Princípios do Qigong

Se preferir, assista ao vídeo desta postagem no nosso canal no Youtube.

Introdução

Neste artigo, compartilho os conteúdos da masterclass online “Princípios do Qigong: o segredo da prátida bem sucedida”. Nossa conversa hoje é sobre princípios gerais, não sobre as instruções para praticar uma sequência específica. Primeiro, explicarei o que é Qigong. Em seguida, desnvolverei os seguintes aspectos:

  • Como e de quem aprender?
  • Quando, o que e com que frequência praticar?
  • Onde praticar?
  • Postura, alinhamento e ritmo corporal
  • A atitude mental

Depois, falarei dos benefícios do Qigong. E, no final, contarei um pouco da minha história, para você entender como aprendi o que compartilho aqui.

Que é Qigong?

Qìgōng (pronuncie Tchi kung em português) é um termo moderno geral para toda prática que trabalha, treina ou cultiva (gōng 功) o Qi. Geralmente traduzido como energia, Qì (氣 ou 炁) é nossa potência de vida e movimento. Existem diversas escolas, de origem taoista, budista, confucionista, médica e marcial, etc. Os exercícios mais antigos provém da alquimia interna taoista e da medicina tradicional e já eram praticados antes da era cristã, como podemos constatar pelos achados arqueológicos de Mawangdui, datados da dinastia Han (200 a.C.-220d.C.), e de Guodian, datados do período dos Reinos Combatentes (475-221 a.C). Há referências a eles também em textos importantes como o Clássico do Caminho e da Virtude (Dàodéjīng) e no  Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng). Respectivamente, o primeiro é o mais famoso texto filosófico taoista e o segundo o mais famoso texto antigo de medicina chinesa.

Os dois pictogramas para Qì: à esquerda o fogo original do Céu representa o Qi pré-natal. À direita, a combinação de vapor e arroz represetna o Qi pós-natal, que provém da respiração e dos alimentos.

Como e de quem aprender?

O primeiro princípio do Qigong é saber de quem aprender. Uma pessoa é confiável porque está qualificada para ensinar. Ela recebeu a transmissão de uma linhagem autêntica. E praticou e vivenciou os benefícios dos métodos que ensina. Além disso, conhece os princípios do Qigong. Sabe explicá-los e tem paciência, e tempo, para ensinar e tirar dúvidas. Aprendemos por imitação, repetição, treinando junto, escutando as instruções e corrigindo os erros conforme as orientações que recebemos.

O professor ou professora ideal, no nível mais elevado, é um mestre ou mestra que realizou o Tao, alguém de vasto conhecimento, compaixão e sabedoria. Estas pessoas são muito raras. Então, de modo mais realista, basta um instrutor ou instrutora experiente, com permissão de seu mestre ou mestra para ensinar.

Atenção! O conhecimento nunca está completo nos livros. Sempre há detalhes fundamentais que só aprendemos diretamente com uma pessoa mais experiente.

No Qigong, além das posturas e movimentos visíveis, há também a intenção. Com ela, direcionamos a circulação de Qi. Assim, também precisamos de explicações sobre o aspecto invisível da prática.

Quando e com que frequência praticar?

O segundo princípio do Qigong diz respeito ao momento da prática. Preste atenção nos horários do dia e nas estações do ano para escolher o que praticar. Por exemplo, exercícios respiratórios, só da madrugada até 11:00 da manhã. Evite exercícios pesados no meio do dia. Não pratique sob as árvores à noite. Evite praticar durante tempestades. E leve em consideração seu estado de saúde e o momento do seu ciclo de vida. Por exemplo, alguns treinamentos são desaconselhados durante o período menstrual e a gestação, outros são mais importantes quando estamos convalescentes, ou quando queremos prevenir determinadas doenças, e assim por diante.

Treine regularmente, de preferência todos os dias. Pois não há progresso sem regularidade. Após 49 a 100 dias de treinamento contínuo, você começa a perceber diferenças na sua vitalidade.

Se você conhece vários tipos de treinamentos, então pode organizar a prática de duas maneiras, dependendo do horário.

De manhã, siga esta sequência:

  • meditação,
  • respiração de limpeza,
  • qigong estático,
  • qigong de movimento
  • e arte marcial.

À noite, inverta a sequência, retirando a respiração.

Onde praticar?

O terceiro princípio do Qigong diz respeito ao local da prática. Há duas opções básicas: ao ar livre ou dentro de casa.

Se você quer treinar em contato com a natureza, evite expor-se a condições climáticas extremas: calor, frio, umidade, vento e secura excessivos. Por exemplo, não se exponha ao sol forte, à chuva, ao vento. E evite pisar descalço num terreno frio ou molhado.

Além disso, escolha um ambiente natural com Qi abundante e de boa qualidade: ar puro, água límpida, árvores, montanhas, clima ameno. Se isto não é possível, onde você mora, recomenda-se viajar periodicamente para ter contato com a natureza. Os antigos taoistas viajavam para florestas e montanhas remotas para obter o ambiente com o fengshui mais propício para treinar.

Quando você pratica na cidade, ao ar livre, é melhor praticar em parques e jardins, mas ao abrigo do sol forte, do vento e da chuva. Evite ambientes movimentados, barulhentos e poluídos.

Em casa, pratique em um cômodo limpo, iluminado e com ventilação, mas sem se expor diretamente a correntes de ar.

Mas qualquer que seja o ambiente, é importante ter suficiente conforto térmico, acústico, luminoso e segurança, para que possamos relaxar durante a prática, temporariamente sem desconfortos, preocupações e interrupções.

O Corpo

O quarto princípio do Qigong diz respeito ao corpo: sua postura, alinhamento e ritmo.

A prática do Qigong de longa vida visa promover a circulação do Qi correto no nosso corpo, a eliminação do Qi patogênico e a captação do Qi límpido da natureza. E para isso, é importante manter o corpo alinhado e relaxado. Pois o alinhamento favorece a ligação com o Qi do Céu e da Terra. Observe, também, as Seis harmonias entre as articulações: ombros-quadris, cotovelos-joelhos, pulsos-tornozelos. Por sua vez, o relaxamento favorece a livre circulação de Qi e Sangue no corpo. Mas, relaxar não é desabar, a postura continua estável e alinhada.

No Qigong taoista de longevidade, o tônus muscular vem da postura e dos movimentos, não contraímos os músculos com força, deliberadamente. Por isto, é importante usar apenas a força necessária.

Além disso, praticamos com atenção à nossa consciência corporal. Perceba  a distribuição do peso do corpo: nos dois pés, predominante em um dos pés ou apenas em um só pé. Faça alongamentos suaves, respeitando os limites do corpo. A repetição suave e consciente desenvolve e mantém a flexibilidade.

Já a respiração é natural, pelo nariz, movendo a barriga como um bebê. Exceto em exercícios respiratórios com instruções específicas. Nào confunda Qigong com um sinônimo de exercício respiratório.

O ritmo dos movimentos é lento, contínuo e fluido. Por que mover-se “em câmera lenta”? Por vários motivos! Porque isso favorece a circulação equilibrada de Qi e Sangue. Remove bloqueios. Previne lesões (causadas por movimentos bruscos combinados à má postura). Acalma a mente e desenvolve a consciência corporal.

E, por fim, o Qi se manifesta como sensação corporal (calor, formigamento, eletricidade, frio, magnetismo, pulsação, etc). O conhecimento do Qigong não é apenas conceitual. É baseado na experiência e sentido no corpo, não um um mero conceito ou crença..

A mente

O quinto princípio do Qigong diz respeito ao papel da mente. Um dito clássico da medicina chinesa afirma que a Intenção guia o Qi e o Qi guia o Sangue. Portanto, Qigong não é apenas uma ginástica, o efeito depende de nossa consciência presente. Os movimentos são acompanhados por um direcionamento da consciência.

Qigong se pratica com atenção, não é um exercício mecânico, pois precisa de consciência para ser totalmente eficaz. Por isto mesmo, além de prática para saúde é também meditação em movimento.

Antes de começar, fazemos uma preparação interior, tomando consciência do eixo e do centro do corpo. Após concluir, fazemos uma pausa, levando a atenção para o centro do corpo.

Repare que uma sessão de prática reproduz a antiga cosmologia chinesa: partimos do Wújí (無極), para o Tàijí (太極), para as “dez mil coisas”; ao final retornamos ao Tàijí e finalmente ao Wújí. Ou seja, do Vazio, para a unidade dinâmica dos opostos, que se manifesta de mil formas diferentes, e de volta ao Vazio. Logo, esta sequência implica diferentes formas de posicionar nossa consciência durante a prática, alternando entre ficar focado/a e ficar vazio/a.

Outra filosofia do exercício

O Qigong taoista tem outra filosofia do exercício. A prática correta é relaxante e revigorante, gera calma e bem estar. Podemos suar levemente, o coração pode bater um pouco mais forte. Mas não precisamos sentir dor, exaustão, nem ficar ofegantes após os exercícios.

Aqui, a instrução chave é: “sem forçar”. Respeitamos nossos limites corporais e psicológicos. À medida que praticamos com paciência e nos familiarizamos com os exercícios, o corpo vai ficar mais forte, vigoroso e flexível, a mente vai ficar mais calma. Com o tempo, aprendemos a diminuir a tensão física e mental habitual, relaxando o esforço desnecessário.

Praticando assim, podemos vivenciar experiências de fluxo: uma sensação de unidade entre corpo, consciência e ação sem esforço.

Benefícios do Qigong

Ao entrevistar dezenas de praticantes no meu trabalho de campo, foram frequentes os relatos de melhoras nas condições de saúde, inclusive em doenças crônicas graves (Bizerril, 2007).

Quando praticamos regularmente, percebemos um aumento de vitalidade, melhora na digestão, na respiração, no ciclo menstrual das mulheres, no equilíbrio, flexibilidade, coordenação motora. Constatei isso também por experiência própria.

Um efeito ainda mais sutil é sobre nossos estados de humor e paisagem mental. Com o tempo, a mente fica mais calma. As emoções ficam mais estáveis e equilibradas. Até as dificuldades e problemas da vida abalam menos.

Devido ao coração mais sereno e ao corpo mais relaxado, reagimos de forma mais adequada e proporcional às situações desafiadoras. Pois aprendemos a usar apenas a força necessária, com mais sensibilidade ao contexto e à ação necessária.

Qigong e filosofia taoista

A  prática bem orientada do Qigong tem também profundas consequências existenciais. E pode produzir mudanças de estilo e de ritmo de vida. Depois de praticar por algum tempo, começamos a sentir que a pressa, a agitação e o estresse habitual não são benéficos nem necessários.

E tem também consequências filosóficas. Pois a experiência corporal permite compreender conceitos filosóficos difíceis, como Caminho Natural (Dào 道), Taichi (Tàijí 太極), não ação (wúwéi 無為), vacuidade (wú 無, xū 虛), Qi (氣)… Isto acontece por meio do processo que a antropologia da corporeidade chama de “corporificação” (embodiment).

É assim porque os conceitos da filosofia taoista são indicadores de experiências. A naturalidade, a integração dos contrários, a fluidez, a ação sem esforço ou identidade, podem ser vivenciadas por meio de prática corporal regular.

Como tudo começou?

Mestre Liu Pailin (劉百齡 Liú Bǎilíng) (Tianjin,1907- São Paulo, 2000), pioneiro da divulgação do Taichi, do taoismo e da medicina chinesa no Brasil

Em 1998, parti para São Paulo, em trabalho de campo antropológico para minha tese de doutorado. Lá conheci o mestre Liu Pai Lin, em seus últimos anos de vida. Utilizando um metodologia participativa, aprendi e pratiquei intensivamente o Taichi Pai Lin, entrevistei e convivi com praticantes de todos os níveis, observei o cotidiano e anotei, como faz um etnógrafo em pesquisa de campo.

O encontro com o mestre foi tão impactante que, ao voltar para casa, continuei a praticar e nunca mais parei. Havia algo diferente naquele senhor de pouco mais de 90 anos. Uma alegria de viver, uma energia que parecia inesgotável, a velhice sem sinais de decrepitude, os olhos brilhantes de uma inteligência viva, uma grande flexibilidade de corpo e mente. E, pela primeira vez na vida, aprendi a importância de relaxar e fluir, em vez de usar a força de vontade e lutar.

Quem sou eu?

Defendi minha tese de doutorado, O Retorno à Raiz: uma linhagem taoista no Brasil, em janeiro de 2001. No período de 2001 a 2018, publiquei artigos, capítulos de livro e o livro da tese, sobre a tradição taoista no Brasil. Iniciei carreira como professor universitário e pesquidador, função que exerci até julho de 2017.

Paralelamente a isso, passei anos praticando diariamente, seguindo a orientação dos mestres, e sob supervisão de professores/as. Aprofundei minha compreensão do Qigong, Taijiquan, Espada Taiji, Baguazhang, Daoyin, meditação taoista, medicina chinesa e filosofia taoista. Em 2016, tornei-me instrutor certificado de práticas taoistas. Em 2015, viajei a Taiwan pela primeira vez e tornei-me discípulo da linhagem taoista Kunlun Xianzong. Fiz outras viagens para visitar meu professor de meditação taoista desta linhagem e continuar aprofundando a minha prática. Tornei-me também acupunturista. Após 17 anos de carreira acadêmica e cerca de 20 anos de estudos acadêmicos e prática pessoal da tradição taoista, decidi me dedicar a ensinar estes conhecimentos tradicionais chineses.

O resultado disso é o projeto Qigong Taoista, presente nas redes sociais e neste sítio web.

Medicina Chinesa: 03. Que é um ponto de acupuntura?

Uma particularidade da acupuntura é que as agulhas não são inseridas de modo aleatório ou meramente intuitivo no corpo de um/a paciente. Existe todo um conhecimento técnico prévio, uma compreensão desenvolvida ao longo dos milênios de existência da medicina chinesa, por meio da prática clínica e do estudo do corpo humano. Na maior parte das vezes, cada agulha é inserida em uma localização bastante específica, chamada “ponto de acupuntura” (xuédào 穴道).

Gravura médica chinesa do século XVIII, ilustrando pontos de acupuntura, acervo da British Library

O capítulo 58 das Questões Simples (Sùwén 素聞), livro que compõe o Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng 黃帝內經), afirma que “o ser humano tem 365 acupontos que correspondem ao número de dias do ano”.

A sinóloga Elizabeth Rochat de la Vallée, estudiosa dos clássicos médicos e taoistas chineses.

Em todos esses casos, um ponto de acupuntura é uma localização anatômica precisa, uma pequena região circular que pode ser identificada por palpação, com uma consistência diferente das áreas adjacentes. Simplificando, quando tocamos um ponto de acupuntura com a ponta do dedo, sentimos uma sensação diferente, como uma cavidade. De fato, essa seria uma tradução literal para o termo chinês xué (穴): cavidade, gruta, caverna, morada, vala, toca de animal, como explica a sinóloga Elizabeth Rochat de la Vallée em sua análise precisa dos 101 conceitos-chave da medicina chinesa.

Normalmente, quando se vê os pontos de acupuntura em um tratado de referência, podemos identificar quatro situações: o ponto pertence a um dos doze canais ordinários, correspondente ao sistema dos órgãos e vísceras (臟腑), que percorrem o corpo, cada qual num trajeto específico; o ponto pertence ao Vaso da Concepção (任脈) ou ao Vaso Governador (脈); localizados na linha central do tronco, respectivamente na frente e nas costas; o ponto influencia algum dos Oito Vasos Maravilhosos (categoria a que pertencem o Vaso da Concepção e o Vaso Governador), mas pertence a um dos 12 canais ordinários; o ponto é classificado como “ponto extra”, não é considerado como pertencente a um dos canais.

Em geral os pontos tem referências anatômicas claras próximas a eles, como por exemplo protuberâncias ósseas, tendões, o espaço entre músculos, etc. Além disso, um ponto de acupuntura não coincide totalmente com um vaso sanguíneo maior: a agulha de acupuntura não deve transpassar uma veia ou artéria. O tratamento por sangria funciona de forma diferente de uma sessão de acupuntura com agulha filiforme, e será explicado em outra postagem.

Para o/a acupunturista, a localização precisa do ponto tem como consequência uma inserção mais fácil e eficaz da agulha.

Medicina Chinesa: 02. como funciona o diagnóstico

A acupuntura pode tratar diversas doenças, segundo a Organização da Saúde, como mencionado na postagem anterior. No entanto, como é parte de uma medicina tradicional completa, a medicina chinesa, seu uso terapêutico depende de um cuidadoso diagnóstico, com uma lógica específica.

A tradição médica chinesa fala de quatro métodos diagnósticos (sìzhěn 四診): observar, auscultar/cheirar, interrogar e palpar. Cada um deles é uma prática bastante detalhada. A observação inclui não apenas o exame da face, da compleição, do olhar, da língua e das partes do corpo afetadas por uma doença, mas também, uma percepção global do comportamento, da constituição, do estado geral e mesmo da saúde mental dx paciente. Auscultação inclui prestar atenção em alterações de som e cheiro do corpo dx paciente. Interrogar corresponde a uma cuidadosa entrevista diagnóstica, na qual ouvimos não apenas a queixa principal e o histórico de saúde, mas indagamos sobre: sono; alimentação; sede; estilo de vida; dores; doenças crônicas; acidentes e cirurgias; fezes e urina; transpiração; frio e calor, febre; saúde sexual/reprodutiva; etc. Por fim, a palpação inclui não apenas tocar as partes do corpo afetadas pela doença e identificar pontos de acupuntura sensíveis, com finalidade diagnóstica.

Aquarela de Jean Droit, por volta de 1915, retratando um médico chinês examinando o pulso de uma paciente aristocrática. Disponível em Fine Art America.

Além disso, um método diagnóstico importante e complexo é a pulsologia. A forma mais conhecida é a tomada do pulso da arterial radial simultaneamente nos dois braços, que oferece indicadores detalhados sobre o estado de saúde, particularmente dos órgãos internos. Por meio do exame do pulso é possível avaliar a vitalidade dx paciente, identificar a presença de desequilíbrios sistêmicos e inclusive fazer prognósticos sobre o desenvolvimento do caso clínico.

Por meio do uso cuidadoso desses métodos diagnósticos, 1 profissional pode diferenciar as síndromes, de modo mais geral, segundo Oito Princípios (bāgāng 八綱): frio e calor; deficiência e excesso; interior e exterior; Yin e Yang. E, de modo mais específico, segundo os Órgãos e Vísceras (zàngfǔ biànzhèng 臟腑辨證). Os Oito Princípios permitem identificar a natureza da síndrome. E a Investigação dos Órgãos e Vísceras permite localizá-la de forma mais precisa.

Com esse entendimento, é possível traçar uma estratégia terapêutica mais eficaz do que apenas tratar sintomas isolados.

Meditação Taoista: 03. Afinal, para que meditar?

Na postagem de hoje, a ideia é oferecer ao público interessado uma explicação simples, sem tecnicalidades, sobre o que é meditação taoista e para que praticá-la. Um ponto de partida simples é entender que a meditação é um método. Mas um método para que?

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Vamos à resposta mais direta: no nível mais profundo, a meditação taoista é um método para cultivar o que os antigos chineses chamaram de Caminho Natural, que é uma tradução razoável para o termo Tao. Em vez de usar termos filosoficamente complicados, digamos que, na prática, a meditação é um método que desenvolve gradualmente em nós a capacidade de passar cada vez mais tempo em um estado que combina relaxamento, serenidade, sensibilidade ao ambiente à nossa volta, e prontidão para agir em conformidade com o que a situação demanda em um momento específico. Ou seja, não meditamos para sermos pessoas melhores, nem obter algo. Nem se trata de ficar passivo/a, insensível ou indiferente. Em vez disso, meditamos para aprender a reduzir toda tensão, força e identidade desnecessárias, permitindo que as qualidades de nossa natureza essencial se manifestem. Quando nos acostumamos a permanecer em um estado de relaxamento alerta, menos identificados/as com uma identidade sólida associada a desejos e metas, viver fica mais simples. Então, a tradição taoista confia no potencial para bem viver, presente em todos/as nós, que se revela quando nosso está equilibrado e a tensão se dissolve.

Os métodos taoistas se dividem em treinos de movimento e treinos de serenidade. A meditação silenciosa na postura sentada é o treino de serenidade por excelência. Nela, trabalhamos ao mesmo tempo a serenidade e a vitalidade, como expliquei na primeira postagem dessa série. A primeira etapa na prática desse tipo de meditação é o restabelecimento de nossa vitalidade e do equilíbrio de nosso organismo, descrito pelos antigos chineses em termos de Yin e Yang e dos chamados cinco “elementos” (metal, água, madeira, fogo e terra), que correspondem aos órgãos, tecidos e funcionamento de nosso corpo, como tenho explicado desde a primeira postagem sobre medicina tradicional chinesa. Como na concepção chinesa não há uma separação entre corpo e mente, o equilíbrio de nosso organismo está diretamente ligado ao equilíbrio emocional. Assim, quando nossas energias estão equilibradas, é mais fácil meditar. E ao mesmo tempo, na medida que praticamos meditação, aumenta nossa capacidade de autorregulação, o que permite lidar com situações que antes nos deixariam doentes, exaustas/os ou agitadas/os.

O que a meditação oferece é um momento com condições ideias para cultivar a serenidade e “recarregar nossas baterias“. Paramos temporariamente nossas atividades cotidianas, largamos os projetos e preocupações, sentamos em um local silencioso e que inspire tranquilidade. E nessas condições praticamos algumas técnicas para favorecer o relaxamento, a lucidez e a vitalidade. Mas com o tempo de prática regular, os estados de serenidade, relaxamento e vigor que vivenciamos durante a sessão formal de meditação podem ser vivenciados no cotidiano quando não estamos meditando. Algo em nós mudou sem que tenhamos deliberadamente tentado mudar ou aperfeiçoar nada.

Pintura em nanquim, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

Assim como a água que brota de uma nascente e se torna disponível para nutrir a vida dos seres vivos que ali habitam, ou o sol que nasce a cada dia iluminando e aquecendo a terra, espontaneamente se manifesta um potencial para ação eficaz que é benéfico para nós mesmos/as e para quem está à nossa volta. Quando estamos revigorados/as e relaxados/as fica mais fácil estar disponível para os/as outros/as do que quando estamos tensos/as, ensimesmados/as, focados/as em nossas dores e dificuldades. E como explicou o mestre Pailin, esse é o sentido de ter uma vida longa e saudável: poder expressar nosso potencial para benefício coletivo, compartilhando e apoiando o desenvolvimento dos/as outros/as.

Caso deseje aprender a praticar, em março de 2020 teremos um curso de introdução em Brasília.

O Clássico do Imperador Amarelo: 04. recomendações sobre alimentação

Na medicina clássica chinesa, existem recomendações sobre alimentação e saúde. Diferente do conhecimento moderno sobre nutrição que leva em consideração o aspecto bioquímico dos alimentos, quais nutrientes e calorias presentes, a dietoterapia chinesa associa os sabores e as cores aos Cinco Movimentos (wŭxíng 五行) (madeira, fogo, terra, metal e água) e classifica os alimentos por sua natureza e efeito. Assim, uma alimentação equilibrada é uma das bases da manutenção da saúde, visto que o ar e o alimento são o fundamento do pós-natal. Além disso, num nível mais introdutório da explicação, alimentos específicos podem ser recomendados como tratamento para suprir o que está deficiente e reduzir o que está em excesso, visando restabelecer o equilíbrio de Yin e Yang, mas também dos Cinco Movimentos, considerando a associação dos alimentos com as 5 cores e 5 sabores correspondentes aos Cinco Movimentos.

Página da edição chinesa do Suwen, que forma parte do Huangdineijing. Acervo da World Digital Library.

O capítulo 3 das Questões Simples (Sùwén 素聞) associa os cinco sabores aos cinco órgãos (zàng 臟): o azedo ao fígado; o salgado aos rins; o doce ao baço; o amargo ao coração; e o picante aos pulmões. Ainda segundo o clássico, se estão em excesso, os sabores podem contribuir para produzir uma relação de agressão entre os cinco movimentos. Se o fígado está em excesso, prejudica o do baço. Se os rins estão em excesso, pode lesar os ossos e músculos, e prejudicar o coração. Se o baço está em excesso, ocorre dispneia, pode restringir o o dos rins. Se o coração está em excesso, o clássico afirma que o baço não consegue se umedecer e surge secura perversa no estômago. Aqui vemos uma descontinuidade no raciocínio apresentado, que não faz menção ao pulmão, mas sim ao estômago, a víscera Yang corresponde ao órgão Yin da terra, o baço. O texto continua, afirmando que, se o pulmão está em excesso, restringe a madeira do fígado, enfraquecendo os tendões e, pelo efeito de dispersão, o excesso de picante consome o espírito. Ressalto aqui que neste e em outros trechos há variações no texto clássico que divergem das tabelas de correspondência dos cinco movimentos nos textos modernos de medicina chinesa, mais lineares.

Já no capítulo 4, que continua a enumerar as correspondências dos Cinco Movimentos com direções, cores, estações, órgãos,sabores, carnes, cereais, planetas, notas musicais e odores, o clássico faz as seguintes associações: o fígado está associado à madeira e, quanto aos alimentos, ao galo e ao trigo; o coração está associado ao fogo e, quanto aos alimentos, ao carneiro e ao sorgo vermelho; o baço está associado à terra e, quantos alimentos, à vaca e ao painço; os pulmões estão associados ao metal e, quanto aos alimentos, ao cavalo e ao arroz com casca; os rins estão associados à água e, quanto aos alimentos, ao porco e ao feijão (de soja) preto. Ainda num nível introdutório, pode-se associar as cores aos Cinco Movimentos e seus órgãos respectivos. Assim, alimentos verdes tonificam a madeira; alimentos vermelhos tonificam o fogo; alimentos amarelos tonificam a terra; alimentos brancos tonificam o metal; e alimentos pretos tonificam os rins.

Ilustração do Siwubencao, texto de matéria dietética da dinastia Ming:
colhendo água de ameixa. Fonte: Wellcome Gallery Collection.

Obviamente, isso não resume todos os princípios da seleção dos alimentos na dietoterapia chinesa, mas dá uma ideia de sua racionalidade, como está presente nas Questões Simples, do Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng 黃帝內經). Textos posteriores de matéria dietética elaboram de formas mais complexas e específicas sobre o uso medicinal dos alimentos, de modo que a medicina chinesa possui uma verdadeira culinária terapêutica no seu repertório de conhecimentos tradicionais.

O Clássico Interno do Imperador Amarelo: 03. a vida humana e o qì da natureza

A medicina chinesa não separa o ser humano da natureza. Isso fica óbvio no capítulo 3 das Questões Simples (Sùwén 素聞), livro que compõe o Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng 黃帝內經), quando diz: “O ser humano é um pequeno universo, já que o corpo humano tem tudo que o universo tem”. E explica que somos feitxs dos mesmos Cinco Movimentos (wŭxíng 五行) (madeira, fogo, terra, metal e água) que formam todas as coisas do universo. E que se expressam na composição dos tecidos que compõem o corpo, nos órgãos internos (zàngfŭ 臟腑), suas funções fisiológicas e nossas faculdades e processos mentais, que lhes correspondem, segundo a concepção chinesa. E assim como os doze horários, correspondentes aos 12 ramos terrestres (dìzhī 地支), temos doze canais ordinários. Ou seja, em um único parágrafo do clássico, encontramos uma síntese dos fundamentos da medicina clássica chinesa. Este entendimento geral é a base para entender saúde como harmonia Yin-Yang e equilíbrio entre os Cinco Movimentos, de um lado; e os processos de adoecimento como desarmonia Yin-Yang, desequilíbrio entre os Cinco Movimentos e bloqueio do livre fluxo de qì e/ou sangue pelo corpo.

Página da edição chinesa do Suwen, que forma parte do Huangdineijing. Acervo da World Digital Library.

Portanto, esse capítulo do clássico explica também que a vida humana depende do Yin e Yang e dos Cinco Movimentos. No nível da terra, há uma correspondência entre os cinco movimentos e os três fatores climáticos Yin (frio, seco, molhado) e três fatores Yang (vento, fogo e calor de verão), que podem se tornar os fatores externos perversos, causadores de doenças. Particularmente, quando o clima das estações está em correspondência com a natureza das estações – isto é, “cálido na primavera, quente no verão, fresco no outono e frio no inverno em suas condições normais” (Questões Simples, capítulo 3) – isso não deveria causar doenças. Mas quando as condições climáticas estão particularmente anormais, isso pode prejudicar nosso qì e nossos órgãos internos. Além disso, se nosso se encontra enfraquecido ou desequilibrado, os fatores climáticos normais podem invadir e agredir nossos organismo, como é explicado mais adiante no clássico (Questões Simples, capítulo 4).

O clássico recomenda que façamos o nosso entrar em contato com o do universo,”numa circunstância de calma onde não há vento nem tempestade”. Isto é, quando o do ambiente natural e o nosso próprio não estão agitados. Embora não haja uma referência explícita aos treinamentos nesse trecho do clássico, esse é um importante conselho para a prática de qìgōng (氣功) e tàijíquán (太極拳) ao ar livre. Praticando corretamente, em um ambiente de abundante e harmônico, há benefícios para a mente: “pode-se manter o espírito quieto e claro como o céu azul, livre das perturbações do excesso de alegria ou da raiva violenta”. E para o corpo: “sua energia corpórea será substancial, e não será ferida mesmo que for atacada por fatores perversos”. Isso é possível se desenvolvemos a capacidade de nos adaptar aos movimentos do do céu e da terra e preservar nosso próprio , o que caracteriza, para o clássico, uma pessoa sábia.

Na natureza como no corpo humano, a vida está associada ao Yang : “a operação incessante do céu depende do brilho do sol, e a saúde corporal do ser humano, depende dua energia Yang clara e flutuante, que se guarde contra o exterior”. Exterior aqui equivale aos fatores climáticos que tem um efeito perverso quando invadem o corpo: o clássico menciona explicitamente calor, frio, umidade e vento. Mas discorre também sobre os fatores mistos: excesso de trabalho, ascensão do yang por uma explosão de raiva, lesões dos tendões, excessos alimentares. Mas de todos esses fatores causadores de doenças, nesse capítulo o clássico destaca um: “o vento é a principal fonte de várias doenças”.

Pintura retratando o canal zuyangming, correspondente ao estômago, data e autor desconhecidos, Welcome Collection Gallery, disponível em Wikimedia Commons.

O clássico recomenda adaptar-se ao tempo e cuidar do corpo e do espírito, em conformidade com a lei de Yin e Yang. Em uma postagem anterior falamos das estações do ano. Aqui o texto refere-se ao ciclo diário de ascensão e declínio do Yang , como também está descrito no capítulo 4, acontece simultaneamente no corpo humano e na natureza, de modo que aqui cuidar-se é manter-se em harmonia com as fases desse ciclo durante as atividades. A este respeito, ver as recomendações do mestre Liu Pailin sobre os horários de treinamento.

Por fim, uma citação do clássico que resume suas conclusões nesse capítulo:

Se as energias Yin e Yang do ser humano forem mantidas em estado de equilíbrio, seu corpo será forte e seu espírito saudável, se suas energias Yin e Yang falharem em sua comunicação, sua energia vital irá declinar e finalmente ficará esgotada.

Clássico Interno do Imperador Amarelo, Questões Simples, capítulo 3.

Meditação Taoista: 01. dificuldades básicas

Meditação começou a se tornar um tema popular em contextos globais já faz algumas décadas, talvez pelo menos desde os anos 60 do século XX, objeto de estudo de eruditos acadêmicos, de curiosidade em circuitos contraculturais, mesmo um bem simbólico rentável no mercado espiritual new age e, mais recentemente, um método terapêutico reconhecido por setores da ciência médica e psicológica convencional (como é o caso do sistema mindfulness, originalmente desenvolvido por neurocientistas a partir das técnicas budistas clássicas de meditação Shamata). Várias tradições asiáticas praticam métodos contemplativos há milênios e os circuitos contemporâneos de comunicação intercultural global permitiram a sua difusão para outros contextos culturais. Além disso, há toda sorte de novas sínteses e experimentações e literalmente milhares de professores e professoras de meditação, nem sempre devidamente treinadxs e suficientemente experientes para ensinar, pelos critérios tradicionais. Em nossos tempos de excesso de individualismo, a meditação tem inclusive sido erroneamente incorporada ao arsenal de tecnologias de empoderamento individual, em consonância com o que foi chamado de “materialismo espiritual” pelo controverso mestre budista tibetano Chogyam Trungpa.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Aqui, o assunto é a meditação taoista em um contexto por assim dizer mais fiel à sua origem: o cultivo simultâneo da vida e do espírito. Quando falamos de meditação taoista, é importante lembrar que há vários métodos, a depender da linhagem. No caso do taoismo no Brasil, e referindo-me ao legado do mestre Pailin, o que ensinou a seus discípulos e discípulas, foi principalmente técnicas de meditação silenciosa que combinam o cultivo da serenidade, do Vazio e a circulação do por certos centros e trajetos (como o Pequeno Universo, a Via Láctea e os Oito Vasos Maravilhosos).

Mestre Liu recomendava a meditação “Sentar na Calma” como parte do treinamento para quem buscava a saúde e a longevidade, mas também para desenvolver sua espiritualidade latente, entendendo isso sem nenhum teor religioso. E explicava os fundamentos filosóficos da prática, citando clássicos taoistas como o Daodejing e o Yijing.

Falando do ponto de vista do iniciante, é preciso um entendimento intelectual correto do que é a prática e para que praticar. É preciso também obter instruções confiáveis para não perder tempo e não arriscar a saúde e a sanidade.

Detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor setembro de 2018.

Do ponto de vista do entendimento intelectual, dos vários conceitos presentes nos textos filosóficos e manuais taoistas, talvez um dos que gere mais confusão, não apenas para iniciantes, é o Vazio. Por um lado, essa palavra tem nas línguas ocidentais uma conotação negativa, até niilista. Ao falarmos em Vazio, quem não está familiarizado com a terminologia taoista e budista pode imaginar, erroneamente, negação, ausência, falta, nada. E consequentemente sentir angústia. Então é preciso primeiro entender que o Vazio, ou vacuidade, aqui se refere metaforicamente ao espaço aberto da potencialidade, onde tudo acontece e se manifesta. É como o silêncio antes e entre os sons, a quietude antes e entre os movimentos, o espaço entre os objetos e fenômenos. E não uma ausência dolorosa ou negação da vida. Em vez disso, é uma aspecto necessário da vida. A própria vida é uma alternância contínua entre quietude e movimento, como está expresso graficamente no símbolo do Taiji ☯. Embora a vacuidade seja uma experiência que não é totalmente descritível, é importante um entendimento inicial na direção correta.

Detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor setembro de 2018.

Do contrário, surgem dificuldades para por em prática instruções sobre cultivar o Vazio na meditação. Com a postura corporal, o método e a atitude mental corretas, surgem espontaneamente momentos de grande quietude na meditação, uma lucidez relaxada e silenciosa. A atividade mental agitada e incessante que os chineses chamaram de “macaco dos pensamentos” se detém espontaneamente. Esse é um momento para cultivar o Vazio. Não se trata de ficar pensando a respeito do vazio, para entendê-lo intelectualmente. Nem de passar um tempo imaginando como seria esse vazio. Muito menos de imaginar as coisas como vazias. Outro erro comum é imaginar que meditar depende de impedir pela força o fluxo da consciência, para chegar a um estado artificial totalmente livre de pensamentos. Isso não só é exaustivo e improdutivo, mas é também um erro tem efeitos colaterais nocivos. O capítulo 3 do Zuò Wàng Lùn (Tratado sobre Sentar e Esquecer), afirma que, ao proceder assim, cortando bruscamente toda atividade mental durante a meditação, a pessoa desenvolve uma dificuldade crescente de raciocinar e pensar, que não é o objetivo da meditação.

Para concluir, se a meditação é um método para atingir o estado natural, é possível começar a entender o que é meditação taoista por eliminação: não visa estados extraordinários, mas sim revelar algo que já está presente em nosso ser quando relaxamos; não é fugir da realidade, “viajar” ou adormecer, mas estar alerta e consciente; mas isso não se faz por uma concentração forçada, e sim por um foco relaxado que permite repousar a consciência.

Em março de 2020 está agendado um curso de meditação taoista em Brasília .

O Clássico Interno do Imperador Amarelo: 02. preservar a saúde nas estações do ano

Dando continuidade às postagens sobre os clássicos da medicina chinesa, o tema de hoje é a relação entre o ciclo das estações do ano e os cuidados de saúde. Para os antigos chineses, há uma correspondência entre os cinco movimentos (wǔxíng 五行) e as estações do ano. Isso quer dizer que nessas épocas predomina o que lhe é característico e que, portanto, podem ser mais ou menos propícias para certas atividades.

crédito da imagem: needpix.com, 2019

A primavera corresponde à madeira (mù 木). Em harmonia com isso, o capítulo dois das Questões Simples (素聞) do Clássico Interno do Imperador Amarelo, afirma que esse é “o momento apropriado de nascimento e expansão”. Em uma região de clima temperado, é o momento em que as plantas brotam e tornam a ficar verdes após o frio do inverno. O clássico recomenda dormir e acordar cedo, caminhar ao ar livre e inspirar ar fresco pela manhã, exercitar os músculos e tendões. Ao ficar em desarmonia com o da primavera, o fígado, órgão interno correspondente à madeira, será afetado. E como consequência, pode se manifestar uma doença no verão.

Montanhas no verão, pintura em seda de Qu Ding, acervo do Metropolitan Museum of Art, New York.

O verão corresponde ao fogo (huǒ 火). Por isso, é uma época de florescimento e frutificação, de apogeu do Yang. O clássico também recomenda acordar e dormir cedo, tomar sol, suar para permitir a saída do excesso de calor e não ficar frequentemente com fome. Ao ficar em desarmonia com o do verão, o coração, órgão interno correspondente ao fogo, será afetado. E assim pode surgir uma doença no outono.

Três Plantas do Outono, pintura de Zhou Xian, acervo do Walters Art Museum
Paisagem com figura, pintura de Xugu, acervo do Art Institute of Chicago

O outono corresponde ao metal (jīn 金). Por isso é uma época de amadurecimento e colheita. O clássico recomenda deitar mais cedo e proteger-se do frio, acordar cedo e apreciar o ar outonal, conservar o espírito tranquilo. Ao ficar em desarmonia com o do outono, o pulmão, órgão interno correspondente ao metal, será afetado. E pode surgir uma doença no inverno.

O inverno corresponde à água (shuĭ 水). Num clima temperado como o da China, uma época de congelamento da água, de hibernação dos animais, portanto uma época de recolhimento. O clássico recomenda manter-se aquecido e proteger-se do frio para não perturbar o Yang qì, deitar-se cedo, levantar-se cedo para ter contato com a luz solar, manter o coração em repouso, evitar a transpiração e o consumo e exaustão do Yang. Ao ficar em desarmonia com o do verão, o rim, órgão interno correspondente à água, será afetado. E pode surgir uma doença na primavera.

Ainda que essas observações e instruções tenha sido desenvolvidas na antiguidade chinesa tendo em vista uma região de clima temperado, se observarmos com atenção as transformações das estações em nosso clima tropical, também encontraremos as propriedades específicas dos cinco elementos. Assim como os sábios do passado aplicaram esses conhecimentos para preservar a própria saúde e para ensinar pacientes a prevenir o surgimento de doenças, podemos também fazer o mesmo.

As energias de todas as coisas da terra surgem na primavera, crescem no verão, dão passagem no outono e se ocultam no inverno; são todas geradas pela lei de variação das energias do Yin e do Yang das quatro estações. Dessa forma as energias Yin e Yang das quatro estações são as energias-raiz de surgimento e crescimento de todas as coisas (Questões Simples, capítulo 2).

O Clássico Interno do Imperador Amarelo: 1. a eficácia das agulhas de acupuntura

A postagem de hoje inaugura uma nova série sobre os clássicos da medicina chinesa. Desejo destacar como funciona essa medicina segundo a sua própria racionalidade. Como o método mais emblemático dessa medicina é a acupuntura e o Huangdineijing é o texto clássico fundamental, começaremos por ele. O Clássico Interno do Imperador Amarelo é dividido em dois livros: Questões Simples (素聞) e Eixo Espiritual (靈樞).

Página da edição chinesa do Suwen, que forma parte do Huangdineijing. Acervo da World Digital Library.

Como se sabe, esse clássico é escrito na forma de um diálogo entre o legendário Imperador Amarelo, um dos fundadores míticos da civilização chinesa, e Qibo, seu conselheiro para assuntos de medicina. é um texto que traz tanto os fundamentos filosóficos dessa antiga tradição médica, mundialmente reconhecida, mas também contêm conhecimentos técnicos que de algum modo norteiam a medicina chinesa até hoje. A medicina chinesa foi descrita como uma medicina de equilíbrio, porque a noção de Tao é o ponto de partida para sua compreensão da saúde.

Um aspecto importante presente no primeiro capítulo do Eixo Espiritual (靈樞) é que a eficácia da acupuntura depende do que às vezes se traduz como “sensação de acupuntura”; as expressões em chinês no texto são “chegada do qì” (Qìzhì 氣至) ou “obtenção do qì” (Déqì 得氣). Essa sensação é um indicador que o chegou ao ponto onde a agulha foi inserida e que, se a técnica for usada corretamente, fluirá da forma desejada pelo canal correspondente. O curioso é que não apenas o/a paciente deve sentir um campo de sensações características da ação terapêutica da agulha, descritas na literatura clássica, mas também em pesquisas modernas, em termos de calor, dormência, peso, eletricidade, fluxo, vibração, etc. Mas também, o/a acupunturista experiente deve desenvolver sua sensibilidade para perceber a chegada do e sua manifestação, antes mesmo que o/a paciente lhe comunique sua experiência ou que seu corpo reaja ao estímulo. Classicamente, a sensação de quem manipula a agulha é descrita como semelhante a um peixe que fisga o anzol. Mas para que ocorra essa experiência, o/a acupunturista deve aprender a inserir a agulha e manipulá-la em um estado de serenidade e atenção.

Agulha inserida no ponto Neiguan (PC6), foto do autor.

Em poucas palavras, uma vez que o ponto punturado está ativo, é possível incrementar o afluxo de ali, em doenças caracterizadas por deficiência; ou remover o excesso, seja ele resultante de um bloqueio no fluxo por estagnação, decorrente de um desequilíbrio interno (alimentar, emocional, constitucional), seja da invasão de um fator patogênico externo. O Eixo Espiritual afirma ainda que, quando tonificamos, o/a paciente deve sentir que “ganhou” algo. E, do mesmo modo, quando dispersamos, o/a paciente deve sentir que “perdeu” algo. Ou seja, a tonificação ou dispersão devem produzir sensações perceptíveis.

O Tao como vida em relação

“Tao é Taichi, e Taichi é harmonia de yin e yang”. Essa afirmação tradicional tem uma consequência no entendimento do caminho taoista como a unidade de uma compreensão sobre a vida e de uma arte de viver. A vida é percebida como um jogo dinâmico de aspectos complementares, opostos, alternados, sempre organizados em relações. E o bem viver seria um exercício de sensibilidade e ajuste às condições e relações do momento, visando o equilíbrio, a fluidez e a ação eficaz com o mínimo de desgaste. Compreendendo corretamente o funcionamento da natureza, ou do Céu e da Terra, e desenvolvendo pela prática uma sintonia com esse funcionamento, a vida fica mais simples. Assim, “filosofia” e “treinamento” taoista não são coisas separadas, mas os dois lados do caminho. Em uma época de tantas experiências de solidão, isolamento e excessivo individualismo, talvez os antigos sábios chineses tenham algo a nos ensinar…

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Certamente, há todo uma dimensão social nessas experiências, uma desagregação do espaço público, o desmantelamento de políticas de bem estar e seguridade social, associados a uma desregulamentação que favorece o mercado e prejudica as vidas das pessoas comuns, a ausência de projetos para o bem comum, tudo isso associado a uma excessiva individualização nos ambientes urbanos globalizados. Então, a solidão está associada uma instabilidade nas condições sociais, a um enfraquecimento da profundidade e diversidade de vínculos significativos e, ao mesmo tempo, a um aumento da importância individual e da necessidade de visibilidade e popularidade.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

No entanto, se voltamos à concepção taoista sobre a vida, nunca estamos de fato separados/as do mundo nem das demais pessoas. Estudando a filosofia taoista e a medicina tradicional chinesa, podemos nos dar conta disso em um nível intelectual. Praticando meditação e qigong podemos nos dar conta disso pela experiência vivida, de conexão com o mundo à nossa volta e seus habitantes. Um corpo vivo é feito dos mesmos materiais que a natureza. E é sua permeabilidade ao ar, à água, aos alimentos, ao que torna a vida possível. A metáfora ocidental fundadora da identidade pessoal – eu como algo dentro, enquanto o mundo está fora – induz a um erro de percepção, com consequências existenciais. O mundo não está fora de nós, nós sempre estivemos dentro do mundo. E os seres humanos vivem graças às relações: não teríamos chegado à idade adulta sem cuidados, ajuda e aprendizagem oferecida por outras pessoas; a maioria de nós não poderia sequer sobreviver sem o trabalho e os conhecimentos de outras pessoas. Resumindo, assim como não poderemos viver se destruirmos o ambiente natural, a vida também não é possível sem solidariedade e cuidado mútuo. Ou até é possível, mas às custas da nossa sanidade e até mesmo de nossa humanidade.

Certamente direitos e liberdades individuais são um ganho, mas se tornam uma maldição quando não vem acompanhados de responsabilidades coletivas e respeito aos mesmos direitos e liberdades das demais pessoas. A convivência íntima se torna uma tirania e as relações sociais se tornam formas de exploração e opressão.

O que aprendi de meus mestres é que o cuidado de si, o cultivo da vitalidade e da serenidade, a conquista da saúde e da longevidade, o despertar da sabedoria, é parte do processo de aprender a cuidar dos/as outros/as. É porque temos equilíbrio que podemos ser uma presença benéfica. Só tem sentido uma vida longa se com ela podemos beneficiar nossas comunidades e partilhar conhecimentos e experiência acumulada.