Clássicos: 6. ainda sobre o I Ching como oráculo

A postagem de hoje dá seguimento ao tema do uso oracular do Clássico das Mutações (易經), discutido previamente. O recurso à divinação é muito comum em sociedades tradicionais de todas partes do mundo, mas tal prática também é popular nos ambientes urbanos das sociedades globalizadas contemporâneas.

Pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

Dessa vez, convido a uma reflexão sobre o uso correto do oráculo. No contexto desse blog, a expressão “uso correto” equivale a “em consonância com o Tao”. Com isso, quero dizer que, idealmente, a relação que estabelecemos com o Clássico das Mutações deveria apoiar o cultivo de um modo de vida em sintonia com os ritmos de yin e yang na natureza, com uma combinação equilibrada de movimento e quietude na vida diária, e com uma atitude existencial pautada na amorosidade, na simplicidade e na ausência do “desejo de ser o primeiro”. (Essas são as três virtudes taoistas descritas por Laozi no Daodejing – 道德經).

Sugiro então alguns critérios para o uso oracular do Clássico. Em primeiro lugar, temos o critério das circunstâncias para uma consulta. Afinal, quando faz sentido consultar um oráculo? A resposta é simples: apenas quando se trata de uma questão crucial, uma decisão a tomar que implica sérias consequências e que é suficientemente complexa para gerar dúvidas sobre como prosseguir. Portanto, uma primeira advertência no uso salutar do oráculo é não fazer perguntas desnecessárias, quer dizer, relativas a assuntos banais ou situações nas quais já sabemos o que fazer.

Na melhor das hipóteses, um oráculo – ou qualquer outra forma de aconselhamento – deveria ser uma ferramenta auxiliar para o desenvolvimento da nossa própria sabedoria. Utilizo aqui o termo sabedoria como um saber viver, não como sinônimo de intelecto nem de astúcia. Saber viver no sentido de sensibilidade às qualidades das situações vividas. Sabedoria é uma forma de apreciação intuitiva dos processos da vida e suas nuances. O Clássico das Mutações pode ser uma ferramenta para o cultivo da sabedoria quando entendemos a sua linguagem, baseada na filosofia yin-yang, e o utilizamos com moderação, apenas quando estritamente necessário. Quando pessoas muito confusas consultam oráculos com frequência, é comum que se tornem fascinadas por eles, dependentes de suas respostas e que escutem apenas o que desejam e não o que necessitariam ouvir.

Sendo assim, uma segunda recomendação no uso do oráculo, seja como especialista, seja como consulente, é: aprenda a serenar o coração. Um coração agitado só pode fazer perguntas insensatas e obter respostas truncadas. Consequentemente, alguma estabilidade meditativa, alguma capacidade de esvaziar-se de expectativas e aceitar a vida como ela se apresenta é um requisito para o bom uso dessa ferramenta. É nesse estado que faz a pergunta, identifica-se os hexagramas e linhas que surgem como resposta, e contempla-se, com coragem e sinceridade, o seu sentido.

Quanto às respostas dadas pelo oráculo, contêm três dimensões: uma descrição da situação, um possível prognóstico de seu desenvolvimento caso as coisas sigam na direção atual, um conselho sobre a atitude de uma pessoa sábia diante da situação-problema.


Clássicos: 4. o I Ching como oráculo

Nesta quarta postagem da série Clássicos, o assunto é o uso oracular do  Clássico das Mutações (Yìjīng 易經). Dentre os vários métodos para consulta (utilizando varetas, moedas, pedras preciosas ou cartas), o oráculo tradicional das três moedas é bastante popular por  combinar praticidade e profundidade, além de ter sido divulgado de forma acessível em várias das traduções do clássico para línguas ocidentais. Como opera o oráculo? Com uma pergunta clara e sucinta, que permita uma resposta mais elaborada que sim ou não, é possível obter do oráculo uma descrição da situação e orientações para lidar com um desafio em particular.  As três moedas são lançadas seis vezes, uma vez para cada linha que, calculada de baixo para cima, forma um hexagrama. Caso haja dentre elas linhas móveis, forma-se também o “hexagrama futuro”. E consulta-se os textos correspondentes.moedas chinesas.jpg

No célebre prefácio de C.G. Jung à tradução do clássico para o alemão por Richard Wilhelm,  o psicólogo suíço utiliza o seu argumento sobre a sincronicidade para explicar o funcionamento do oráculo. Haveria uma coincidência significativa entre uma situação do mundo e o símbolo apresentado, expressão do insconsciente coletivo. Essa relação seria de natureza acausal, mas coerente. Obviamente, essa é uma explicação de tipo psicológico para um fenômeno atestado em inúmeras civilizações. E permite entender a lógica  de diversos oráculos, não somente do Yìjīng. O propósito adequado de um oráculo é dar inteligibilidade a situações desafiadoras. Não substitui nem o discernimento nem a responsabilidade pessoal de quem o consulta, mas oferece elementos para contemplar intuitivamente um dilema antes de tomar uma decisão e agir.