O Tao e a ação na vida

Existe um motivo para que os antigos textos taoistas tenham atravessado tantas gerações, é a sabedoria que eles contêm. Há algo a aprender com as experiências desses seres humanos extraordinários que habitaram épocas, paisagens e mundos culturais tão distantes dos nossos. Os clássicos taoistas preservaram uma compreensão profunda sobre o viver, nascida da capacidade de ficar em silêncio e observar a natureza, nela incluída a humanidade. Observando as mudanças e seus ciclos, presentes em todos os níveis, sintetizaram seu entendimento refinado em símbolos, como o do Taichi (Tàijí ), ou os hexagramas do Yìjīng, ou em versos, como os do Dàodéjīng, porque o que havia a dizer sobre a vida não cabe muito bem na linguagem linear do intelecto. A reflexão de hoje trata do que podemos aprender com o Tao sobre a ação.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.
Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

E, ao pensar em ação numa abordagem taoista, haveria duas direções a seguir: os princípios que orientam a conduta e a importância da espontaneidade. Falar em conduta poderia nos levar a pensar em termos de moral, e até de uma moral religiosa, visto que o taoismo tem sido objeto de estudo no campo da religião comparada, da história e da antropologia da religião. Mas sem ir nessa direção, acho mais interessante apontar para o essencial. A inspiração que encontro nos clássicos como orientação para a conduta são três princípios que vimos em postagens anteriores, e descritos por Laozi como três tesouros: amorosidade, simplicidade e não querer ser o primeiro sobre a terra. Esses princípios dão o tom de uma atitude existencial, mas não equivalem a regras ou mandamentos. Inclusive, o apelo ao moralismo é sintoma da perda de contato com as qualidades naturais do Tao, como podemos ver no poema 18 do Dàodéjing: “Quando se perde o Grande Caminho/ Surgem a bondade e a justiça/ Quando aparece a inteligência / Surge a grande hipocrisia / Quando os seis parentes não estão em paz / Surgem o amor filial e o amor paternal / Quando há desordem e confusão no reino/ Surge o patriota”.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

O Huáinánzĭ, que também está entre os mais importantes clássicos taoistas, ilustra a atitude taoista marcada por um certo relativismo moral, mas que não se confunde com cinismo. Pelo contrário, reflete um senso de adequação à situação, que depende de uma sensibilidade contextual , que oferece uma alternativa ao moralismo. Para dar uma ideia do que se trata, alguns fragmentos: “Certo e errado são situacionais. Na situação apropriada, nada é errado. Sem a situação apropriada, nada é certo”. Ou ainda: “O que é certo em um caso não é certo em outro, o que é errado em um caso não é errado em outro”. E mais adiante, na mesma sessão, conclui: “Portanto, líderes esclarecidos não impõem leis inúteis ou ouvem palavras ineficazes”.

Por fim, o tema da espontaneidade é central para o taoismo, sendo essa uma das características dos seres iluminados. Mas não se trata de espontaneidade, como frequentemente entendemos, no sentido de seguir os próprios impulsos sem discernimento, de fazer o que der na telha. A espontaneidade do Tao, é não ação, no sentido que a ação brota do vazio, da serenidade do coração e da receptividade que responde perfeitamente à necessidade da situação. Acontece assim, porque naquele instante não há uma identidade pessoal que protagoniza a ação como marca da sua presença no mundo. Não é um eu que age, há apenas o agir em harmonia com as circunstâncias, por isso, parece que nada foi feito, ou que ninguém agiu, mas ainda assim, ocorreu o que era necessário e eficaz. Quem sabe cada 1 de nós pôde experimentar isso, ainda que brevemente, mesmo uma única vez. Que isso possa nos inspirar a praticar formas de esquecermos de nós mesmos/as, para o bem de todos/as nós.

Modo de vida taoista: 10. A capacidade de “escutar”

Nessa nova postagem da série modo de vida taoista, o tema é o desenvolvimento da sensibilidade à situação presente e às condições do ambiente circundante. Embora seja uma tradição contemplativa, a prática taoista não deveria nos deixar mais ensimesmadxs. Ao invés disso, se desenvolvemos suavidade e fluidez, semelhantes à da água, tornamo-nos cada vez mais sensíveis e adaptáveis. Os ritmos e fluxos do da natureza ficam evidentes e ressoam no corpo. As situações da vida são respondidas de forma gradualmente menos premeditada. Sendo capazes de uma apreensão intuitiva do momento presente, é possível agir em conformidade com o que a situação pede. E isso gera menos desgaste e demanda menos esforço.

Compreender o Tao: 4. o sentido da não ação

Na postagem de  hoje da série Compreender o Tao, o tema é a noção de não ação (wúwéi 無為), sujeita a vários mal entendidos. Não significa não fazer nada, nem omitir-se de agir, muito menos algo que se pode praticar intencionalmente, como quem diz: “agora, praticarei a não ação”. É ação espontânea, não deliberada, é agir sem identificar-se com a ação, ou com seu resultado. Não vem acompanhada do sentimento de vitória ou arrependimento: “eu fiz isso”.  Por isso se diz: “o verdadeiro Tao requer de nós que lidemos com o mundo real, mas ao fazê-lo o coração não se agita”. Ação espontânea é fazer o que é necessário segundo a situação, levando em consideração o maior benefício possível para todos os seres envolvidos. Em poucas palavras, embora possamos viver momentos ocasionais assim, é algo que só pode ser feito com frequência por alguém que, ao menos em alguma medida, realizou o Tao, ou qualquer outro nome que seja dado ao estado natural. Uma das marcas da não ação é a experiência de ausência de esforço e deliberação. A solução adequada é encontrada sem alarde e luta, independente de cálculo e estratagema. É como o sol que brilha ou a chuva que cai, sem fazer distinções.

montanha Taiwan
Vista das montanhas a uma hora de viagem de Taipei, setembro de 2017, foto do autor.