Um texto antigo como o Daodejing (道德經) já mencionava o apego a uma identidade sólida e a busca da fama como uma fonte de angústia: “Prestígio é inferior/ Ao obtê-lo ficamos assustados / ao perdê-lo ficamos assustados”(poema 13). No entanto, talvez em nossa época, o desejo de ser visto/a e admirado/a chegou a um novo patamar. E esse é o tema de hoje.
Um dos aspectos intrigantes do mundo contemporâneo é como novas condições sociais decorrentes dos processos globais favoreceram o surgimento de certo tipo de subjetividade coletiva. Além do aumento da velocidade, da fluidez, da instabilidade e consequentemente da imprevisibilidade da vida das populações urbanas globais, como vimos em uma postagem anterior, o desenvolvimento recente das tecnologias de comunicação tornou possível o acesso a uma quantidade e diversidade de informação nunca antes vista na história da humanidade, mas também um nível de exposição da intimidade e da vida cotidiana em escala inteiramente nova.
Isso tornou possível a promessa de uma rápida ascensão de pessoas comuns à fama e à visibilidade pública, particularmente por meio das mídias sociais, como apontou a pesquisadora argentina Paula Sibilia. E testemunha a passagem de uma subjetividade da interioridade a uma nova subjetividade exteriorizada. Antes da popularização da internet e da miniaturização das tecnologias multimídia em dispositivos portáteis, não só havia uma clara distinção entre os emissores das mensagens (mídia impressa, rádio, TV, cinema) e o público receptor (leitorxs, ouvintes, expectadorxs), como também havia nas sociedades ocidentalizadas uma noção de sujeito baseada na ideia de uma interioridade psicológica, de pensamentos e sentimentos, que definiam o indivíduo naquilo que tinha de mais precioso e único. Hoje são bilhões de pessoas que constroem seu senso de identidade online, em perfis de redes sociais, utilizam-nos para obter informação e se entreter, e nelas mantém uma parte significativa de seus contatos sociais. Não é que a vida off-line esteja totalmente desconectada da vida online, mas também não corresponde a ela totalmente. Mas assistir a vida passar pelas postagens de amigxs e conhecidxs, principalmente para quem anda triste ou desesperadx, pode dar a impressão que apenas nós não vivemos vidas maravilhosas, com relacionamentos perfeitos, viagens memoráveis, amizades profundas, sucesso profissional, etc. No entanto, aqui e ali, notícias da depressão de pessoas famosas ou do fim trágico e violento de relacionamentos amorosos aparentemente perfeitos rompe momentaneamente a ilusão.
Levada ao extremo, a subjetividade contemporânea globalizada pode ser imaginada como uma superfície refletora sobre a qual a intimidade de cada pessoa se expõe pública e voluntariamente . A metáfora dominante em séculos passados, da identidade pessoal como um núcleo profundo e íntimo, “um eu dentro mim”, inacessível aos demais, vai se tornando lentamente obsoleta. É como se o dever de “publicar ou perecer”, que pesava sobre escritores e mais recentemente sobre cientistas, agora pesasse sobre as pessoas comuns no manejo diário de seus perfis nas redes sociais, como verdadeiras empresárias e empresários de si. Aparentar vai se tornando o valor supremo: o dilema não é mais sobre ser ou ter. Hoje em dia, basta parecer. De certo modo, o número de curtidas e visualizações se tornou um índice de valor e sucesso, e sua ausência, fonte de angústia. E em termos de norma cultural, a aparência digital e a aparência corporal se sobrepõem, como bens que temos o dever de administrar, com investimentos de tempo e dinheiro. Não é por acaso que um tema comum de exibição digital são as imagens de nossos corpos.
O centro do problema é a ideia de que investir no eu é a base da felicidade. A tradição taoista ensina justamente que é a crença em uma identidade pessoal sólida que é a raiz da preocupação e da insatisfação. A vida é fluxo, mudança, naturalmente, sem que tenhamos que buscar isso deliberadamente por meio de uma atualização (upgrade) incessante. E por outro lado, não é preciso esforçar-se para destruir o eu, já que um eu sólido e imutável é uma ilusão. Já faria grande diferença em nosso cotidiano se pudermos relaxar a tensão que deriva do nosso senso de importância própria e levar-nos menos a sério. As práticas meditativas podem nos ajudar a reconhecer isso por meio da experiência e não apenas pelo raciocínio. Como ensina o Clássico da Pureza e da Serenidade (清靜經), em um estado de serenidade, é possível observar mente, corpo e objetos e finalmente perceber que são vazios, no sentido de serem processos e não “coisas” sólidas.