Princípios do Qigong

Se preferir, assista ao vídeo desta postagem no nosso canal no Youtube.

Introdução

Neste artigo, compartilho os conteúdos da masterclass online “Princípios do Qigong: o segredo da prátida bem sucedida”. Nossa conversa hoje é sobre princípios gerais, não sobre as instruções para praticar uma sequência específica. Primeiro, explicarei o que é Qigong. Em seguida, desnvolverei os seguintes aspectos:

  • Como e de quem aprender?
  • Quando, o que e com que frequência praticar?
  • Onde praticar?
  • Postura, alinhamento e ritmo corporal
  • A atitude mental

Depois, falarei dos benefícios do Qigong. E, no final, contarei um pouco da minha história, para você entender como aprendi o que compartilho aqui.

Que é Qigong?

Qìgōng (pronuncie Tchi kung em português) é um termo moderno geral para toda prática que trabalha, treina ou cultiva (gōng 功) o Qi. Geralmente traduzido como energia, Qì (氣 ou 炁) é nossa potência de vida e movimento. Existem diversas escolas, de origem taoista, budista, confucionista, médica e marcial, etc. Os exercícios mais antigos provém da alquimia interna taoista e da medicina tradicional e já eram praticados antes da era cristã, como podemos constatar pelos achados arqueológicos de Mawangdui, datados da dinastia Han (200 a.C.-220d.C.), e de Guodian, datados do período dos Reinos Combatentes (475-221 a.C). Há referências a eles também em textos importantes como o Clássico do Caminho e da Virtude (Dàodéjīng) e no  Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng). Respectivamente, o primeiro é o mais famoso texto filosófico taoista e o segundo o mais famoso texto antigo de medicina chinesa.

Os dois pictogramas para Qì: à esquerda o fogo original do Céu representa o Qi pré-natal. À direita, a combinação de vapor e arroz represetna o Qi pós-natal, que provém da respiração e dos alimentos.

Como e de quem aprender?

O primeiro princípio do Qigong é saber de quem aprender. Uma pessoa é confiável porque está qualificada para ensinar. Ela recebeu a transmissão de uma linhagem autêntica. E praticou e vivenciou os benefícios dos métodos que ensina. Além disso, conhece os princípios do Qigong. Sabe explicá-los e tem paciência, e tempo, para ensinar e tirar dúvidas. Aprendemos por imitação, repetição, treinando junto, escutando as instruções e corrigindo os erros conforme as orientações que recebemos.

O professor ou professora ideal, no nível mais elevado, é um mestre ou mestra que realizou o Tao, alguém de vasto conhecimento, compaixão e sabedoria. Estas pessoas são muito raras. Então, de modo mais realista, basta um instrutor ou instrutora experiente, com permissão de seu mestre ou mestra para ensinar.

Atenção! O conhecimento nunca está completo nos livros. Sempre há detalhes fundamentais que só aprendemos diretamente com uma pessoa mais experiente.

No Qigong, além das posturas e movimentos visíveis, há também a intenção. Com ela, direcionamos a circulação de Qi. Assim, também precisamos de explicações sobre o aspecto invisível da prática.

Quando e com que frequência praticar?

O segundo princípio do Qigong diz respeito ao momento da prática. Preste atenção nos horários do dia e nas estações do ano para escolher o que praticar. Por exemplo, exercícios respiratórios, só da madrugada até 11:00 da manhã. Evite exercícios pesados no meio do dia. Não pratique sob as árvores à noite. Evite praticar durante tempestades. E leve em consideração seu estado de saúde e o momento do seu ciclo de vida. Por exemplo, alguns treinamentos são desaconselhados durante o período menstrual e a gestação, outros são mais importantes quando estamos convalescentes, ou quando queremos prevenir determinadas doenças, e assim por diante.

Treine regularmente, de preferência todos os dias. Pois não há progresso sem regularidade. Após 49 a 100 dias de treinamento contínuo, você começa a perceber diferenças na sua vitalidade.

Se você conhece vários tipos de treinamentos, então pode organizar a prática de duas maneiras, dependendo do horário.

De manhã, siga esta sequência:

  • meditação,
  • respiração de limpeza,
  • qigong estático,
  • qigong de movimento
  • e arte marcial.

À noite, inverta a sequência, retirando a respiração.

Onde praticar?

O terceiro princípio do Qigong diz respeito ao local da prática. Há duas opções básicas: ao ar livre ou dentro de casa.

Se você quer treinar em contato com a natureza, evite expor-se a condições climáticas extremas: calor, frio, umidade, vento e secura excessivos. Por exemplo, não se exponha ao sol forte, à chuva, ao vento. E evite pisar descalço num terreno frio ou molhado.

Além disso, escolha um ambiente natural com Qi abundante e de boa qualidade: ar puro, água límpida, árvores, montanhas, clima ameno. Se isto não é possível, onde você mora, recomenda-se viajar periodicamente para ter contato com a natureza. Os antigos taoistas viajavam para florestas e montanhas remotas para obter o ambiente com o fengshui mais propício para treinar.

Quando você pratica na cidade, ao ar livre, é melhor praticar em parques e jardins, mas ao abrigo do sol forte, do vento e da chuva. Evite ambientes movimentados, barulhentos e poluídos.

Em casa, pratique em um cômodo limpo, iluminado e com ventilação, mas sem se expor diretamente a correntes de ar.

Mas qualquer que seja o ambiente, é importante ter suficiente conforto térmico, acústico, luminoso e segurança, para que possamos relaxar durante a prática, temporariamente sem desconfortos, preocupações e interrupções.

O Corpo

O quarto princípio do Qigong diz respeito ao corpo: sua postura, alinhamento e ritmo.

A prática do Qigong de longa vida visa promover a circulação do Qi correto no nosso corpo, a eliminação do Qi patogênico e a captação do Qi límpido da natureza. E para isso, é importante manter o corpo alinhado e relaxado. Pois o alinhamento favorece a ligação com o Qi do Céu e da Terra. Observe, também, as Seis harmonias entre as articulações: ombros-quadris, cotovelos-joelhos, pulsos-tornozelos. Por sua vez, o relaxamento favorece a livre circulação de Qi e Sangue no corpo. Mas, relaxar não é desabar, a postura continua estável e alinhada.

No Qigong taoista de longevidade, o tônus muscular vem da postura e dos movimentos, não contraímos os músculos com força, deliberadamente. Por isto, é importante usar apenas a força necessária.

Além disso, praticamos com atenção à nossa consciência corporal. Perceba  a distribuição do peso do corpo: nos dois pés, predominante em um dos pés ou apenas em um só pé. Faça alongamentos suaves, respeitando os limites do corpo. A repetição suave e consciente desenvolve e mantém a flexibilidade.

Já a respiração é natural, pelo nariz, movendo a barriga como um bebê. Exceto em exercícios respiratórios com instruções específicas. Nào confunda Qigong com um sinônimo de exercício respiratório.

O ritmo dos movimentos é lento, contínuo e fluido. Por que mover-se “em câmera lenta”? Por vários motivos! Porque isso favorece a circulação equilibrada de Qi e Sangue. Remove bloqueios. Previne lesões (causadas por movimentos bruscos combinados à má postura). Acalma a mente e desenvolve a consciência corporal.

E, por fim, o Qi se manifesta como sensação corporal (calor, formigamento, eletricidade, frio, magnetismo, pulsação, etc). O conhecimento do Qigong não é apenas conceitual. É baseado na experiência e sentido no corpo, não um um mero conceito ou crença..

A mente

O quinto princípio do Qigong diz respeito ao papel da mente. Um dito clássico da medicina chinesa afirma que a Intenção guia o Qi e o Qi guia o Sangue. Portanto, Qigong não é apenas uma ginástica, o efeito depende de nossa consciência presente. Os movimentos são acompanhados por um direcionamento da consciência.

Qigong se pratica com atenção, não é um exercício mecânico, pois precisa de consciência para ser totalmente eficaz. Por isto mesmo, além de prática para saúde é também meditação em movimento.

Antes de começar, fazemos uma preparação interior, tomando consciência do eixo e do centro do corpo. Após concluir, fazemos uma pausa, levando a atenção para o centro do corpo.

Repare que uma sessão de prática reproduz a antiga cosmologia chinesa: partimos do Wújí (無極), para o Tàijí (太極), para as “dez mil coisas”; ao final retornamos ao Tàijí e finalmente ao Wújí. Ou seja, do Vazio, para a unidade dinâmica dos opostos, que se manifesta de mil formas diferentes, e de volta ao Vazio. Logo, esta sequência implica diferentes formas de posicionar nossa consciência durante a prática, alternando entre ficar focado/a e ficar vazio/a.

Outra filosofia do exercício

O Qigong taoista tem outra filosofia do exercício. A prática correta é relaxante e revigorante, gera calma e bem estar. Podemos suar levemente, o coração pode bater um pouco mais forte. Mas não precisamos sentir dor, exaustão, nem ficar ofegantes após os exercícios.

Aqui, a instrução chave é: “sem forçar”. Respeitamos nossos limites corporais e psicológicos. À medida que praticamos com paciência e nos familiarizamos com os exercícios, o corpo vai ficar mais forte, vigoroso e flexível, a mente vai ficar mais calma. Com o tempo, aprendemos a diminuir a tensão física e mental habitual, relaxando o esforço desnecessário.

Praticando assim, podemos vivenciar experiências de fluxo: uma sensação de unidade entre corpo, consciência e ação sem esforço.

Benefícios do Qigong

Ao entrevistar dezenas de praticantes no meu trabalho de campo, foram frequentes os relatos de melhoras nas condições de saúde, inclusive em doenças crônicas graves (Bizerril, 2007).

Quando praticamos regularmente, percebemos um aumento de vitalidade, melhora na digestão, na respiração, no ciclo menstrual das mulheres, no equilíbrio, flexibilidade, coordenação motora. Constatei isso também por experiência própria.

Um efeito ainda mais sutil é sobre nossos estados de humor e paisagem mental. Com o tempo, a mente fica mais calma. As emoções ficam mais estáveis e equilibradas. Até as dificuldades e problemas da vida abalam menos.

Devido ao coração mais sereno e ao corpo mais relaxado, reagimos de forma mais adequada e proporcional às situações desafiadoras. Pois aprendemos a usar apenas a força necessária, com mais sensibilidade ao contexto e à ação necessária.

Qigong e filosofia taoista

A  prática bem orientada do Qigong tem também profundas consequências existenciais. E pode produzir mudanças de estilo e de ritmo de vida. Depois de praticar por algum tempo, começamos a sentir que a pressa, a agitação e o estresse habitual não são benéficos nem necessários.

E tem também consequências filosóficas. Pois a experiência corporal permite compreender conceitos filosóficos difíceis, como Caminho Natural (Dào 道), Taichi (Tàijí 太極), não ação (wúwéi 無為), vacuidade (wú 無, xū 虛), Qi (氣)… Isto acontece por meio do processo que a antropologia da corporeidade chama de “corporificação” (embodiment).

É assim porque os conceitos da filosofia taoista são indicadores de experiências. A naturalidade, a integração dos contrários, a fluidez, a ação sem esforço ou identidade, podem ser vivenciadas por meio de prática corporal regular.

Como tudo começou?

Mestre Liu Pailin (劉百齡 Liú Bǎilíng) (Tianjin,1907- São Paulo, 2000), pioneiro da divulgação do Taichi, do taoismo e da medicina chinesa no Brasil

Em 1998, parti para São Paulo, em trabalho de campo antropológico para minha tese de doutorado. Lá conheci o mestre Liu Pai Lin, em seus últimos anos de vida. Utilizando um metodologia participativa, aprendi e pratiquei intensivamente o Taichi Pai Lin, entrevistei e convivi com praticantes de todos os níveis, observei o cotidiano e anotei, como faz um etnógrafo em pesquisa de campo.

O encontro com o mestre foi tão impactante que, ao voltar para casa, continuei a praticar e nunca mais parei. Havia algo diferente naquele senhor de pouco mais de 90 anos. Uma alegria de viver, uma energia que parecia inesgotável, a velhice sem sinais de decrepitude, os olhos brilhantes de uma inteligência viva, uma grande flexibilidade de corpo e mente. E, pela primeira vez na vida, aprendi a importância de relaxar e fluir, em vez de usar a força de vontade e lutar.

Quem sou eu?

Defendi minha tese de doutorado, O Retorno à Raiz: uma linhagem taoista no Brasil, em janeiro de 2001. No período de 2001 a 2018, publiquei artigos, capítulos de livro e o livro da tese, sobre a tradição taoista no Brasil. Iniciei carreira como professor universitário e pesquidador, função que exerci até julho de 2017.

Paralelamente a isso, passei anos praticando diariamente, seguindo a orientação dos mestres, e sob supervisão de professores/as. Aprofundei minha compreensão do Qigong, Taijiquan, Espada Taiji, Baguazhang, Daoyin, meditação taoista, medicina chinesa e filosofia taoista. Em 2016, tornei-me instrutor certificado de práticas taoistas. Em 2015, viajei a Taiwan pela primeira vez e tornei-me discípulo da linhagem taoista Kunlun Xianzong. Fiz outras viagens para visitar meu professor de meditação taoista desta linhagem e continuar aprofundando a minha prática. Tornei-me também acupunturista. Após 17 anos de carreira acadêmica e cerca de 20 anos de estudos acadêmicos e prática pessoal da tradição taoista, decidi me dedicar a ensinar estes conhecimentos tradicionais chineses.

O resultado disso é o projeto Qigong Taoista, presente nas redes sociais e neste sítio web.

Retorno à Primavera com uma semana de aulas abertas gratuitas

A primavera chegou, trazendo o impulso de renovação do elemento Madeira. Começamos um novo ciclo, aproveitando o movimento do Qì na natureza. E para comemorar, na semana de 4 a 8 de outubro, teremos aulas abertas gratuitas em todas as nossas turmas regulares. Veja o calendário acima e inscreva-se nas aulas de seu interesse na página de aulas no nosso site!

Para as aulas online, enviaremos às pessoas inscritas um link para o encontro virtual no Zoom.

Para as aulas presenciais, estaremos ao ar livre, no Espaço Mandala do Parque Olhos d’Água, mas seguiremos todas as medidas de segurança habituais: uso obrigatório de máscara e distanciamento social. Traga sua própria garrafa de água e frasco de álcool 70. Por favor, faça sua inscrição para estabelecermos um canal de comunicação eficaz, em caso de algum imprevisto, como chuva.

Nova Fase: cursos online

Vida é movimento, praticar o Tao é aprender a se adaptar às circunstâncias. Em tempos de mudança e incerteza, é nossa estabilidade interna que nos permite fazer silêncio para estar sensível aos acontecimentos e nos posicionar de forma harmônica. Após tantas postagens sobre o mundo contemporâneo, surgiu a necessidade de adaptar, mais uma vez, as possibilidades de compartilhar os conhecimentos taoistas.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Em tempos de recomendações de isolamento social, pânico coletivo diante de uma pandemia global, ansiedade, incerteza e solidão, nada como o antídoto da meditação. Ela acalma o coração e recarrega nossas energias dispersas. Com coração sereno e vitalidade plena, é mais fácil ser compatível, ter empatia e cuidado.

Atendendo à sugestão do público interessado, além das aulas e cursos presenciais, agora teremos também aulas e cursos online. Isso permitirá tornar os conhecimentos taoistas acessíveis a um público de outras cidades. Nosso primeiro projeto, dentro dessa iniciativa, é o curso online de introdução à meditação taoista. Os conteúdos serão basicamente os mesmos do curso presencial, apenas em um outro formato. Para inscrever-se basta clicar nesse link.

O desafio nos cursos e aulas online édisponibilizar material adequado à/ao praticante contemporânea/o. E, ao mesmo tempo, respeitar a profundidade da transmissão oral tradicional.

Durante todo o período da pandemia, teremos também aulas online regulares de práticas taoistas: Daoyin, qigong e meditação.

Se quiser participar, preencha o formulário de inscrição abaixo:

O Tao como vida em relação

“Tao é Taichi, e Taichi é harmonia de yin e yang”. Essa afirmação tradicional tem uma consequência no entendimento do caminho taoista como a unidade de uma compreensão sobre a vida e de uma arte de viver. A vida é percebida como um jogo dinâmico de aspectos complementares, opostos, alternados, sempre organizados em relações. E o bem viver seria um exercício de sensibilidade e ajuste às condições e relações do momento, visando o equilíbrio, a fluidez e a ação eficaz com o mínimo de desgaste. Compreendendo corretamente o funcionamento da natureza, ou do Céu e da Terra, e desenvolvendo pela prática uma sintonia com esse funcionamento, a vida fica mais simples. Assim, “filosofia” e “treinamento” taoista não são coisas separadas, mas os dois lados do caminho. Em uma época de tantas experiências de solidão, isolamento e excessivo individualismo, talvez os antigos sábios chineses tenham algo a nos ensinar…

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Certamente, há todo uma dimensão social nessas experiências, uma desagregação do espaço público, o desmantelamento de políticas de bem estar e seguridade social, associados a uma desregulamentação que favorece o mercado e prejudica as vidas das pessoas comuns, a ausência de projetos para o bem comum, tudo isso associado a uma excessiva individualização nos ambientes urbanos globalizados. Então, a solidão está associada uma instabilidade nas condições sociais, a um enfraquecimento da profundidade e diversidade de vínculos significativos e, ao mesmo tempo, a um aumento da importância individual e da necessidade de visibilidade e popularidade.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

No entanto, se voltamos à concepção taoista sobre a vida, nunca estamos de fato separados/as do mundo nem das demais pessoas. Estudando a filosofia taoista e a medicina tradicional chinesa, podemos nos dar conta disso em um nível intelectual. Praticando meditação e qigong podemos nos dar conta disso pela experiência vivida, de conexão com o mundo à nossa volta e seus habitantes. Um corpo vivo é feito dos mesmos materiais que a natureza. E é sua permeabilidade ao ar, à água, aos alimentos, ao que torna a vida possível. A metáfora ocidental fundadora da identidade pessoal – eu como algo dentro, enquanto o mundo está fora – induz a um erro de percepção, com consequências existenciais. O mundo não está fora de nós, nós sempre estivemos dentro do mundo. E os seres humanos vivem graças às relações: não teríamos chegado à idade adulta sem cuidados, ajuda e aprendizagem oferecida por outras pessoas; a maioria de nós não poderia sequer sobreviver sem o trabalho e os conhecimentos de outras pessoas. Resumindo, assim como não poderemos viver se destruirmos o ambiente natural, a vida também não é possível sem solidariedade e cuidado mútuo. Ou até é possível, mas às custas da nossa sanidade e até mesmo de nossa humanidade.

Certamente direitos e liberdades individuais são um ganho, mas se tornam uma maldição quando não vem acompanhados de responsabilidades coletivas e respeito aos mesmos direitos e liberdades das demais pessoas. A convivência íntima se torna uma tirania e as relações sociais se tornam formas de exploração e opressão.

O que aprendi de meus mestres é que o cuidado de si, o cultivo da vitalidade e da serenidade, a conquista da saúde e da longevidade, o despertar da sabedoria, é parte do processo de aprender a cuidar dos/as outros/as. É porque temos equilíbrio que podemos ser uma presença benéfica. Só tem sentido uma vida longa se com ela podemos beneficiar nossas comunidades e partilhar conhecimentos e experiência acumulada.

O Tao e a exaustão contemporânea

Na postagem de hoje, damos continuidade ao diálogo entre a tradição taoista e o mundo contemporâneo. Já há algumas décadas o estresse e as doenças dele decorrentes foram consideradas um dos grandes problemas mundiais de saúde pública nas grandes cidades. Mais recentemente, a Organização Mundial da Saúde lançou um alerta sobre os danos causados pelo estresse no ambiente de trabalho. Não é que a tensão e a exaustão fossem desconhecidas de nossos ancestrais. Em sua análise sobre a origem das doenças, o excesso de trabalho foi considerado pela medicina tradicional chinesa como um fator de adoecimento, por desgastar os recursos do organismo, esgotando precocemente o e o jīng. Quem deseja viver muito deveria buscar um equilíbrio entre atividade e repouso, não simplesmente entre trabalho e lazer. Essa advertência é uma aplicação elementar da filosofia yīn-yáng ao manejo da saúde e o cultivo da vida. Para que haja equilíbrio, onde há movimento precisa haver também quietude, em uma saudável alternância, um tàijí ☯.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016

No entanto, em nossos tempos de aceleração constante, de movimento desenfreado, essa questão se tornou mais aparente e urgente. Hoje em dia, são muitos os apelos para a corrida desenfreada: incontáveis estímulos, tarefas, conexões, informações, atividades, desejos de consumo, imperativos da sobrevivência. Agitadxs e nervosxs, acabamos ficando exaustxs, por excesso de trabalho, mas também na tentativa de aliviar a tensão, nos momentos de lazer. Relaxar, uma resposta natural do organismo, que pode ocorrer periodicamente a qualquer momento, tornou-se um luxo, algo que necessita de todo um aparato técnico para ser obtida por alguns instantes. Uma civilização do excesso. Mas onde queremos chegar, correndo assim? Adoecemos e envelhecemos precocemente, antes de poder desfrutar dos resultados de nossos esforços. Como já dizia, repetidas vezes, o mestre Pailin: “pessoas de meia idade, andem devagar” (a caminho do cemitério)!

A população urbana tem desaprendido o valor do silêncio, do repouso, da contemplação. A vida contemporânea é pautada por um verdadeiro horror à quietude, ao espaço vazio, à pausa. E não é simplesmente insensatez individual, mas uma insanidade coletiva, sistêmica. É um imperativo dessa entidade metafísica insaciável, o Mercado: trabalhe, produza, enriqueça, lucre. Mas é também um hábito profundamente entranhado em nossos corpos. Mesmo quando deixamos o ambiente de trabalho, seguimos em uma atividade incessante, nem que seja entreter-se na tela de um dispositivo eletrônico. E assim avançamos, dia a dia, à beira do colapso. Não são apenas trabalhadores e trabalhadores exploradxs que vivem assim, mas também seus patrões. De fato, é preciso estar numa posição muito privilegiada no mundo profissional para poder recusar trabalho, estabelecer limites, desfrutar de horas suficientes de descanso e lazer. Não é uma questão apenas de discernimento individual e sabedoria, mas de condições sociais objetivas.

O filósofo Byung-Chul Han (1959-)

O filósofo Byung-Chul Han descreve a situação atual em seu livro “Sociedade do Cansaço“. Vivemos em uma sociedade do desempenho, formada por “empresários de si mesmos”(p.23), individualmente responsáveis por seu próprio sucesso ou fracasso, que naufragam na depressão quando não conseguem cumprir a obrigação de ter sucesso. Essa exigência constante de sucesso, visibilidade, produtividade é que nos leva à exaustão. O excesso exaustivo de desempenho tornou-se sinônimo de investir na própria carreira e até na própria vida, uma forma de autoexploração. Daí a epidemia de depressão, como “cansaço de fazer e de poder”(p.29), numa sociedade em que é preciso poder tudo. O excesso não está somente no trabalho, mas também nos estímulos, informações e desejos. Daí, uma atenção dispersa, incapaz de contemplar, que se entendia com facilidade e odeia o tédio. Han faz um elogio à contemplação profunda e ao lento, que embora não se refira às práticas taoistas e sua arte da existência, bem que podem nos servir aqui: “Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. […] No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas” (p. 36).

Detalhe de pintura da exposição temporária “imortais”, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Séculos antes da crise civilizatória atual, a tradição taoista já havia descoberto o valor da contemplação, cultivada na imobilidade do corpo por meio da meditação, e nos movimentos suaves e lentos das técnicas que hoje chamamos de qìgōng e tàijíquán, mas cujos princípios são muito mais antigos que esses nomes modernos. Silêncio e quietude, não como conceitos abstratos, mas como experiências saboreadas com o corpo. A serenidade não só como aspecto de um caminho contemplativo, se preferirem espiritual, mas como parte integrante do cultivo da vida, da boa saúde, aqui compreendida como equilíbrio dinâmico, não como justificativa para a obsessão pela boa forma.

O Qì é a base da vida. Mas o que é Qì?

O fundamento taoista do pensamento chinês que é a base da medicina tradicional e do qìgōng de longevidade é uma filosofia do movimento, da mudança. Como compreensão da vida, e aqui se incluem tanto concepções de natureza como de corpo humano, o conceito de é central. Mas, afinal, o que é ?

detalhe de pintura do acervo temporário do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Uma maneira prática de tratar o assunto é entender o como uma linguagem dos antigos chineses para descrever as qualidades de diferentes fenômenos naturais: um organismo vivo, uma paisagem, um fenômeno climático, um alimento ou planta medicinal, inclusive um corpo humano, uma pessoa, sua condição de saúde ou doença, etc. Não se trata de algo no campo da crença. Não é preciso “acreditar em ” como se fosse algum tipo de entidade metafísica. Embora esse conceito remeta ao aspecto invisível dos fenômenos naturais, que move ou anima, o qì se percebe com os sentidos, é algo que se sente, como qualquer artista marcial, praticante de qìgōng, especialista em fēngshuǐ ou acupunturista pode atestar. De fato, aprender qualquer um desses conhecimentos tradicionais chineses é familiarizar-se na prática com isso.

O pictograma em estilo caligráfico.

O caractere mais frequentemente utilizado para representar (氣), deriva historicamente do caractere vento (風), o que levou alguns estudiosos, especialmente da escola francesa, a descrever o como sopro. Em sua estrutura, é formado pelos caracteres para vapor e arroz, conotando um aspecto sutil do ar e dos alimentos. Há também outro caractere para (炁) que consta dos talismãs taoistas e que, segundo a explicação do mestre Pailin, remete ao aspecto yáng de luminosidade e calor: fogo do Céu. Em geral, o conceito de tem sido traduzido para línguas ocidentais como “energia”, “vitalidade” ou “força vital”, inclusive em traduções conceituadas de textos clássicos chineses, manuais de medicina tradicional e na transmissão oral de muitos mestres chineses.

Especialistas dos Estudos Chineses, como a francesa Elizabeth Rochat de la Valée ou o brasileiro Orley Dulcetti Júnior, apontam que se refere à capacidade de movimento e transformação. Ou seja, é a chave para entender todos os fenômenos naturais da perspectiva chinesa. Apesar de muito usados, termos como energia, vitalidade e força vital são alheios ao pensamento chinês antigo. Derivam de tendências do pensamento científico e filosófico europeu e foram utilizados desde as primeiras traduções dos clássicos chineses para línguas ocidentais, ainda no século XVIII. Esses termos podem ser úteis por serem familiares, mas trazem consigo armadilhas, pois nos levam para o terreno da crença ou da tentativa de demonstração da existência objetiva de uma força ou substância, às vezes até apelando para uma confirmação por parte da ciência experimental ocidental.

Mestre Liu Pailin era bastante taxativo ao afirmar que os métodos taoistas que ensinava era baseados em um conhecimento da natureza, a essência da civilização chinesa, sem uma conotação mística ou religiosa. Desde a perspectiva da tradição taoista, uma boa maneira de compreender o que é é pela experiência pessoal com os treinamentos de qìgōng, tàijíquán, dǎoyǐn, meditação, etc. Praticando, desenvolvemos uma nova sensibilidade corporal e aprendemos a perceber o por meio de certas sensações descritas pela tradição (frio, calor, peso, formigamento, corrente elétrica, fluxo, vibração) que surgem espontaneamente durante os treinamentos. Além disso, os estudos de antropologia dos sentidos e antropologia da corporeidade podem ser ferramentas úteis para entender esses fenômenos e nos familiarizar com esse importante conceito chinês.

Em contato com a natureza

Na postagem de hoje, o assunto é o valor do contato com a natureza. Para a tradição taoista esse é um tema ambíguo. Primeiro, o ser humano não é está isolado do mundo natural, nem o mundo humano é o oposto do mundo natural. Nossos corpos são constantemente atravessados pelo do Céu e da Terra, simplesmente porque respiramos, comemos e habitamos uma determinada paisagem. Fazemos parte do mundo, inevitavelmente. Essa condição oferece riscos e oportunidades: se compreendemos os ciclos da natureza, podemos nos beneficiar deles; se não os compreendemos a natureza é implacável e indiferente. Por isso, o poema 5 do Dàodéjīng (道德經) diz: “O Céu e a terra não são bondosos/ Tratam os dez mil seres como cães de palha”. A tradição oral também diz: “o Céu tem 6 ladrões” (que roubam nosso e, consequentemente, nossa saúde). Possivelmente isso se refere aos 6 fatores patogênicos externos descritos pela medicina chinesa: Vento, Calor, Frio, Umidade, Secura e Calor de Verão. Resumindo, as condições ambientais a que nossos corpos são expostos, no caso climáticas, podem ser motivo de adoecimento, especialmente quando são extremas ou quando nossos corpos já estão debilitados.

Imortais caminhando sobre as águas, detalhe de pintura do acervo temporário do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

Por outro lado, uma particularidade do ser humano é , literalmente, situar-se entre o Céu e a Terra. O eixo vertical de nossa postura alinha nossa cabeça com o Céu e os pés com a Terra. Existe o potencial para a realizar um Tàijí no nosso centro de gravidade, a união do qì celeste e terrestre no ser humano. Esse potencial é encarnado na figura lendária dos imortais, retratados na pintura acima e objeto de uma postagem anterior. Na transmissão do mestre Pailin, como tive a oportunidade de ouvir diretamente do dele, o potencial humano para interagir com o qì da natureza de forma mais consciente, por meio da prática do qìgōng (氣功,炁功), está relacionado ao seu incrível cérebro e suas mãos maravilhosas.

Conhecendo os segredos da prática, podemos nos conectar a fontes naturais de puro e abundante, para suprir a nossa vida e eliminar o turvo, patogênico que se acumula no corpo, como resultado da poluição e outras toxinas presentes no ar, na água e nos alimentos, mas também acumulado em função de nossos próprios desequilíbrios emocionais cotidianos. Daí, a recomendação de treinar diariamente, em um local com ar puro, árvores, luz solar, água abundante, de preferência nos horários yáng (mais precisamente da madrugada até, no máximo as 11 horas da manhã).

Pratique ao ar livre em condições climáticas favoráveis, ou em um ambiente protegido mas ventilado, em outras circunstâncias. E, se vive em uma grande cidade, escape de vez em quando da poluição e da agitação, visitando um local com uma bela paisagem natural, silêncio e de boa qualidade. Desde a antiguidade, praticantes taoistas buscaram a quietude de montanhas e florestas para praticar o cultivo. As circunstâncias históricas mudaram muito, mas ainda é sábio fazer o mesmo, se desejamos aprofundar nossa prática.

Como o cultivo do Tao pode ajudar na superação de traumas físicos e emocionais?

Na postagem de hoje, gostaria de relacionar a prática do Tao ao seu potencial para recuperação da saúde e da sanidade, particularmente na superação de situações traumáticas. Como bem sabe quem se dedica à prática de qigong, taiji e medicina chinesa, ou ao estudo da filosofia que fundamenta essas práticas, vida é fluxo. As capacidades de movimento, de transformação e de adaptar-se às circunstâncias do presente, são as características dos processos naturais de manutenção da vida em um organismo sadio, mas também de uma subjetividade sã. Portanto, a fluidez é uma das características do Tao, 0 Caminho Natural. No nível do organismo, o livre fluxo de e sangue, combinado ao equilíbrio qualitativo e quantitativo entre as diferentes substâncias vitais é a base da saúde. No nível da consciência, a serenidade, o coração tranquilo, sensível e empático, mas livre de emoções excessivamente intensas e duradouras, é a base da sanidade. Conforme o pensamento chinês, não se trata de duas coisas separadas, mas de aspectos interdependentes de uma mesma totalidade, que se influenciam mutuamente.

Mas há momentos em que eventos abruptos da vida abalam nossas frágeis ilhas de sanidade: situações de dor intensa ou de adoecimento grave; ameaças à nossa vida e integridade; conflitos sérios em relacionamentos significativos; adversidades que abalam as fundações de qualquer senso de segurança. Em momentos assim, perdemos a capacidade de fluir e agir espontaneamente, seja por nos agarrarmos à nossa dor, seja por repetirmos, fora de contexto e de proporção, atitudes que já foram momentaneamente uma tentativa válida de nos proteger e sobreviver a uma tragédia. Perdemos contato com os processos dinâmicos da vida, nossa sensibilidade ao presente e aos outros seres fica comprometida. Um corpo enrijecido por uma lesão ou sua memória dolorosa, um coração fechado. E mais dor e confusão, por repetição de padrões disfuncionais. E por isso nos distanciamos do fluxo espontâneo da vida.

detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais. Acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

E como o cultivo do Tao pode nos ajudar a recuperar a fluidez, a capacidade natural de movimento e transformação? A primeira chave é a capacidade de relaxar. No estado de relaxamento, a capacidade de autorregulação do corpo é potencializada. As feridas cicatrizam mais rápido, o coração reaprende a ser leve. Como vimos em postagens anteriores, o relaxamento é um benefício tanto dos exercícios suaves do qigong, do taijiquan e práticas afins, quanto da meditação sentada, desde que praticados com constância e com orientação adequada. A segunda chave é o movimento harmônico – no sentido de rítmico, contínuo e fluido – que promove o alinhamento e o alongamento do corpo, ao mesmo tempo que incrementa a circulação de e sangue, restaurando seu fluxo correto. Para a mtc, um traumatismo físico, por exemplo, resultante de uma queda ou pancada, pode resultar em uma “síndrome de obstrução dolorosa”, um bloqueio que causa dor e limitação de movimento. Os exercícios previnem e tratam esses bloqueios, mas em casos mais graves, podemos usar todo o repertório da medicina chinesa – acupuntura, moxa, ventosas, ervas – para potencializar a recuperação. A terceira chave é habituar-se, por meio da meditação, a um estado mental ao mesmo tempo alerta e descontraído. É nesse estado que aprendemos a soltar a dor, a mágoa e as memórias de eventos perturbadores, reconectando-nos com a vivacidade do presente, pleno de novas possibilidades.

Essa explicação só aponta a direção, mas não substitui a prática com um/a professor/a qualificado/a. Somente com a experiência é possível saborear os benefícios maravilhosos.

Benefícios da prática em detalhes: 5. Mente calma e atenta

Na postagem de hoje sobre os benefícios da prática em detalhes, o assunto é a sua dimensão meditativa que, entre outros aspectos, tem efeitos na saúde cerebral e psicológica. Treinar taijiquan (e outros exercícios análogos, como qigong), além dos benefícios para a saúde descritos nas postagens anteriores, é também uma maneira dinâmica de cultivar uma qualidade meditativa por meio do movimento circular, lento e rítmico, a atenção total ao momento presente. Além disso, a respiração abdominal profunda propicia um aumento do relaxamento e do equilíbrio emocional. Utilizando os termos mais tradicionais para descrever a prática, o taijiquan e exercícios com princípios similares permitem cultivar ao mesmo tempo movimento e serenidade, equilibrando yin e yang. Cultivar e equilibrar o , alinhar a postura, manter o corpo forte e flexível, tudo isso contribui para uma sensação de bem-estar e estabilidade existencial.

Embora, ao falar em meditação em uma tradição de origem asiática, a primeira imagem a surgir na imaginação do público não especializado, com certa razão, é de alguém sentado no chão de pernas cruzadas, ao se comparar budismo e taoismo, observamos também que há métodos de meditação que utilizam posturas deitadas, de pé e mesmo em movimento, como a meditação andando budista, ou os exercícios com movimentos suaves desenvolvidos no contexto taoista. Inclusive há métodos para praticantes mais experientes, que visam manter a consciência meditativa durante todas as atividades cotidianas, contrastando cada vez menos a sessão formal de meditação e o viver.

No entanto, para iniciantes, o melhor é ter um momento específico e regular para desenvolver o hábito de estar presente no próprio corpo e completamente atentx à atividade que realiza naquele momento. Isso é particularmente precioso nas sociedades contemporâneas, cujo estilo de vida predominante, com suas intermináveis solicitações externas e distrações, forma pessoas cronicamente inquietas e distraídas. A incapacidade de relaxar, fazer silêncio e manter o foco sem tensão são problemas cada vez mais comuns nas grandes cidades. E uma boa parte das doenças crônicas contemporâneas tem como raiz o estresse. Considerando que o taijiquan (e similares) é uma alternativa não medicamentosa, livre de efeitos colaterais, simples e barata para os males do estresse atual, já dá uma ideia do valor desse verdadeiro patrimônio cultural da humanidade.

Pesquisas científicas nas áreas de saúde tanto revolucionaram a compreensão das relações entre mente e cérebro, quanto demonstraram os benefícios da prática para a saúde. Mais uma vez, refiro-me às contribuições do Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard para detalhar alguns desses aspectos. Em primeiro lugar, é importante mencionar a hipótese da neuroplasticidade: conforme o conhecimento atual das neurociências, sabe-se que novas células cerebrais crescem a vida toda e que nossos hábitos e desafios de vida constantemente remodelam as conexões cerebrais. Algumas pesquisas na área citadas por esses autores, indicam que exercícios psicossomáticos têm um efeito na saúde cerebral e não só nas demais capacidades físicas mencionadas em postagens anteriores, como equilíbrio, força, flexibilidade e coordenação motora, mas também em funções cognitivas como percepção, memória, atenção e no equilíbrio emocional. Particularmente, o taijiquan pode ser um importante recurso para preservar nossas faculdades físicas e mentais enquanto envelhecemos. As pesquisas em neurociência indicam que a prática regular de exercícios que estimulem corretamente o cérebro com novas aprendizagens – como tocar um instrumento musical, falar um novo idioma, fazer taijiquan ou dançar – favorecem o crescimento de novas células cerebrais, novas conexões neurais e a produção de neurotransmissores e neurorreceptores. E consequentemente podem ser uma ótima forma de manter a saúde cerebral por toda a vida. Citando vários estudos sobre os benefícios do taijiquan sobre a função cognitiva, os mesmo autores concluíram o seguinte: “O impacto do taiji sobre a função cognitiva pode ser atribuído, em parte aos seus efeitos sobre o condicionamento físico. […] No entanto, e de particular relevância para o taiji, estudos recentes indicam que os benefícios do exercício para a função cognitiva não se devem unicamente à aptidão cardiovascular, mas também à aptidão motora, que inclui equilíbrio, velocidade, coordenação, agilidade e força”(Wayne, Fuerst, 2016, p. 222). Outro ponto é que o exercício moderado parece ter um efeito maior de proteção contra perdas nas funções cognitivas, inclusive contra Alzheimer, do que exercícios extenuantes. No caso do taiji, uma vantagem adicional é a redução do estresse e a angústia, bem como o aumento da capacidade de lidar com situações potencialmente estressantes. E ainda, o aspecto imaginativo da prática tem um efeito cerebral complementar ao aspecto mais físico, com importantes efeitos sobre o cérebro e sobre o desempenho corporal. Acrescento a isso, que o conhecimento neurofisiológico acerca da meditação permite afirmar que sua prática regular beneficia as funções cognitivas, inclusive alterando a estrutura cerebral, e reduz o estresse.

Por fim, os autores concluem que, além dos aspectos citados acima, os benefícios do taiji decorrem também do fato que a prática coletiva permite aprender novas habilidades, participar de atividades de lazer e estabelecer vínculos sociais, tudo isso contribuindo para prevenir e retardar perdas da função cognitiva devido ao envelhecimento.

Benefícios da prática em detalhes: 4. respirar melhor

Na postagem de hoje dessa série, o tema é a respiração. Respirar faz parte do fluir fundamental da vida, como tantos outros ritmos e pulsações indispensáveis à existência corporal, expressões da alternância de yin e yang no nosso microcosmo pessoal. A qualidade da respiração está diretamente relacionada à saúde e disposição vital, consequentemente à longevidade, mas também ao nosso equilíbrio emocional. Um respiração curta, entrecortada e superficial está associada não apenas a baixa vitalidade e mesmo a certos processos de adoecimento, como também correspondente a estados de agitação mental e angústia.

Ainda que, nas linhagens taoistas que pratico, a transmissão oral não descreve muitas formas de qigong e o próprio taijiquan como “exercícios respiratórios”, pois o cultivo do qi nem sempre está associado à troca gasosa, ambos têm um efeito benéfico sobre a respiração, por desenvolverem o hábito da respiração abdominal lenta, o que afeta positivamente a capacidade respiratória, a saúde cardiovascular, a regulação do sistema nervoso e o refinamento da percepção. Além disso, do ponto de vista tradicional, o fluxo harmônico do beneficia a circulação do sangue e propicia a autoregulação de todos os sistemas do corpo.

Referindo-me mais uma vez às pesquisas médicas sobre respiração e os benefícios do taijiquan e práticas análogas (como qigong), o Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard faz relações entre capacidade e saúde respiratória e expectativa de vida, bem como ressalta a diminuição potencial da função respiratória devido ao envelhecimento. Isso resulta de alterações na estrutura da caixa torácica, na diminuição da elasticidade do pulmões, ambos fatores contribuindo para redução da qualidade da troca gasosa. E, em todas as idades, alterações emocionais e estresse podem impactar negativamente na qualidade da respiração.

Além disso, a mesma fonte explica de que modo esses exercícios chineses podem ser benéficos para a respiração. O aspecto fundamental é que o padrão respiratório que se transforma em hábito por meio da prática regular desses exercícios é a respiração abdominal (com foco no dantian inferior) lenta e suave, favorecida pelo ritmo dos exercícios executados com consciência e pelo uso da imaginação associada à respiração. Além da troca gasosa, a respiração também massageia os órgãos internos e equilibra o sistema nervoso e consequentemente as emoções. Pesquisas médicas citadas pelos autores sugerem que a prática de Taiji melhora e retarda perdas da função respiratória, inclusive sendo benéfica no tratamento de doenças respiratórias como asma e doença pulmonar obstrutiva crônica. O aspecto meditativo da prática é eficiente na redução do estresse, no aumento do relaxamento e em promover melhorias no humor.