O Tao como vida em relação

“Tao é Taichi, e Taichi é harmonia de yin e yang”. Essa afirmação tradicional tem uma consequência no entendimento do caminho taoista como a unidade de uma compreensão sobre a vida e de uma arte de viver. A vida é percebida como um jogo dinâmico de aspectos complementares, opostos, alternados, sempre organizados em relações. E o bem viver seria um exercício de sensibilidade e ajuste às condições e relações do momento, visando o equilíbrio, a fluidez e a ação eficaz com o mínimo de desgaste. Compreendendo corretamente o funcionamento da natureza, ou do Céu e da Terra, e desenvolvendo pela prática uma sintonia com esse funcionamento, a vida fica mais simples. Assim, “filosofia” e “treinamento” taoista não são coisas separadas, mas os dois lados do caminho. Em uma época de tantas experiências de solidão, isolamento e excessivo individualismo, talvez os antigos sábios chineses tenham algo a nos ensinar…

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Certamente, há todo uma dimensão social nessas experiências, uma desagregação do espaço público, o desmantelamento de políticas de bem estar e seguridade social, associados a uma desregulamentação que favorece o mercado e prejudica as vidas das pessoas comuns, a ausência de projetos para o bem comum, tudo isso associado a uma excessiva individualização nos ambientes urbanos globalizados. Então, a solidão está associada uma instabilidade nas condições sociais, a um enfraquecimento da profundidade e diversidade de vínculos significativos e, ao mesmo tempo, a um aumento da importância individual e da necessidade de visibilidade e popularidade.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

No entanto, se voltamos à concepção taoista sobre a vida, nunca estamos de fato separados/as do mundo nem das demais pessoas. Estudando a filosofia taoista e a medicina tradicional chinesa, podemos nos dar conta disso em um nível intelectual. Praticando meditação e qigong podemos nos dar conta disso pela experiência vivida, de conexão com o mundo à nossa volta e seus habitantes. Um corpo vivo é feito dos mesmos materiais que a natureza. E é sua permeabilidade ao ar, à água, aos alimentos, ao que torna a vida possível. A metáfora ocidental fundadora da identidade pessoal – eu como algo dentro, enquanto o mundo está fora – induz a um erro de percepção, com consequências existenciais. O mundo não está fora de nós, nós sempre estivemos dentro do mundo. E os seres humanos vivem graças às relações: não teríamos chegado à idade adulta sem cuidados, ajuda e aprendizagem oferecida por outras pessoas; a maioria de nós não poderia sequer sobreviver sem o trabalho e os conhecimentos de outras pessoas. Resumindo, assim como não poderemos viver se destruirmos o ambiente natural, a vida também não é possível sem solidariedade e cuidado mútuo. Ou até é possível, mas às custas da nossa sanidade e até mesmo de nossa humanidade.

Certamente direitos e liberdades individuais são um ganho, mas se tornam uma maldição quando não vem acompanhados de responsabilidades coletivas e respeito aos mesmos direitos e liberdades das demais pessoas. A convivência íntima se torna uma tirania e as relações sociais se tornam formas de exploração e opressão.

O que aprendi de meus mestres é que o cuidado de si, o cultivo da vitalidade e da serenidade, a conquista da saúde e da longevidade, o despertar da sabedoria, é parte do processo de aprender a cuidar dos/as outros/as. É porque temos equilíbrio que podemos ser uma presença benéfica. Só tem sentido uma vida longa se com ela podemos beneficiar nossas comunidades e partilhar conhecimentos e experiência acumulada.

O Tao e as angústias contemporâneas

A postagem de hoje aborda um outro aspecto do diálogo possível da tradição taoista com os dilemas do nosso tempo. Obviamente, os textos clássicos antigos não disseram nada específico a respeito do momento atual, pois foram escritos séculos antes, por pessoas que nunca vivenciaram essas condições históricas e culturais. No entanto, a riqueza desses textos, de sua interpretação por praticantes vivxs é o que torna os clássicos úteis. Clássicos, aqui, são aqueles textos que contêm o termo jīng (經) em seu título. Alguns deles tem sido citados nesse blog com frequência, como o “Clássico de Medicina Interna do Imperador Amarelo” (Huángdìnèijīng 黃帝內經), o “Clássico das Mutações” (Yìjīng 易經) ou o “Clássico do Caminho e da Virtude” (Dàodéjīng(道德經).

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016
Zygmunt Bauman (1925-2017)

Algumas análises sobre o mundo contemporâneo apontam para a instabilidade da condições sociais e suas consequências nas vidas individuais. Por questões de espaço, não vou me estender aqui sobre isso. Mas talvez um dos autores mais conhecidos seja o sociólogo Zygmunt Bauman. Ele descreveu o mundo contemporâneo das sociedades globalizadas como um momento de instabilidade, velocidade, fluidez, consequentemente de imprevisibilidade e precariedade. Daí o termo modernidade líquida, a passagem de uma sociedade da estabilidade, da ordem e da produção, para uma nova configuração, de instabilidade, desregulamentação e consumo: a liquefação da modernidade. Um mundo com mais possibilidades, mas ao mesmo tempo, com mais desamparo: o grande risco é o de se tornar redundante. Por isso, ao analisar as angústias do início do século XX, descritas por Freud em 1930, Bauman constata que as angústias atuais são outras: mais associadas à insegurança e ao excesso de referências contraditórias do que ao excesso de ordem e à repressão. Não é por acaso que as formas predominantes de sofrimento psíquico atual – particularmente no campo da depressão, ansiedade e pânico, por contraste com a histeria e a neurose da época de Freud – apontem para a falta de um terreno sólido onde se apoiar, de uma direção segura a seguir e dos recursos para tomar decisões eficazes. Paradoxalmente, com a crise das instituições que deram o tom da modernidade, e a consequente insegurança e desorientação, os discursos fundamentalistas de todo tipo tenham se tornado tão sedutores: a promessa de segurança no interior de uma comunidade de iguais, deixando do lado de fora a diferença que amedronta e incomoda. Mais recentemente, não é casual o crescimento das formas mais fundamentalistas de cristianismo no Brasil e a ascensão de um novo conservadorismo marcado por discursos de ódio. E por outro lado, a popularidade de discursos individualistas ingênuos, bem exemplificados pela explosão do coaching, como se nosso sucesso ou fracasso, felicidade ou infortúnio, dependesse exclusivamente de nossa vontade, e como se nossos destinos coletivos não estivessem interligadas.

E como a filosofia e o modo de vida taoista podem oferecer alternativas a esse cenário? Parte da minha resposta se refere ao fato de praticar o Tao ser uma arte de viver. Em primeiro lugar, sendo uma filosofia do movimento, podemos entender que nunca houve nada sólido a que se agarrar: a mudança é a própria característica definidora da vida. Então nunca estivemos no controle, temos apenas possibilidades relativas de nos posicionar diante de situações que não controlamos. Mas podemos aprender a fluir inteligentemente de acordo com as circunstâncias, desenvolvendo a sensibilidade e a lucidez. Em segundo lugar, as três virtudes taoistas básicas – amorosidade, simplicidade e “não querer ser o primeiro sobre a terra” – descritas por Laozi, podem ser um antídoto aos venenos contemporâneos da relação predatória e consumista com os outros e à ambição desmedida que iguala o valor pessoal ao desempenho. Há milênios que essa referência fundante do taoismo recomenda cuidar da terra e de seus habitantes, seres humanos e não-humanos; desfrutar dos prazeres sem excesso e não desperdiçar os recursos; evitar a rivalidade e a competição.

Detalhe de pintura da exposição sobre os imortais, acervo temporário do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Feitos com constância, os treinamentos podem minorar o estresse e auxiliar a recuperar a sanidade nesse mundo caótico. Se conseguimos relaxar um pouco, temos condição de estar mais sensíveis ao momento presente, mais disponíveis para fazer contato com as outras pessoas, menos predispostxs a adoecer, sofrer acidentes ou iniciar conflitos desnecessários. E quando mesmo assim entramos em desequilíbrio, a medicina tradicional pode apoiar a capacidade natural de nosso corpo de se autorregular.

Benefícios da prática em detalhes: 6. uma síntese

Ao longo dessa série, meu esforço foi responder, de modo acessível ao público leigo, a seguinte pergunta: mas afinal, por que praticar exóticos exercícios chineses como taijiquan ou qigong? Qual a relevância dessas práticas nos dias de hoje?

As várias postagens anteriores tentaram evidenciar, com contribuições de pesquisas da medicina ocidental os inúmeros benefícios comprovados, mensuráveis desses exercícios, que justificam recomendar sua prática como prevenção e promoção de saúde, como maneira de envelhecer sem decrepitude e com qualidade de vida, mas também como recurso terapêutico complementar para várias doenças crônicas. Foi isso que pretendi compartilhar, em linguagem acessível e utilizando uma fonte confiável de divulgação do conhecimento médico convencional sobre o tema.

Tendo compreendido os benefícios da prática, fica fácil entender porque o treinamento regular, de preferência diário, é um dos segredos da notável vitalidade, saúde e vivacidade de espírito de tantos e tantas praticantes experientes na China e pelo mundo afora, inclusive no Brasil, onde o famoso mestre Liu Pailin, fundador de uma das escolas que pratico e ensino, teve um papel pioneiro na divulgação da medicina tradicional chinesa e do métodos taoistas de longa vida, como o taijiquan e tantos outros.

mestre Liu Pailin (1907-2000)

Voltando à explicação baseada no pensamento chinês, as teorias de fundo que orientaram o desenvolvimento de técnicas corporais taoistas e outros métodos chineses de saúde e longevidade, como o taijiquan, provêm da filosofia taoista e da medicina tradicional. Em vez de separar/opor corpo e mente, como na perspectiva cartesiana que formou a medicina convencional ocidental, a relação corpo e mente é concebida aqui como um contínuo. A consequência é que o equilíbrio do dos órgãos e vísceras contribui para o equilíbrio emocional e vivacidade da consciência, e vice-versa. A plenitude do , a harmonia de yin e yang, a capacidade de manter o coração sereno diante das circunstâncias: tudo isso é a base da saúde e da longevidade, mas também o fundamento para percorrer o caminho do Tao. O equilíbrio no corpo é a base que permite o cultivo da espiritualidade. Por isso, ainda que toda a prática beneficie ao mesmo tempo a saúde e a serenidade, práticas mais aprofundadas de meditação normalmente são ensinadas depois dx praticante aprender a regular o e o coração, aqui entendido no sentido de consciência. Ou nos termos tradicionais, o “cultivo da vida” começa antes do “cultivo do espírito” e é a sua base.

As agitações e preocupações da vida diária, a relação desproporcional entre movimento e quietude, tudo isso cobra o seu preço sobre nossa saúde e sanidade. E, vivendo numa grande cidade, fica cada vez mais difícil escapar do excesso de trabalho, mas também do desgaste excessivo nos momentos de lazer. Mestre Pailin recomendava: “pessoas de meia idade (após os 35 anos), andem devagar”. Havia uma ironia não dita nessa recomendação: devagar, “a caminho do cemitério”. Quem quer ter uma vida longa e possuir não só saúde, mas também boa disposição e manter suas capacidades cognitivas e corporais também na velhice precisa aprender a se preservar. Descansar, manter o coração sereno, interagir com o da natureza, usar apenas a força necessária para realizar uma tarefa. Essas são as recomendações básicas contidas nos inúmeros ensinamentos do mestre. E treinar, treinar e treinar. O mestre afirmava que não ousava ficar um dia sem praticar. Explicava que sua longevidade e impressionante boa saúde em idade avançada se deviam aos treinamentos, pois era de uma família em que as pessoas morriam muito jovens.

Benefícios da prática em detalhes: 4. respirar melhor

Na postagem de hoje dessa série, o tema é a respiração. Respirar faz parte do fluir fundamental da vida, como tantos outros ritmos e pulsações indispensáveis à existência corporal, expressões da alternância de yin e yang no nosso microcosmo pessoal. A qualidade da respiração está diretamente relacionada à saúde e disposição vital, consequentemente à longevidade, mas também ao nosso equilíbrio emocional. Um respiração curta, entrecortada e superficial está associada não apenas a baixa vitalidade e mesmo a certos processos de adoecimento, como também correspondente a estados de agitação mental e angústia.

Ainda que, nas linhagens taoistas que pratico, a transmissão oral não descreve muitas formas de qigong e o próprio taijiquan como “exercícios respiratórios”, pois o cultivo do qi nem sempre está associado à troca gasosa, ambos têm um efeito benéfico sobre a respiração, por desenvolverem o hábito da respiração abdominal lenta, o que afeta positivamente a capacidade respiratória, a saúde cardiovascular, a regulação do sistema nervoso e o refinamento da percepção. Além disso, do ponto de vista tradicional, o fluxo harmônico do beneficia a circulação do sangue e propicia a autoregulação de todos os sistemas do corpo.

Referindo-me mais uma vez às pesquisas médicas sobre respiração e os benefícios do taijiquan e práticas análogas (como qigong), o Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard faz relações entre capacidade e saúde respiratória e expectativa de vida, bem como ressalta a diminuição potencial da função respiratória devido ao envelhecimento. Isso resulta de alterações na estrutura da caixa torácica, na diminuição da elasticidade do pulmões, ambos fatores contribuindo para redução da qualidade da troca gasosa. E, em todas as idades, alterações emocionais e estresse podem impactar negativamente na qualidade da respiração.

Além disso, a mesma fonte explica de que modo esses exercícios chineses podem ser benéficos para a respiração. O aspecto fundamental é que o padrão respiratório que se transforma em hábito por meio da prática regular desses exercícios é a respiração abdominal (com foco no dantian inferior) lenta e suave, favorecida pelo ritmo dos exercícios executados com consciência e pelo uso da imaginação associada à respiração. Além da troca gasosa, a respiração também massageia os órgãos internos e equilibra o sistema nervoso e consequentemente as emoções. Pesquisas médicas citadas pelos autores sugerem que a prática de Taiji melhora e retarda perdas da função respiratória, inclusive sendo benéfica no tratamento de doenças respiratórias como asma e doença pulmonar obstrutiva crônica. O aspecto meditativo da prática é eficiente na redução do estresse, no aumento do relaxamento e em promover melhorias no humor.

Modo de vida taoista: 13. harmonia com a natureza

Na postagem de hoje continuamos a desenvolver a temática do modo de vida taoista. É comum na tradição taoista o elogio ao estado natural ou a valorização da natureza, seja nas suas expressões artísticas, seja nos textos clássicos. Mas o que significa isso?

Pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor, setembro de 2018.

Como qualquer pessoa com alguma sensibilidade antropológica já deve ter se dado conta, não é possível saber o que é a natureza “em si”, mas essa compreensão é sempre mediada por artefatos culturais. Assim, em vez de opor natureza a cultura ou sociedade, prefiro pensar em termos de naturezas-culturas, como propõe Bruno Latour.

No caso, como os antigos chineses perceberam o que, em línguas ocidentais, traduziríamos por natureza, percepção essa que está presente na tradição taoista? Ao menos na linhagem que pratico, a noção de natureza está diretamente relacionada ao que os Estudos Chineses chamam de “cosmologia Huang-Lao”, cujo fundamento é a combinação da filosofia yin/yang à teoria dos Cinco Movimentos (五行). A própria noção de Tao (道), ainda que impossível de descrever plenamente – pois tem a qualidade de “maravilha” (妙) e “mistério” (玄) conforme é dito no primeiro poema do Daodejing (道德經) – traz consigo uma sensação de movimento ordenado, cujos princípios podem ser apreendidos por observação direta, por contemplação, pelo cultivo de um modo corporificado de consciência e pelo estudo dos clássicos. Movimento circular, no microcosmo, e cíclico, no macrocosmo. A presença de padrões espiralados em inúmeras formas naturais, sejam os movimentos do ar ou da água, ou a própria estrutura dos seres vivos e seus padrões de movimento corporal. Movimento contínuo. Afinal, vida é, por definição, movimento, ainda que, de tão sutil, possa ser imperceptível a olho nu.

Então, em primeiro lugar, poderíamos dizer que harmonia com a natureza é desenvolver uma sensibilidade sutil a estes padrões. Isto é, sintonizar-se com o movimento do no universo, como o caso de 1 praticante experiente de qigong que desperta naturalmente de manhã cedo, sentido a ascensão do yang, quando o sol nasce e sua luz e calor banham a terra, nutrindo as plantas e despertando os animais de hábitos diurnos. Além da sensibilidade aos horários do dia, poderíamos incluir também às fases da lua, às estações do ano, às condições climáticas, etc. No princípio, é uma sensibilidade fabricada: tentamos prestar atenção deliberadamente a esses fenômenos e inclusive ajustar nossos treinamentos e demais atividades a eles. Mas com o tempo, torna-se uma percepção intuitiva aliada a uma resposta espontânea de autorregulação em relação a essas circunstâncias.


pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Mas um outro sentido do “natural” refere-se a um estado que combina plena atenção e relaxamento, que proporciona um senso de ação sem esforço, acompanhada da sutil alegria de abrir mão de toda tensão desnecessária. Paradoxalmente essa condição de espontaneidade e naturalidade, que nada tem a ver com a ação impulsiva movida por um condicionamento, é um tipo particular de liberdade que resulta de um longo período de treinamento, no qual nos dedicamos a aprender a relaxar e fluir.

Modo de vida taoista: 12. mínimo esforço = máxima eficiência

Na postagem dessa semana, damos continuidade aos temas do modo de vida taoista. Se é importante reduzir o esforço desnecessário e aprender a relaxar, isso não se confunde com uma espécie de elogio à preguiça nem com a suposição equivocada de que o universo irá prover tudo sem que se tome as medidas necessárias. Obviamente, dentre as medidas necessárias, podemos incluir a paciência, para agir apenas no momento certo. E a sensibilidade para perceber o que fazer e como fazer. Essa decisão depende de uma capacidade de sentir o potencial da situação e agir com precisão sobre as forças que se direcionam a um determinado resultado. Não se trata de uma decisão tão calculista e deliberada, mas de uma sintonia com o momento presente, que não necessita de um autor da ação, alguém que se identifica com o resultado. Mas ao contrário, que age como se ninguém estivesse fazendo nada em especial.

A ideia é de um estilo de ação que busca os espaços de mínima resistência. Zhuangzi (莊子) utiliza a imagem magistral do cozinheiro do príncipe Wen Hui, destrinchando a carne de um boi. Ao cortar exatamente “na linha natural”, “no espaço oculto”, “como uma brisa”, o fio da lâmina não se desgasta. Do mesmo modo, o elogio de Laozi (老子) à água nos poemas 8 e 78 do Daodejing (道德經) refere-se justamente à sua suavidade e capacidade de adaptar-se, fluir, preencher os espaços vazios, uma excelente metáfora da ação em conformidade com o Tao.

O paradoxo dessa ação eficaz e aparentemente sem qualquer esforço, é que resulta, para imensa maioria das pessoas, de um aprendizado longo, de treinamento constante. Aprendemos o Tao por meio da constância. O ideograma de mesmo nome ䷟, composto pelo trovão (☳) acima e o vento (☴) abaixo, representa o movimento incessante, uma combinação de iniciativa externa e suavidade interna, entre outras possibilidades de interpretação. Pela prática repetida e pelo desenvolvimento gradual, é possível chegar a um nível de maestria que não é o da virtuose, mas sim o da não ação (無為).


Modo de Vida Taoista: 11. Reduzir todo esforço desnecessário

A postagem de hoje retoma a série dedicada ao modo de vida taoista. Em tempos de exaustão coletiva, o princípio taoista da não ação, ao mesmo tempo pode soar absurdo e servir como um lembrete útil sobre outras possibilidades de existência e subjetividade.

lagoa de carpas, com um símbolo do Tao, nas montanhas de Yilan, Taiwan.

Uma instrução básica da transmissão do mestre Liu Pailin era: “não forçar”. Isso se aplica, em primeiro lugar, à prática regular dos treinamentos taoistas que, ao contrário da cultura fitness, não pressupõem que a dor é o requisito para o resultado. Mas também é um princípio válido para uma atitude existencial geral. Essa recomendação simples expressa a confiança no desenvolvimento gradual e contínuo, sem necessidade de rupturas abruptas e superação de limites por meio da luta.

De fato, na maioria de nossas atividades cotidianas, relações e projetos, aplicamos mais força que o necessário. No nível mais óbvio, observe quanta tensão muscular é aplicada em movimentos simples que podem ser feitos de forma mais econômica e eficaz se aprendemos a relaxar enquanto nos movemos e utilizar apenas a força necessária. Experimente prestar atenção em quanta força e tensão utiliza para escovar os dentes, girar uma maçaneta, preparar um alimento, lavar louça, subir uma escada, segurar o volante do carro, digitar ou qualquer outra tarefa cotidiana. Ao praticar taijiquan ou o abraço da árvore (zhanzhuang), aprendemos a relaxar os músculos ao mesmo tempo em que mantemos a postura, o alinhamento do corpo e nos movimentamos de forma harmônica. O que é aprendido pelo corpo nas sessões formais de treinamento, com o tempo pode ser transferido para as atividades diárias. Nosso treinamento se expressa em uma graciosidade corporal natural.

O excesso de esforço desnecessário fica óbvio no movimento corporal, mas pode ser descoberto também quando examinamos a nossa vida mental. Como é cansativo ficar pensando intensamente, sem parar, mesmo quando não há nenhum problema urgente que exija nossa atenção. E como é exaustivo ser arrastado por emoções tão intensas que levam a ações sem lucidez que nos geram arrependimento. Por isso, as práticas taoistas combinam movimento e serenidade, serenidade ao se mover, e movimento interno ao ficar imóvel. Como a inquietude do coração é a base para todo tipo de doença, aprender a serenar, a manter o coração tranquilo em todas as circunstâncias, não é apenas parte de uma prática meditativa ou de um caminho de vida, mas tem indiscutíveis efeitos para a saúde. Nas frenéticas realidades urbanas contemporâneas, pouca gente pode entender o valor do silêncio, da quietude, do repouso, mas principalmente do silêncio interno.

Por do sol na Serra dos Pirineus, foto do autor.

Mas não se trata de um silêncio artificial, que nega as experiências ou deseja congelar a consciência numa quietude forçada, que é como uma anestesia. Em nosso corpo e em toda a natureza, vida é movimento incessante. E nas consciências, vida é percepção incessante. O segredo é aprender ficar ao mesmo tempo atentx e relaxadx. Assim é possível perceber os espaços vazios entre os objetos, as pausas entre os movimentos, os silêncios entre os sons. Esse é um dos sentidos da experiência da vacuidade.

Justamente, como expliquei anteriormente, o wuwei não se refere a não fazer, mas sim ao fazer com o máximo de eficiência e o mínimo de esforço. Contudo, esse fazer eficaz depende da capacidade de se desfazer de um senso de autoria, de alguém que faz, e de permanecer “vazio”, no sentido de uma receptividade altamente adaptável. Quanto maior a sintonia com as circunstâncias, quanto mais fluidez e adaptabilidade, menos esforço é necessário para realizar uma tarefa e chegar a um resultado favorável. E, embora seja um princípio, é menos algo que se decide por em prática deliberadamente, do que a consequência ostensiva do resultado de um sistema de práticas que transforma o corpo e a subjetividade.

O Tao é indefinível. Mas como definir o Taoismo?

Definir o Tao é uma tarefa ingrata. No primeiro poema do Daodejing (道德經), Laozi alerta que o Grande Tao não pode ser nomeado. Qualquer praticante taoista sabe que o Tao é algo que se desvela por meio da experiência meditativa e da contemplação, não algo de ordem conceitual, que pode ser devidamente descrito com o intelecto. Mas e o taoismo?

Detalhe da fachada de um dos templos taoista no complexo de Zhinangong, Taipei. (Foto do autor)

Esse é o tema da postagem de hoje. Em primeiro lugar, uma maneira comum de tratar o tema é situar o taoismo dentre as grandes religiões mundiais, mencionada em qualquer dicionário de religiões ou tratado de história das religiões. A sinóloga Livia Kohn (2001, p. 1) o descreveu como “religião autóctone organizada da China tradicional”. Possivelmente, suas origens remontam a um desenvolvimento filosófico de formas locais de xamanismo, como apontou Toshihiko Izutsu. Quanto à oposição comum entre taoismo filosófico e religioso, outra sinóloga, Isabelle Robinet, considera a distinção insignificante. Além disso, ambas concordam com o fato básico que o taoismo nunca foi uma religião unificada. Em vez disso, consistiu em uma combinação de ensinamentos, que só pode ser compreendida por meio de suas manifestações concretas. E por outro lado, tanto para Robinet, quanto para outro autor, Kristopher Schipper, não se deve confundir o taoismo com a religiosidade popular chinesa. É importante também lembrar, que a noção de religião é eminentemente ocidental, e foi aplicada a aspectos de outras culturas. Em geral, ao definir taoismo como religião, se leva em consideração a existência de templos, de instituições sociais, que contêm uma hierarquia sacerdotal, os aspectos de sua cosmologia que dizem respeito ao sentido da vida, suas concepções sobre a morte e o pós-morte, divindades e outros seres espirituais com os quais se interage, bem como rituais que abordam estas temáticas e tecnologias contemplativas.

No entanto, em função da própria diversidade interna, nem toda escola ou linhagem taoista apresenta essas características. E além disso, há diversos outros saberes e práticas que se desenvolveram no contexto do taoismo e que não seriam descritas adequadamente como propriamente religiosos: artes marciais, práticas de longevidade, os diversos ramos da medicina chinesa, geomancia, caligrafia, pintura, música, astrologia, etc.

Uma outra possibilidade seria descrever o taoismo como uma tradição, inclusive como uma tradição contemplativa, diante da profusão de métodos meditativos centrais para várias de suas linhagens. No entanto, para isso, seria preciso, primeiro, elucidar, que significa tradição. Aqui, refiro-me simplesmente a uma transmissão cultural intergeracional de longa duração. E, no caso do taoismo, especificamente, um produto da civilização chinesa, que se tornou no século XX um patrimônio da humanidade. É importante frisar aqui, que não se trata de um conhecimento ancestral imutável. Seria um erro grave retirar o taoismo – ou qualquer outro fenômeno queiramos chamar de tradição – do fluxo da história. Todo conhecimento cultural vivo é sujeito, por sua própria natureza, à mudança, à releitura e à inovação, mesmo que o passado seja tratado com reverência. Aliás, o que torna algo um clássico é justamente a riqueza de sentido que permite novas releituras. Outro aspecto de igual relevância, é afastar-nos do uso do termo tradição como forma para legitimar o imaginário conservador. Não é o caso de idealizar o passado, na contramão da compreensão aprofundada de suas condições históricas. Uma tradição não é uma essência, mas sim um fluxo, com determinadas características que permitem perceber algumas continuidades em meio às descontinuidades.

Acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.

Que há de fundamental no taoismo? A noção de Tao (道), que aponta discretamente para o grande mistério da vida, com um certo senso de ordem e fluidez, mas que resiste às tentativas de descrevê-lo em palavras e categorizá-lo. Pode apenas ser indicado alusivamente, por exemplo, por meio do símbolo do taiji ☯, a mais sintética imagem do caráter dinâmico, complementar, cíclico de todos os processos da existência. Talvez a mais genial criação da civilização chinesa, a intuição de base que está por trás de inúmeras das suas grandes realizações. Toda a lógica do Yijing ou mesmo dos cinco movimentos, a base da medicina chinesa, derivam dessa primeira intuição.

Respeitando a diversidade de linhagens e escolas, prefiro concluir com algumas ponderações derivadas da minha própria experiência, como estudioso e praticante da escola que mestre Liu Pailin fundou no Brasil, e como discípulo da linhagem Kunlun. No período em que viveu no Brasil, mestre Pailin fez questão de frisar que seus ensinamentos se referiam ao conhecimento da natureza, à compreensão do funcionamento do Céu e da Terra e de suas implicações na vida humana. Transmitiu práticas de longevidade, terapêuticas da medicina chinesa e métodos de meditação que representam uma síntese das várias linhagens que conheceu e praticou. Nesse sentido, o que ofereceu a seus discípulos e discípulas foi o que chamava de um Caminho de Vida, que incluia a dimensão da espiritualidade, mas não à maneira de uma religião formal, nem ao menos do taoismo de tipo sacerdotal e/ou monástico.

Modo de vida taoista: 10. A capacidade de “escutar”

Nessa nova postagem da série modo de vida taoista, o tema é o desenvolvimento da sensibilidade à situação presente e às condições do ambiente circundante. Embora seja uma tradição contemplativa, a prática taoista não deveria nos deixar mais ensimesmadxs. Ao invés disso, se desenvolvemos suavidade e fluidez, semelhantes à da água, tornamo-nos cada vez mais sensíveis e adaptáveis. Os ritmos e fluxos do da natureza ficam evidentes e ressoam no corpo. As situações da vida são respondidas de forma gradualmente menos premeditada. Sendo capazes de uma apreensão intuitiva do momento presente, é possível agir em conformidade com o que a situação pede. E isso gera menos desgaste e demanda menos esforço.

Modo de vida taoista: 9. Não desejar ser o primeiro

Nesta nova postagem sobre modo de vida taoista, o assunto é a terceira virtude descrita por Laozi. Normalmente traduzida como modestia ou humildade, uma tradução mais literal seria não querer ser o primeiro. O ponto central é não nutrir rivalidade, nem competir com outras pessoas. A ideia de concorrência, de vitória, o desejo de superar rivais são alheios ao Caminho. Por isso, muitos sábios taoistas famosos recusaram honrarias, títulos e cargos na administração imperial em sua época. O verdadeiro respeito e a apreciação genuína se comunicam por gestos, de coração a coração. Dispensam excessos de protocolo e polidez artificial, e não estimulam a vaidade.