Medicina Chinesa: 01. que podemos tratar com acupuntura?

A acupuntura é um dos mais conhecidos métodos terapêuticos da medicina tradicional chinesa e faz parte de uma abordagem ampla de cuidado integral. Desde 1979, a Organização Mundial da Saúde publicou uma lista de problemas de saúde tratáveis por acupuntura, que desde então tem sido ampliada por novos estudos na área de saúde. O público em geral, no entanto, ainda não está plenamente informado de todos os seus benefícios. E este é o objetivo da postagem de hoje.

Pintura retratando o canal zuyangming, correspondente ao estômago, data e autor desconhecidos, Welcome Collection Gallery, disponível em Wikimedia Commons.

A acupuntura estimula os mecanismos de autorregulação do nosso próprio corpo, por meio da inserção de pequenas agulhas em localizações precisas, os chamados “pontos de acupuntura” (xuédào 穴道), que devem ser selecionados em conformidade com cada caso. A explicação tradicional para a eficácia das agulhas foi descrita em uma postagem anterior. Tanto o diagnóstico quanto o tratamento da acupuntura baseiam-se em noções da antiga filosofia chinesa, como as polaridades dinâmicas Yin/Yang e os Cinco Movimentos (Metal, Água, Madeira, Fogo e Terra) que compõem todas as coisas. Como suas noções de saúde e doença são diferentes, a acupuntura possa tratar várias doenças definidas pela medicina ocidental, mas o faz com uma perspectiva própria. E isso é importante para a eficácia e profundidade do tratamento. Do contrário, temos apenas um uso “alopático” das agulhas, focado em sintomas, não no equilíbrio sistêmico.

Por exemplo, na versão mais convencional e reducionista da ciência médica moderna, a eficácia da acupuntura, quando aceita, é explicada principalmente em termos de analgesia, ou seja de alívio da dor. Essa é uma explicação inespecífica para tratamentos com o uso de pontos específicos, como se qualquer agulha em qualquer ponto tivesse o mesmo efeito. E deixa de fora vários dos benefícios já conhecidos da acupuntura que não se resumem à ação analgésica local, mas sim a efeitos mais sistêmicos, como pode ser visto pelo relatório de 1996 da Oganização Mundial da Saúde sobre os resultados de estudos controlados demonstrando a eficácia da acupuntura no tratamento de várias doenças e sintomas. Talvez um dos principais obstáculos para uma compreensão mais abrangente dos benefícios da acupuntura é que a medicina chinesa trabalha com uma racionalidade própria, diferente da medicina ocidental convencional, mas igualmente válida.

Apenas para dar uma ideia para nossxs leitorxs não familiariazadas com as classificações diagnósticas da medicina chinesa, segue abaixo a lista de 1979, do que pode ser tratado por acupuntura, usando a terminologia convencional.

  • vias respiratórias superiores: rinite, sinusite, amigdalite agudas; resfriado comum.
  • sistema respiratório: bronquite aguda, asma brônquica.
  • distúrbios oculares: conjuntivite aguda, catarata (sem complicações), retinite, miopia infantil.
  • distúrbios da boca: dor de dente (inclusive pós extração dentária), gengivite, faringite.
  • distúrbios gastrointestinais: espasmos do esôfago, soluços, gastrite, úlcera, colite, desinteria bacteriana, constipação, diarreia.
  • desordens neurológicas e musculoesqueléticas: dor de cabeça, enxaqueca, nevralgia do trigêmeo, paralisia facial em estágio inicial, sequelas de AVC, neuropatias periféricas, sequelas dos estágios iniciais de poliomielite, nevralgia intercostal, enurese noturna, dor lombar, ciática, “ombro congelado”, “cotovelo de tenista”, osteoartrite.

Um documento mais recente da OMS de 1996, baseado em estudos clínicos controlados, resumido nesse link, acrescenta que a acupuntura oferece tratamento eficaz comprovado para as seguintes condições: reações adversas decorrentes de quimio e radioterapia; cólica biliar; depressão; distúrbios do ciclo menstrual; hipertensão e hipotensão arterial; dores no joelhos; má posição fetal; leucopenia; enjoo matinal, náusea e vômito; dor cervical; dores temporomandibulares; periartrite do ombro; dor pós-operatória; cólica renal; derrame; artrite reumatoide; distensões e luxações.

E indica também efeito terapêutico da acupuntura, mas com necessidade de mais pesquisas, para: dor abdominal; acne; dependência química e desintoxicação; dor oncológica; colecistite crônica; diabete mellitus sem dependência de insulina; dor de ouvido; epistaxe; infertilidade feminina; fibromialgia; fascite; gota; herpes zoster; insônia; disfunção sexual masculina não orgânica; neurodermatite; obesidade; ovário policístico; convalescença pós-operatória; síndrome pré-menstrual; prostatite crônica; infecção urinária recorrente; disfunção temporomandibular; colite ulcerativa crônica; cálculos renais e urinários; demência vascular; etc.

Resumindo, como a acupuntura pertence a uma medicina tradicional completa, seu uso adequado pode beneficiar todos os sistemas e funções do corpo, equilibrando seu funcionamento. E além disso, trazendo bem estar, equilíbrio emocional e redução do estresse cotidiano.

O Clássico Interno do Imperador Amarelo: 02. preservar a saúde nas estações do ano

Dando continuidade às postagens sobre os clássicos da medicina chinesa, o tema de hoje é a relação entre o ciclo das estações do ano e os cuidados de saúde. Para os antigos chineses, há uma correspondência entre os cinco movimentos (wǔxíng 五行) e as estações do ano. Isso quer dizer que nessas épocas predomina o que lhe é característico e que, portanto, podem ser mais ou menos propícias para certas atividades.

crédito da imagem: needpix.com, 2019

A primavera corresponde à madeira (mù 木). Em harmonia com isso, o capítulo dois das Questões Simples (素聞) do Clássico Interno do Imperador Amarelo, afirma que esse é “o momento apropriado de nascimento e expansão”. Em uma região de clima temperado, é o momento em que as plantas brotam e tornam a ficar verdes após o frio do inverno. O clássico recomenda dormir e acordar cedo, caminhar ao ar livre e inspirar ar fresco pela manhã, exercitar os músculos e tendões. Ao ficar em desarmonia com o da primavera, o fígado, órgão interno correspondente à madeira, será afetado. E como consequência, pode se manifestar uma doença no verão.

Montanhas no verão, pintura em seda de Qu Ding, acervo do Metropolitan Museum of Art, New York.

O verão corresponde ao fogo (huǒ 火). Por isso, é uma época de florescimento e frutificação, de apogeu do Yang. O clássico também recomenda acordar e dormir cedo, tomar sol, suar para permitir a saída do excesso de calor e não ficar frequentemente com fome. Ao ficar em desarmonia com o do verão, o coração, órgão interno correspondente ao fogo, será afetado. E assim pode surgir uma doença no outono.

Três Plantas do Outono, pintura de Zhou Xian, acervo do Walters Art Museum
Paisagem com figura, pintura de Xugu, acervo do Art Institute of Chicago

O outono corresponde ao metal (jīn 金). Por isso é uma época de amadurecimento e colheita. O clássico recomenda deitar mais cedo e proteger-se do frio, acordar cedo e apreciar o ar outonal, conservar o espírito tranquilo. Ao ficar em desarmonia com o do outono, o pulmão, órgão interno correspondente ao metal, será afetado. E pode surgir uma doença no inverno.

O inverno corresponde à água (shuĭ 水). Num clima temperado como o da China, uma época de congelamento da água, de hibernação dos animais, portanto uma época de recolhimento. O clássico recomenda manter-se aquecido e proteger-se do frio para não perturbar o Yang qì, deitar-se cedo, levantar-se cedo para ter contato com a luz solar, manter o coração em repouso, evitar a transpiração e o consumo e exaustão do Yang. Ao ficar em desarmonia com o do verão, o rim, órgão interno correspondente à água, será afetado. E pode surgir uma doença na primavera.

Ainda que essas observações e instruções tenha sido desenvolvidas na antiguidade chinesa tendo em vista uma região de clima temperado, se observarmos com atenção as transformações das estações em nosso clima tropical, também encontraremos as propriedades específicas dos cinco elementos. Assim como os sábios do passado aplicaram esses conhecimentos para preservar a própria saúde e para ensinar pacientes a prevenir o surgimento de doenças, podemos também fazer o mesmo.

As energias de todas as coisas da terra surgem na primavera, crescem no verão, dão passagem no outono e se ocultam no inverno; são todas geradas pela lei de variação das energias do Yin e do Yang das quatro estações. Dessa forma as energias Yin e Yang das quatro estações são as energias-raiz de surgimento e crescimento de todas as coisas (Questões Simples, capítulo 2).

O Clássico Interno do Imperador Amarelo: 1. a eficácia das agulhas de acupuntura

A postagem de hoje inaugura uma nova série sobre os clássicos da medicina chinesa. Desejo destacar como funciona essa medicina segundo a sua própria racionalidade. Como o método mais emblemático dessa medicina é a acupuntura e o Huangdineijing é o texto clássico fundamental, começaremos por ele. O Clássico Interno do Imperador Amarelo é dividido em dois livros: Questões Simples (素聞) e Eixo Espiritual (靈樞).

Página da edição chinesa do Suwen, que forma parte do Huangdineijing. Acervo da World Digital Library.

Como se sabe, esse clássico é escrito na forma de um diálogo entre o legendário Imperador Amarelo, um dos fundadores míticos da civilização chinesa, e Qibo, seu conselheiro para assuntos de medicina. é um texto que traz tanto os fundamentos filosóficos dessa antiga tradição médica, mundialmente reconhecida, mas também contêm conhecimentos técnicos que de algum modo norteiam a medicina chinesa até hoje. A medicina chinesa foi descrita como uma medicina de equilíbrio, porque a noção de Tao é o ponto de partida para sua compreensão da saúde.

Um aspecto importante presente no primeiro capítulo do Eixo Espiritual (靈樞) é que a eficácia da acupuntura depende do que às vezes se traduz como “sensação de acupuntura”; as expressões em chinês no texto são “chegada do qì” (Qìzhì 氣至) ou “obtenção do qì” (Déqì 得氣). Essa sensação é um indicador que o chegou ao ponto onde a agulha foi inserida e que, se a técnica for usada corretamente, fluirá da forma desejada pelo canal correspondente. O curioso é que não apenas o/a paciente deve sentir um campo de sensações características da ação terapêutica da agulha, descritas na literatura clássica, mas também em pesquisas modernas, em termos de calor, dormência, peso, eletricidade, fluxo, vibração, etc. Mas também, o/a acupunturista experiente deve desenvolver sua sensibilidade para perceber a chegada do e sua manifestação, antes mesmo que o/a paciente lhe comunique sua experiência ou que seu corpo reaja ao estímulo. Classicamente, a sensação de quem manipula a agulha é descrita como semelhante a um peixe que fisga o anzol. Mas para que ocorra essa experiência, o/a acupunturista deve aprender a inserir a agulha e manipulá-la em um estado de serenidade e atenção.

Agulha inserida no ponto Neiguan (PC6), foto do autor.

Em poucas palavras, uma vez que o ponto punturado está ativo, é possível incrementar o afluxo de ali, em doenças caracterizadas por deficiência; ou remover o excesso, seja ele resultante de um bloqueio no fluxo por estagnação, decorrente de um desequilíbrio interno (alimentar, emocional, constitucional), seja da invasão de um fator patogênico externo. O Eixo Espiritual afirma ainda que, quando tonificamos, o/a paciente deve sentir que “ganhou” algo. E, do mesmo modo, quando dispersamos, o/a paciente deve sentir que “perdeu” algo. Ou seja, a tonificação ou dispersão devem produzir sensações perceptíveis.

O Tao e as emoções

Estar vivo é ser capaz de sentir, perceber e tomar decisões. Logo, as emoções são parte integrante da vida. Podemos entendê-las, num sentido prático, como uma disposição para a ação e, num sentido mais psicológico, como as cores da nossa paisagem subjetiva. Para a civilização chinesa clássica, cada conjunto de emoções é expressão do de um dos cinco movimentos (wǔxíng 五行): madeira, fogo, terra, metal, água. Em si, portanto, isso é natural. No entanto, quando as emoções se tornam excessivas na sua intensidade e duração, tirando-nos do nosso eixo e centro, tornam-se para a medicina chinesa um fator patogênico interno, simultaneamente causa e sintoma do desequilíbrio do , que pode ficar estagnado ou fluir em direções contrárias à circulação normal do organismo saudável, além de apresentar condições de excesso ou deficiência, onde deveria haver proporção e equilíbrio dinâmico. No princípio, o desequilíbrio é sutil e relativamente simples de corrigir, mas quando se torna uma condição repetida ou persistente, que segue sem medidas corretivas, pode evoluir para enfermidades graves e difíceis de tratar. Em nossos tempos de incerteza, instabilidade, velocidade e agitação, uma relação sábia com as emoções se torna crucial.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Não é que a agitação e a angústia sejam algo novo, pois o contrário é testemunhado por Laozi, no poema 12 do Dàodéjīng. Mas, como disse em outras postagens, isso chegou a um novo patamar no mundo contemporâneo globalizado. Uma característica das sociedades urbanas contemporâneas é a coexistência paradoxal de um estado de insensibilidade/apatia coletiva e de uma excessiva agitação. Resumindo, é como se o excesso de estímulos sensoriais e exigências de desempenho, sem falar dos medos e angústias coletivas acabassem por nos embrutecer e dessensibilizar. Consequentemente, e como compensação, a busca por sensações cada vez mais intensas, no prazer, no lazer, no entretenimento. Além disso, é claro, também a tendência ao manejo dos estados de humor por meios farmacológicos. Não é casual o aumento das demandas coletivas por intensidade: o aumento estatístico do consumo de substâncias psicoativas legais e ilegais; a mudança na estética dominante na indústria do entretenimento para uma narrativa cada vez mais rápida e para uma expressão mais gráfica/explícita de conteúdos de violência e crueldade; a popularização dos esportes de risco e aventura entre pessoas que tem condições objetivas de vida marcadas pela segurança; o aumento do número de decibéis nos grandes espetáculos musicais; a indústria dos aditivos químicos realçadores de sabor; dos odores artificiais para perfumar corpos e ambientes; as promessas da indústria do sexo de prazeres novos e mais intensos; etc. Um mundo mais vertiginoso e mais intenso. E quando a intensidade se torna insuportável, a demanda por anestesia: analgésicos, reguladores de humor, medicação para dormir.

A alegoria taoista clássica: saboreando o Vinagre.

Um aspecto do caminho taoista como arte de viver, é o governo de si. Isso não tem nenhuma relação com ideias de autocontrole, mas sim, com aprender a favorecer os mecanismos naturais de autorregulação do corpo, manter o coração sereno diante dos acontecimentos e cultivar a simplicidade. Embora se diga que o cultivo é lidar com o mundo real sem agitar o coração, isso não tem nada a ver com insensibilidade ou indiferença. Ao contrário, é desenvolver uma sensibilidade inteligente, que nos permite reagir de forma apropriada ao que as situações da vida demandam. A prontidão para uma ação rápida e eficaz, que não se confunde com uma reação impulsiva. Estar vivo/a é ser capaz de sentir, desfrutar as belezas da vida, sem avidez nem compulsão, comover-se com o sofrimento alheio, mas sem sentimentalismo ou desespero. Daí a alegoria clássica taoista, ainda que um tanto tendenciosa, sobre as três grandes correntes civilizatórias da China clássica: taoismo, budismo e confucionismo, representadas por seus respectivos fundadores. Ao provar o vinagre, apenas Laozi sorri. A vida tem suas características naturais, e isso não é bom nem ruim.

O Qì é a base da vida. Mas o que é Qì?

O fundamento taoista do pensamento chinês que é a base da medicina tradicional e do qìgōng de longevidade é uma filosofia do movimento, da mudança. Como compreensão da vida, e aqui se incluem tanto concepções de natureza como de corpo humano, o conceito de é central. Mas, afinal, o que é ?

detalhe de pintura do acervo temporário do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Uma maneira prática de tratar o assunto é entender o como uma linguagem dos antigos chineses para descrever as qualidades de diferentes fenômenos naturais: um organismo vivo, uma paisagem, um fenômeno climático, um alimento ou planta medicinal, inclusive um corpo humano, uma pessoa, sua condição de saúde ou doença, etc. Não se trata de algo no campo da crença. Não é preciso “acreditar em ” como se fosse algum tipo de entidade metafísica. Embora esse conceito remeta ao aspecto invisível dos fenômenos naturais, que move ou anima, o qì se percebe com os sentidos, é algo que se sente, como qualquer artista marcial, praticante de qìgōng, especialista em fēngshuǐ ou acupunturista pode atestar. De fato, aprender qualquer um desses conhecimentos tradicionais chineses é familiarizar-se na prática com isso.

O pictograma em estilo caligráfico.

O caractere mais frequentemente utilizado para representar (氣), deriva historicamente do caractere vento (風), o que levou alguns estudiosos, especialmente da escola francesa, a descrever o como sopro. Em sua estrutura, é formado pelos caracteres para vapor e arroz, conotando um aspecto sutil do ar e dos alimentos. Há também outro caractere para (炁) que consta dos talismãs taoistas e que, segundo a explicação do mestre Pailin, remete ao aspecto yáng de luminosidade e calor: fogo do Céu. Em geral, o conceito de tem sido traduzido para línguas ocidentais como “energia”, “vitalidade” ou “força vital”, inclusive em traduções conceituadas de textos clássicos chineses, manuais de medicina tradicional e na transmissão oral de muitos mestres chineses.

Especialistas dos Estudos Chineses, como a francesa Elizabeth Rochat de la Valée ou o brasileiro Orley Dulcetti Júnior, apontam que se refere à capacidade de movimento e transformação. Ou seja, é a chave para entender todos os fenômenos naturais da perspectiva chinesa. Apesar de muito usados, termos como energia, vitalidade e força vital são alheios ao pensamento chinês antigo. Derivam de tendências do pensamento científico e filosófico europeu e foram utilizados desde as primeiras traduções dos clássicos chineses para línguas ocidentais, ainda no século XVIII. Esses termos podem ser úteis por serem familiares, mas trazem consigo armadilhas, pois nos levam para o terreno da crença ou da tentativa de demonstração da existência objetiva de uma força ou substância, às vezes até apelando para uma confirmação por parte da ciência experimental ocidental.

Mestre Liu Pailin era bastante taxativo ao afirmar que os métodos taoistas que ensinava era baseados em um conhecimento da natureza, a essência da civilização chinesa, sem uma conotação mística ou religiosa. Desde a perspectiva da tradição taoista, uma boa maneira de compreender o que é é pela experiência pessoal com os treinamentos de qìgōng, tàijíquán, dǎoyǐn, meditação, etc. Praticando, desenvolvemos uma nova sensibilidade corporal e aprendemos a perceber o por meio de certas sensações descritas pela tradição (frio, calor, peso, formigamento, corrente elétrica, fluxo, vibração) que surgem espontaneamente durante os treinamentos. Além disso, os estudos de antropologia dos sentidos e antropologia da corporeidade podem ser ferramentas úteis para entender esses fenômenos e nos familiarizar com esse importante conceito chinês.

Em contato com a natureza

Na postagem de hoje, o assunto é o valor do contato com a natureza. Para a tradição taoista esse é um tema ambíguo. Primeiro, o ser humano não é está isolado do mundo natural, nem o mundo humano é o oposto do mundo natural. Nossos corpos são constantemente atravessados pelo do Céu e da Terra, simplesmente porque respiramos, comemos e habitamos uma determinada paisagem. Fazemos parte do mundo, inevitavelmente. Essa condição oferece riscos e oportunidades: se compreendemos os ciclos da natureza, podemos nos beneficiar deles; se não os compreendemos a natureza é implacável e indiferente. Por isso, o poema 5 do Dàodéjīng (道德經) diz: “O Céu e a terra não são bondosos/ Tratam os dez mil seres como cães de palha”. A tradição oral também diz: “o Céu tem 6 ladrões” (que roubam nosso e, consequentemente, nossa saúde). Possivelmente isso se refere aos 6 fatores patogênicos externos descritos pela medicina chinesa: Vento, Calor, Frio, Umidade, Secura e Calor de Verão. Resumindo, as condições ambientais a que nossos corpos são expostos, no caso climáticas, podem ser motivo de adoecimento, especialmente quando são extremas ou quando nossos corpos já estão debilitados.

Imortais caminhando sobre as águas, detalhe de pintura do acervo temporário do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

Por outro lado, uma particularidade do ser humano é , literalmente, situar-se entre o Céu e a Terra. O eixo vertical de nossa postura alinha nossa cabeça com o Céu e os pés com a Terra. Existe o potencial para a realizar um Tàijí no nosso centro de gravidade, a união do qì celeste e terrestre no ser humano. Esse potencial é encarnado na figura lendária dos imortais, retratados na pintura acima e objeto de uma postagem anterior. Na transmissão do mestre Pailin, como tive a oportunidade de ouvir diretamente do dele, o potencial humano para interagir com o qì da natureza de forma mais consciente, por meio da prática do qìgōng (氣功,炁功), está relacionado ao seu incrível cérebro e suas mãos maravilhosas.

Conhecendo os segredos da prática, podemos nos conectar a fontes naturais de puro e abundante, para suprir a nossa vida e eliminar o turvo, patogênico que se acumula no corpo, como resultado da poluição e outras toxinas presentes no ar, na água e nos alimentos, mas também acumulado em função de nossos próprios desequilíbrios emocionais cotidianos. Daí, a recomendação de treinar diariamente, em um local com ar puro, árvores, luz solar, água abundante, de preferência nos horários yáng (mais precisamente da madrugada até, no máximo as 11 horas da manhã).

Pratique ao ar livre em condições climáticas favoráveis, ou em um ambiente protegido mas ventilado, em outras circunstâncias. E, se vive em uma grande cidade, escape de vez em quando da poluição e da agitação, visitando um local com uma bela paisagem natural, silêncio e de boa qualidade. Desde a antiguidade, praticantes taoistas buscaram a quietude de montanhas e florestas para praticar o cultivo. As circunstâncias históricas mudaram muito, mas ainda é sábio fazer o mesmo, se desejamos aprofundar nossa prática.

Como o cultivo do Tao pode ajudar na superação de traumas físicos e emocionais?

Na postagem de hoje, gostaria de relacionar a prática do Tao ao seu potencial para recuperação da saúde e da sanidade, particularmente na superação de situações traumáticas. Como bem sabe quem se dedica à prática de qigong, taiji e medicina chinesa, ou ao estudo da filosofia que fundamenta essas práticas, vida é fluxo. As capacidades de movimento, de transformação e de adaptar-se às circunstâncias do presente, são as características dos processos naturais de manutenção da vida em um organismo sadio, mas também de uma subjetividade sã. Portanto, a fluidez é uma das características do Tao, 0 Caminho Natural. No nível do organismo, o livre fluxo de e sangue, combinado ao equilíbrio qualitativo e quantitativo entre as diferentes substâncias vitais é a base da saúde. No nível da consciência, a serenidade, o coração tranquilo, sensível e empático, mas livre de emoções excessivamente intensas e duradouras, é a base da sanidade. Conforme o pensamento chinês, não se trata de duas coisas separadas, mas de aspectos interdependentes de uma mesma totalidade, que se influenciam mutuamente.

Mas há momentos em que eventos abruptos da vida abalam nossas frágeis ilhas de sanidade: situações de dor intensa ou de adoecimento grave; ameaças à nossa vida e integridade; conflitos sérios em relacionamentos significativos; adversidades que abalam as fundações de qualquer senso de segurança. Em momentos assim, perdemos a capacidade de fluir e agir espontaneamente, seja por nos agarrarmos à nossa dor, seja por repetirmos, fora de contexto e de proporção, atitudes que já foram momentaneamente uma tentativa válida de nos proteger e sobreviver a uma tragédia. Perdemos contato com os processos dinâmicos da vida, nossa sensibilidade ao presente e aos outros seres fica comprometida. Um corpo enrijecido por uma lesão ou sua memória dolorosa, um coração fechado. E mais dor e confusão, por repetição de padrões disfuncionais. E por isso nos distanciamos do fluxo espontâneo da vida.

detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais. Acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

E como o cultivo do Tao pode nos ajudar a recuperar a fluidez, a capacidade natural de movimento e transformação? A primeira chave é a capacidade de relaxar. No estado de relaxamento, a capacidade de autorregulação do corpo é potencializada. As feridas cicatrizam mais rápido, o coração reaprende a ser leve. Como vimos em postagens anteriores, o relaxamento é um benefício tanto dos exercícios suaves do qigong, do taijiquan e práticas afins, quanto da meditação sentada, desde que praticados com constância e com orientação adequada. A segunda chave é o movimento harmônico – no sentido de rítmico, contínuo e fluido – que promove o alinhamento e o alongamento do corpo, ao mesmo tempo que incrementa a circulação de e sangue, restaurando seu fluxo correto. Para a mtc, um traumatismo físico, por exemplo, resultante de uma queda ou pancada, pode resultar em uma “síndrome de obstrução dolorosa”, um bloqueio que causa dor e limitação de movimento. Os exercícios previnem e tratam esses bloqueios, mas em casos mais graves, podemos usar todo o repertório da medicina chinesa – acupuntura, moxa, ventosas, ervas – para potencializar a recuperação. A terceira chave é habituar-se, por meio da meditação, a um estado mental ao mesmo tempo alerta e descontraído. É nesse estado que aprendemos a soltar a dor, a mágoa e as memórias de eventos perturbadores, reconectando-nos com a vivacidade do presente, pleno de novas possibilidades.

Essa explicação só aponta a direção, mas não substitui a prática com um/a professor/a qualificado/a. Somente com a experiência é possível saborear os benefícios maravilhosos.

Medicina chinesa e treinamentos taoistas: 1. aproximações e diferenças

Os Seis Centros (Liùshénqiào 六神竅), diagrama utilizada pelo mestre Liu Pailin em suas aulas de Daoyin e meditação. 

A postagem dessa semana inaugura uma nova série que discute as relações  entre medicina chinesa e treinamentos taoistas. É sabido que o fundamento filosófico e cosmológico da medicina chinesa pode ser corretamente descrito como taoista: a filosofia yīn/yáng e a teoria dos cinco movimentos são seus pilares. E além disso, conceitos, teorias e outros elementos da medicina tradicional informam tanto treinamentos para longevidade quanto métodos de meditação taoista. No entanto, não é necessário ser taoista para praticar medicina chinesa, nem tampouco praticar o taoismo implica um conhecimento aprofundado de medicina.

Hoje gostaria de responder a pergunta de um aluno de acupuntura: qual a relação entre o sistema de canais, colaterais (jīngluò 經絡) e os pontos de acupuntura (xué 穴) da medicina chinesa, e os centros (qiào 竅), campos de elixir (dāntián 丹田) e círculos/circulações (xuán 旋) dos treinamentos taoistas?

Em primeiro lugar, há certa correspondência entre o trajeto de algumas circulações utilizadas em treinamentos de qìgōng (e meditação) e canais extraordinários, como por exemplo o circuito formato pelo Vaso da Concepção e o Vaso Governador, no treinamento do “Pequeno Universo” ou “Circulação dos Seis Centros” (representados na ilustração acima). Grosso modo, Renmai e Dumai correspondem aos caminhos do Fogo e do Vento da alquimia interna taoista. Contudo, a circulação dos seis centros não segue pela superfície da cabeça, acompanhando os pontos do trajeto do Vaso Governador na linha mediana do crânio, em vez disso conecta vários centros importantes no interior da cabeça, o que poderíamos supor que corresponde a um ramo interno do Dumai.

Comparação semelhante pode ser feita entre os pontos de acupuntura e os centros. Existe uma correspondência entre algumas localizações importantes, mas não são idênticas. Por exemplo, o ponto VC1 ( Huìyīn 會陰), situado no períneo, corresponde ao centro Yīnqiào (陰竅), no entanto, este segundo se situa nos genitais internos. O ponto VG4 (mìngmén 命門) corresponde ao centro dos rins (shènqiào 腎竅), mas enquanto o ponto de acupuntura se situa na coluna vertebral, o centro se situa no interior do corpo, entre os rins e à frente da coluna. Resumindo, em geral os centros utilizados em meditação e qìgōng estão situados mais internamente no corpo, além do alcance do agulhamento, ao contrário dos pontos de acupuntura.

Além disso, há os campos de elixir, que são regiões maiores, que abrangem vários centros e pontos de acupuntura. A transmissão que recebi fala em três:  superior, médio e inferior. Estão situados, respectivamente, na cabeça, no peito e no ventre. Possuem funções e  localizações distintas do Triplo Aquecedor (Sānjiāo 三焦), víscera da medicina chinesa sem correspondência com as estruturas identificadas pela anatomia ocidental, mas que, entre outros aspectos, representa três conjuntos de funções fisiológicas: respiração/circulação, digestão, excreção.

Ou seja, é preciso prudência ao estudar os dois campos de conhecimento tradicional chinês, prestando atenção a aproximações e distinções. Minha recomendação é evitar o realismo ingênuo. Não se trata de descobrir uma verdade objetiva separada de construções simbólicas culturalmente situadas e de experiências corpóreas. Nenhum dos conceitos mencionados aqui refere-se a um objeto físico que pode ser apontado, mas compõem uma tecnologia cultural eficaz que permite prevenir e tratar doenças, promover a saúde e a longevidade, acessar experiências meditativas e desenvolver um certo tipo de consciência corporal.

Isso fica evidente quando constatamos as diferenças de terminologia, descrição e interpretação das várias linhagens taoistas, mas também quando fazemos estudos comparativos do que poderia ser chamado de “psicofisiologia do corpo sutil” conforme elaborada também em outras tradições como o yoga e o tantra, tanto hindu quanto budista, só para citar uns exemplos.

Quem supõe que os centros e campos de elixir descritos pelos taoistas sejam a mesma coisa que os chakras das tradições indianas, descobrirá, com surpresa, que suas formas, cores, localizações, funções e quantidades divergem enormemente. Mais interessante ainda, nem ao menos no interior de uma mesma tradição há esse consenso, exceto quando foi forçado em certas circunstâncias históricas.
A esse respeito, achei particularmente instrutivo o artigo de Christopher Wallis, the real story on the Chakras. Ele demonstra que, até o final do século XIX, não havia ainda um sistema unificado de chakras, mas sim várias versões, dependendo da escola. Foi a preservação e tradução de uma obra indiana para línguas ocidentais que fez o sistema de Sete chakras a concepção oficial e canônica do yoga. E afirma que os chakras tem função prescritiva e não descritiva, são um método ióguico e meditativo para organizar a circulação do prana no corpo de certa maneira, não a descrição de uma realidade a priori.
E por que me refiro a esse assunto em um blog sobre taoismo? Há uma analogia entre os diversos sistemas dentro uma mesma tradição e na comparação entre tradições distintas,  mas não há uma correspondência coerente. Podemos aprender a mesma lição proposta por Wallis a respeito também dos conceitos do taoismo e da medicina chinesa. São métodos para induzir certas experiências, uma linguagem eficaz, resultante da experiência acumulada de incontáveis gerações de praticantes, mas não são fatos objetivos a priori que devam ser debatidos dogmaticamente.

Medicina Tradicional Chinesa: 7. Dietoterapia


Na postagem de hoje da série medicina chinesa, o assunto é  alimentação. Congruente com outras medicinas tradicionais, os alimentos tem tanto uso preventivo e terapêutico, quanto os maus hábitos alimentares podem ser um fator de adoecimento. Podemos portanto selecionar, preparar e saborear a comida, prestando atenção nas recomendações da medicina chinesa. Assim combinamos o prazer de comer à boa saúde e à longevidade. Os princípios são diferentes da nutrologia e da medicina convencional ocidentais, pois não se trata de calorias nem propriamente da composição química dos alimentos, mas sim das qualidades do seu .  No nível mais elementar, o princípio é nutrir-se de alimentos diversificados das cinco cores e cinco sabores, correspondentes aos cinco movimentos (wǔxíng 五行): metal 金, água 水, madeira 木, fogo 火 e terra 土. Os alimentos também são classificados em função de sua natureza yin ou yang, fria, quente, neutra, etc.

Considerando o uso dos cinco sabores, no Huangdineijing (黃帝內經), o capítulo 4 do Suwen (素問) afirma: “A nutrição dos cinco órgãos deriva dos cinco sabores (picante, doce, ácido, amargo e salgado, que podem ser percebidos como gosto da comida), porém quando os cinco gostos são utilizados em excesso, eles lesam os cinco órgãos”. […] E mais adiante, após explicar as consequências da alimentação desequilibrada, conclui: “Por isso, se os cinco sabores forem adaptados a uma condição harmoniosa sem ingestão excessiva, o corpo todo irá receber ampla fonte de nutrição, e os tendões, ossos, energias, sangue e pele, irão se conservar em condição forte e normal. Portanto, aquele que for bom em equilibrar os cinco sabores, poderá gozar de longa vida”. Em níveis mais elaborados, determinados alimentos podem ser recomendados ou evitados, em função da constituição de 1 paciente, ou a prevenção/tratamento de uma patologia específica.

No entanto, o mundo contemporâneo trouxe outras componentes à relação entre alimentação e saúde, devido ao uso maciço de pesticidas na produção agrícola, bem como de hormônios e medicamentos na produção pecuária, que representam riscos à saúde frequentemente subestimados. Isso sem falar dos alimentos processados, repletos de aditivos químicos para evitar que estraguem antes de serem consumidos ou para tornar sua cor, sabor e aparência mais agradáveis. O desafio agora é que, além de combinar harmoniosamente alimentos diversificados, fonte da vida pós-natal, é preciso saber evitar aqueles alimentos que podem nos intoxicar e adoecer.

Medicina Tradicional Chinesa: 5. Ventosaterapia

Na postagem de hoje da série medicina tradicional chinesa, abordaremos mais uma das terapêuticas clássicas, o uso das ventosas. Ainda que seu uso na China seja atestado desde a antiguidade, não é uma exclusividade da medicina chinesa, sendo conhecido também na antiga medicina grega, na medicina medieval europeia e inclusive aplicada no interior do Brasil na primeira metade do século XX, como tive a grata surpresa de descobrir.  Basicamente, é utilizado um copo, de argila, bambu, chifre, vidro, ou mais, recentemente, de acrílico. Utilizando-se o calor do fogo, o vapor da água fervente ou uma bomba a vácuo, o ar é retirado do copo de ventosa.

ventosa de fogo
ventosa de fogo

Isso cria uma pressão negativa na região do corpo em que ela for aplicada. No contexto da medicina tradicional chinesa, as  ventosas são utilizadas para promover o fluxo de e Sangue no jingluo. Promovem também a remoção de fatores patogênicos externos. Podem ser combinadas com outros métodos como guasha, sangria e acupuntura, segundo as características do caso clínico. Por estimularem a circulação, tem um efeito desintoxicante. A pressão negativa também descomprime os tecidos e, especialmente no caso da ventosa deslizante, relaxa a musculatura. A cor da pele após a aplicação pode ser examinada para fins diagnósticos: basicamente, quanto mais escura maior o nível de estagnação.

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ventosas de acrílico, a vácuo.

Além disso, variações na coloração e na textura da pele também oferecem indicações úteis, da natureza do processo de adoecimento e da resposta ao tratamento. Por fim, a ventosaterapia é também uma técnica prazerosa e relaxante, que prepara o corpo para receber outros tratamentos numa mesma sessão.