensinaram milhares de pessoas no Brasil a cuidar da saúde utilizando esse recurso, o treinamento diário de  práticas corporais baseadas num conhecimento tradicional sistemático acerca do .

Para além desse aspecto, o retorno ao pré-natal da tradição taoista é mais profundo: os treinamentos são o meio potencial para uma transformação completa –  ao mesmo tempo corporal, subjetiva e existencial –  que combina a plenitude da potência de movimento da vida a um estado de serenidade e espontaneidade, que permitiria estar em completa sintonia com as circunstâncias, de modo a agir de modo eficaz, mas sem esforço ou identificação pessoal com a ação.  Uma verdadeira arte de viver baseada na fluidez, que só se pode aprender por experiência. A plena realização dessa condição é encarnada na figura d@ imortal ou ser iluminado, que ainda será tema de alguma postagem futura.

Medicina chinesa e treinamentos taoistas: 1. aproximações e diferenças

Os Seis Centros (Liùshénqiào 六神竅), diagrama utilizada pelo mestre Liu Pailin em suas aulas de Daoyin e meditação. 

A postagem dessa semana inaugura uma nova série que discute as relações  entre medicina chinesa e treinamentos taoistas. É sabido que o fundamento filosófico e cosmológico da medicina chinesa pode ser corretamente descrito como taoista: a filosofia yīn/yáng e a teoria dos cinco movimentos são seus pilares. E além disso, conceitos, teorias e outros elementos da medicina tradicional informam tanto treinamentos para longevidade quanto métodos de meditação taoista. No entanto, não é necessário ser taoista para praticar medicina chinesa, nem tampouco praticar o taoismo implica um conhecimento aprofundado de medicina.

Hoje gostaria de responder a pergunta de um aluno de acupuntura: qual a relação entre o sistema de canais, colaterais (jīngluò 經絡) e os pontos de acupuntura (xué 穴) da medicina chinesa, e os centros (qiào 竅), campos de elixir (dāntián 丹田) e círculos/circulações (xuán 旋) dos treinamentos taoistas?

Em primeiro lugar, há certa correspondência entre o trajeto de algumas circulações utilizadas em treinamentos de qìgōng (e meditação) e canais extraordinários, como por exemplo o circuito formato pelo Vaso da Concepção e o Vaso Governador, no treinamento do “Pequeno Universo” ou “Circulação dos Seis Centros” (representados na ilustração acima). Grosso modo, Renmai e Dumai correspondem aos caminhos do Fogo e do Vento da alquimia interna taoista. Contudo, a circulação dos seis centros não segue pela superfície da cabeça, acompanhando os pontos do trajeto do Vaso Governador na linha mediana do crânio, em vez disso conecta vários centros importantes no interior da cabeça, o que poderíamos supor que corresponde a um ramo interno do Dumai.

Comparação semelhante pode ser feita entre os pontos de acupuntura e os centros. Existe uma correspondência entre algumas localizações importantes, mas não são idênticas. Por exemplo, o ponto VC1 ( Huìyīn 會陰), situado no períneo, corresponde ao centro Yīnqiào (陰竅), no entanto, este segundo se situa nos genitais internos. O ponto VG4 (mìngmén 命門) corresponde ao centro dos rins (shènqiào 腎竅), mas enquanto o ponto de acupuntura se situa na coluna vertebral, o centro se situa no interior do corpo, entre os rins e à frente da coluna. Resumindo, em geral os centros utilizados em meditação e qìgōng estão situados mais internamente no corpo, além do alcance do agulhamento, ao contrário dos pontos de acupuntura.

Além disso, há os campos de elixir, que são regiões maiores, que abrangem vários centros e pontos de acupuntura. A transmissão que recebi fala em três:  superior, médio e inferior. Estão situados, respectivamente, na cabeça, no peito e no ventre. Possuem funções e  localizações distintas do Triplo Aquecedor (Sānjiāo 三焦), víscera da medicina chinesa sem correspondência com as estruturas identificadas pela anatomia ocidental, mas que, entre outros aspectos, representa três conjuntos de funções fisiológicas: respiração/circulação, digestão, excreção.

Ou seja, é preciso prudência ao estudar os dois campos de conhecimento tradicional chinês, prestando atenção a aproximações e distinções. Minha recomendação é evitar o realismo ingênuo. Não se trata de descobrir uma verdade objetiva separada de construções simbólicas culturalmente situadas e de experiências corpóreas. Nenhum dos conceitos mencionados aqui refere-se a um objeto físico que pode ser apontado, mas compõem uma tecnologia cultural eficaz que permite prevenir e tratar doenças, promover a saúde e a longevidade, acessar experiências meditativas e desenvolver um certo tipo de consciência corporal.

Isso fica evidente quando constatamos as diferenças de terminologia, descrição e interpretação das várias linhagens taoistas, mas também quando fazemos estudos comparativos do que poderia ser chamado de “psicofisiologia do corpo sutil” conforme elaborada também em outras tradições como o yoga e o tantra, tanto hindu quanto budista, só para citar uns exemplos.

Quem supõe que os centros e campos de elixir descritos pelos taoistas sejam a mesma coisa que os chakras das tradições indianas, descobrirá, com surpresa, que suas formas, cores, localizações, funções e quantidades divergem enormemente. Mais interessante ainda, nem ao menos no interior de uma mesma tradição há esse consenso, exceto quando foi forçado em certas circunstâncias históricas.
A esse respeito, achei particularmente instrutivo o artigo de Christopher Wallis, the real story on the Chakras. Ele demonstra que, até o final do século XIX, não havia ainda um sistema unificado de chakras, mas sim várias versões, dependendo da escola. Foi a preservação e tradução de uma obra indiana para línguas ocidentais que fez o sistema de Sete chakras a concepção oficial e canônica do yoga. E afirma que os chakras tem função prescritiva e não descritiva, são um método ióguico e meditativo para organizar a circulação do prana no corpo de certa maneira, não a descrição de uma realidade a priori.
E por que me refiro a esse assunto em um blog sobre taoismo? Há uma analogia entre os diversos sistemas dentro uma mesma tradição e na comparação entre tradições distintas,  mas não há uma correspondência coerente. Podemos aprender a mesma lição proposta por Wallis a respeito também dos conceitos do taoismo e da medicina chinesa. São métodos para induzir certas experiências, uma linguagem eficaz, resultante da experiência acumulada de incontáveis gerações de praticantes, mas não são fatos objetivos a priori que devam ser debatidos dogmaticamente.

Modo de vida taoista: 5. Meditação

Nesse post sobre modo de vida taoista, o assunto é meditação. Embora haja diversas maneiras de praticar o Tao, em conformidade com as características de cada praticante, várias linhagens oferecem métodos contemplativos. A meditação é uma maneira de atualizar em nós os princípios taoistas, como  harmonia de yīn e yáng, e a não-ação (wúwéi ), entre outros. O corpo humano, como pequeno universo, ressoa com a natureza. A meditação é ao mesmo tempo uma prática de cultivo da vida e de cultivo do espírito. Sentando em silêncio regularmente, treinamos a serenidade e equilibramos nosso qì. É dito que todas as doenças começam no coração. E a meditação é o principal método para cultivar um coração límpido, tranquilo e amoroso. Assim, a meditação é uma prática de prevenção e promoção de saúde, pois mantém a união de yīn e yáng no ser humano, reduz as tensões e desequilíbrios,  remove os bloqueios, antes que se manifestem como doenças.  E ao mesmo tempo é uma prática de serenidade. A manifestação do sucesso na prática é a capacidade manter-nos assim também nas situações cotidianas, inclusive, em circunstâncias desfavoráveis, fazendo o que é necessário, mas sem se agitar.

Mestre Liu Pailin recomendava a prática diária da meditação Sentar na Calma, ressaltando seus benefícios para a saúde e a promoção da longevidade, assim como sua importância para o cultivo do Tao. Como detentor da transmissão de várias linhagens taoistas, nas décadas em que residiu no Brasil, entre o final dos anos 70 até o ano 2000, ensinou vários métodos, como a circulação dos Seis Centros, dos Oito Vasos Maravilhosos, da Via Láctea, entre outros, mas sempre enfatizou o poder e os benefícios do método mais básico e fácil de meditação taoista: o Abraço do Taiji, cultivar a união de Céu e Terra, Fogo e Água, na região do umbigo. Praticando a mais completa serenidade nesse abraço, até esquecer-se de si mesmo.

 

Modo de vida taoista: 2. como praticar?

Nessa segunda postagem da série modo de vida taoista, o assunto é como praticar. A ideia de harmonizar-se com os ciclos da natureza não é uma mera metáfora para a tradição taoista, mas uma questão prática, baseada em um conhecimento técnico refinado. Um aspecto da questão é quando e que tipo de treinamentos praticar. A esse respeito, há várias orientações. Hoje compartilharei uma recomendação simples para quem deseja ter uma prática diária. O ideal seria ter dois momentos de prática no início e no final do dia, ajustáveis à rotina de cada pessoa, em função de seu tempo, necessidades e práticas preferidas.

Por exemplo exemplo, ao começar o dia nos preparamos para iniciar nossas atividades: meditação, respiração de limpeza, qigong e arte marcial interna. Ao terminar o dia, estamos nos recolhendo; seguimos a ordem contrária, da arte marcial à meditação. Esse modo de organizar o treino diário segue a progressão de yīn para yáng e vice-versa, da serenidade ao movimento e do movimento de volta à serenidade.

Alguns conselhos suplementares do mestre Liu Pailin: 1) pratique técnicas respiratórias de captação do qì da natureza nos horários yáng (23:00-11:00). O melhor horário é de manhã bem cedo, quando ainda há uma faixa de luz alaranjada no horizonte. 2) no período mais quente do dia, o mais indicado é meditar e repousar, evitando exercícios extenuantes. 3) A não ser  que o objetivo seja captar o qì da lua ou das estrelas, evite praticar à noite diretamente sob árvores, pois nesse horário o qì se move da Terra para o Céu.

O Corpo Taoista: 3. a especificidade do ser humano

Nessa terceira postagem da série O Corpo Taoista, recapitulo uma lição aprendida da  transmissão do mestre Liu Pai Lin, a particularidade do ser humano, como ponto de união entre Céu e Terra, se expressa em algumas características corporais de nossa espécie: o bipedismo, as mãos de cinco dedos e o fantástico cérebro humano. A postura bípede faz da coluna vertebral um eixo vertical. A cabeça e as mãos se conectam com o Céu, o baixo ventre e os pés se conectam com a Terra. Mais precisamente, as digitais dos dedos e o língtái (靈台), situado na região do terceiro ventrículo, conectam-se com os 10 Troncos Celestes (天干), enquanto a sola dos pés e o yīnqiào (陰竅), situado nos genitais internos, conectam-se com os 12 Ramos Terrestres (地支). São estas características que permitem captar o qì da natureza, para cultivar a vida e o espírito. O qì do Céu e o  da Terra se reúnem no centro do corpo, formando um Taiji, em torno do qual está um Bagua. Portanto, cultivar essa ligação é, ao mesmo tempo, qìgōng (炁功) e meditação (静坐). Mantendo as mãos e a atenção sobre a barriga, literalmente tomamos consciência do nosso centro, nosso Taiji, fazemos as eletricidades de cima e de baixo interagirem.

6 centros

Além disso, um ser humano vivo possui 6 Centros (六神竅), relacionados a diferentes aspectos da consciência, que permitem a interação com o da natureza para cultivar o Tao. A circulação dos 6 centros, ou pequeno universo, é um método clássico de meditação taoista. (Na foto acima, o diagrama dos 6 Centros utilizado pelo mestre Liu Pai Lin).

Compreender o Tao: 2. saber com o próprio corpo

Nesta segunda postagem da série Compreender o Tao, dou seguimento ao argumento anterior. Se as palavras e os conceitos  são meros indicadores,  não a via para o Tao,  como percorrer o caminho? A transmissão da tradição ocorreu e ocorre ainda por vários meios:  palavra falada,  palavra escrita (principalmente narrativa ou poética), imagem  (diagrama, desenho, pintura), recursos audiovisuais modernos, música, movimento e postura corporal. O treinamento é o meio, por excelência, para compreender o Tao. Cada método é a expressão de um (ou mais) princípio(s), o meio para atualizá-lo(s) como experiência pessoal. Os métodos são fundamentalmente técnicas corporais, no sentido maussiano, que induzem um certo “modo somático de atenção” (CSORDAS, 2008), uma forma culturalmente específica de prestar atenção com o corpo. Portanto, se por meio das palavras, o Tao é inapreensível, torna-se acessível por meio da experiência sensorial, motora e afetiva do corpo vivido.

Version 2

Por exemplo, ao abraçar o Taiji, colocando as mãos sobre a região do umbigo (taiyuan), ao mesmo tempo que, literalmente, trazemos  a atenção para nosso centro de gravidade,  a origem de nossa vida,  encarnamos o simbolismo do  Taiji (☯), como centro dinâmico vivo. O elemento central não é o conceito ou o símbolo, mas como isso se atualiza numa experiência corporal. Obviamente, não se trata simplesmente da eficácia do gesto, mas do fato de fazê-lo com plena atenção e consciência.

Treinar é cultivar um hábito. Assim, ao abraçar o Taiji regularmente, nos acostumamos à manter a atenção no centro, com consequências motoras e posturais, perceptivas e afetivas. Esse é um método básico de qigong e meditação taoista, que é praticado em nossa linhagem ao final de cada exercício, mas que também é adotado como postura básica de meditação, e um recurso para acalmar a mente e recuperar as energias a qualquer momento do dia. O índice para a eficácia do Abraço do Taiji justamente é o grau de profundidade de seu efeito sobre o corpo/consciência.