A primavera chegou, trazendo o impulso de renovação do elemento Madeira. Começamos um novo ciclo, aproveitando o movimento do Qì na natureza. E para comemorar, na semana de 4 a 8 de outubro, teremos aulas abertas gratuitas em todas as nossas turmas regulares. Veja o calendário acima e inscreva-se nas aulas de seu interesse na página de aulas no nosso site!
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Para as aulas presenciais, estaremos ao ar livre, no Espaço Mandala do Parque Olhos d’Água, mas seguiremos todas as medidas de segurança habituais: uso obrigatório de máscara e distanciamento social. Traga sua própria garrafa de água e frasco de álcool 70. Por favor, faça sua inscrição para estabelecermos um canal de comunicação eficaz, em caso de algum imprevisto, como chuva.
Na postagem de hoje, damos continuidade ao diálogo entre a tradição taoista e o mundo contemporâneo. Já há algumas décadas o estresse e as doenças dele decorrentes foram consideradas um dos grandes problemas mundiais de saúde pública nas grandes cidades. Mais recentemente, a Organização Mundial da Saúde lançou um alerta sobre os danos causados pelo estresse no ambiente de trabalho. Não é que a tensão e a exaustão fossem desconhecidas de nossos ancestrais. Em sua análise sobre a origem das doenças, o excesso de trabalho foi considerado pela medicina tradicional chinesa como um fator de adoecimento, por desgastar os recursos do organismo, esgotando precocemente o qì e o jīng. Quem deseja viver muito deveria buscar um equilíbrio entre atividade e repouso, não simplesmente entre trabalho e lazer. Essa advertência é uma aplicação elementar da filosofia yīn-yáng ao manejo da saúde e o cultivo da vida. Para que haja equilíbrio, onde há movimento precisa haver também quietude, em uma saudável alternância, um tàijí ☯.
No entanto, em nossos tempos de aceleração constante, de movimento desenfreado, essa questão se tornou mais aparente e urgente. Hoje em dia, são muitos os apelos para a corrida desenfreada: incontáveis estímulos, tarefas, conexões, informações, atividades, desejos de consumo, imperativos da sobrevivência. Agitadxs e nervosxs, acabamos ficando exaustxs, por excesso de trabalho, mas também na tentativa de aliviar a tensão, nos momentos de lazer. Relaxar, uma resposta natural do organismo, que pode ocorrer periodicamente a qualquer momento, tornou-se um luxo, algo que necessita de todo um aparato técnico para ser obtida por alguns instantes. Uma civilização do excesso. Mas onde queremos chegar, correndo assim? Adoecemos e envelhecemos precocemente, antes de poder desfrutar dos resultados de nossos esforços. Como já dizia, repetidas vezes, o mestre Pailin: “pessoas de meia idade, andem devagar” (a caminho do cemitério)!
A população urbana tem desaprendido o valor do silêncio, do repouso, da contemplação. A vida contemporânea é pautada por um verdadeiro horror à quietude, ao espaço vazio, à pausa. E não é simplesmente insensatez individual, mas uma insanidade coletiva, sistêmica. É um imperativo dessa entidade metafísica insaciável, o Mercado: trabalhe, produza, enriqueça, lucre. Mas é também um hábito profundamente entranhado em nossos corpos. Mesmo quando deixamos o ambiente de trabalho, seguimos em uma atividade incessante, nem que seja entreter-se na tela de um dispositivo eletrônico. E assim avançamos, dia a dia, à beira do colapso. Não são apenas trabalhadores e trabalhadores exploradxs que vivem assim, mas também seus patrões. De fato, é preciso estar numa posição muito privilegiada no mundo profissional para poder recusar trabalho, estabelecer limites, desfrutar de horas suficientes de descanso e lazer. Não é uma questão apenas de discernimento individual e sabedoria, mas de condições sociais objetivas.
O filósofo Byung-Chul Han descreve a situação atual em seu livro “Sociedade do Cansaço“. Vivemos em uma sociedade do desempenho, formada por “empresários de si mesmos”(p.23), individualmente responsáveis por seu próprio sucesso ou fracasso, que naufragam na depressão quando não conseguem cumprir a obrigação de ter sucesso. Essa exigência constante de sucesso, visibilidade, produtividade é que nos leva à exaustão. O excesso exaustivo de desempenho tornou-se sinônimo de investir na própria carreira e até na própria vida, uma forma de autoexploração. Daí a epidemia de depressão, como “cansaço de fazer e de poder”(p.29), numa sociedade em que é preciso poder tudo. O excesso não está somente no trabalho, mas também nos estímulos, informações e desejos. Daí, uma atenção dispersa, incapaz de contemplar, que se entendia com facilidade e odeia o tédio. Han faz um elogio à contemplação profunda e ao lento, que embora não se refira às práticas taoistas e sua arte da existência, bem que podem nos servir aqui: “Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. […] No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas” (p. 36).
Séculos antes da crise civilizatória atual, a tradição taoista já havia descoberto o valor da contemplação, cultivada na imobilidade do corpo por meio da meditação, e nos movimentos suaves e lentos das técnicas que hoje chamamos de qìgōng e tàijíquán, mas cujos princípios são muito mais antigos que esses nomes modernos. Silêncio e quietude, não como conceitos abstratos, mas como experiências saboreadas com o corpo. A serenidade não só como aspecto de um caminho contemplativo, se preferirem espiritual, mas como parte integrante do cultivo da vida, da boa saúde, aqui compreendida como equilíbrio dinâmico, não como justificativa para a obsessão pela boa forma.
O fundamento taoista do pensamento chinês que é a base da medicina tradicional e do qìgōng de longevidade é uma filosofia do movimento, da mudança. Como compreensão da vida, e aqui se incluem tanto concepções de natureza como de corpo humano, o conceito de qì é central. Mas, afinal, o que é qì?
Uma maneira prática de tratar o assunto é entender o qì como uma linguagem dos antigos chineses para descrever as qualidades de diferentes fenômenos naturais: um organismo vivo, uma paisagem, um fenômeno climático, um alimento ou planta medicinal, inclusive um corpo humano, uma pessoa, sua condição de saúde ou doença, etc. Não se trata de algo no campo da crença. Não é preciso “acreditar em qì” como se fosse algum tipo de entidade metafísica. Embora esse conceito remeta ao aspecto invisível dos fenômenos naturais, que move ou anima, o qì se percebe com os sentidos, é algo que se sente, como qualquer artista marcial, praticante de qìgōng, especialista em fēngshuǐ ou acupunturista pode atestar. De fato, aprender qualquer um desses conhecimentos tradicionais chineses é familiarizar-se na prática com isso.
O caractere mais frequentemente utilizado para representar qì (氣), deriva historicamente do caractere vento (風), o que levou alguns estudiosos, especialmente da escola francesa, a descrever o qì como sopro. Em sua estrutura, é formado pelos caracteres para vapor e arroz, conotando um aspecto sutil do ar e dos alimentos. Há também outro caractere para qì (炁) que consta dos talismãs taoistas e que, segundo a explicação do mestre Pailin, remete ao aspecto yáng de luminosidade e calor: fogo do Céu. Em geral, o conceito de qì tem sido traduzido para línguas ocidentais como “energia”, “vitalidade” ou “força vital”, inclusive em traduções conceituadas de textos clássicos chineses, manuais de medicina tradicional e na transmissão oral de muitos mestres chineses.
Especialistas dos Estudos Chineses, como a francesa Elizabeth Rochat de la Valée ou o brasileiro Orley Dulcetti Júnior, apontam que qì se refere à capacidade de movimento e transformação. Ou seja, é a chave para entender todos os fenômenos naturais da perspectiva chinesa. Apesar de muito usados, termos como energia, vitalidade e força vital são alheios ao pensamento chinês antigo. Derivam de tendências do pensamento científico e filosófico europeu e foram utilizados desde as primeiras traduções dos clássicos chineses para línguas ocidentais, ainda no século XVIII. Esses termos podem ser úteis por serem familiares, mas trazem consigo armadilhas, pois nos levam para o terreno da crença ou da tentativa de demonstração da existência objetiva de uma força ou substância, às vezes até apelando para uma confirmação por parte da ciência experimental ocidental.
Mestre Liu Pailin era bastante taxativo ao afirmar que os métodos taoistas que ensinava era baseados em um conhecimento da natureza, a essência da civilização chinesa, sem uma conotação mística ou religiosa. Desde a perspectiva da tradição taoista, uma boa maneira de compreender o que é qì é pela experiência pessoal com os treinamentos de qìgōng,tàijíquán, dǎoyǐn, meditação, etc. Praticando, desenvolvemos uma nova sensibilidade corporal e aprendemos a perceber o qì por meio de certas sensações descritas pela tradição (frio, calor, peso, formigamento, corrente elétrica, fluxo, vibração) que surgem espontaneamente durante os treinamentos. Além disso, os estudos de antropologia dos sentidos e antropologia da corporeidade podem ser ferramentas úteis para entender esses fenômenos e nos familiarizar com esse importante conceito chinês.
Na postagem de hoje, gostaria de relacionar a prática do Tao ao seu potencial para recuperação da saúde e da sanidade, particularmente na superação de situações traumáticas. Como bem sabe quem se dedica à prática de qigong, taiji e medicina chinesa, ou ao estudo da filosofia que fundamenta essas práticas, vida é fluxo. As capacidades de movimento, de transformação e de adaptar-se às circunstâncias do presente, são as características dos processos naturais de manutenção da vida em um organismo sadio, mas também de uma subjetividade sã. Portanto, a fluidez é uma das características do Tao, 0 Caminho Natural. No nível do organismo, o livre fluxo de qì e sangue, combinado ao equilíbrio qualitativo e quantitativo entre as diferentes substâncias vitais é a base da saúde. No nível da consciência, a serenidade, o coração tranquilo, sensível e empático, mas livre de emoções excessivamente intensas e duradouras, éa base da sanidade. Conforme o pensamento chinês, não se trata de duas coisas separadas, mas de aspectos interdependentes de uma mesma totalidade, que se influenciam mutuamente.
Mas há momentos em que eventos abruptos da vida abalam nossas frágeis ilhas de sanidade: situações de dor intensa ou de adoecimento grave; ameaças à nossa vida e integridade; conflitos sérios em relacionamentos significativos; adversidades que abalam as fundações de qualquer senso de segurança. Em momentos assim, perdemos a capacidade de fluir e agir espontaneamente, seja por nos agarrarmos à nossa dor, seja por repetirmos, fora de contexto e de proporção, atitudes que já foram momentaneamente uma tentativa válida de nos proteger e sobreviver a uma tragédia. Perdemos contato com os processos dinâmicos da vida, nossa sensibilidade ao presente e aos outros seres fica comprometida. Um corpo enrijecido por uma lesão ou sua memória dolorosa, um coração fechado. E mais dor e confusão, por repetição de padrões disfuncionais. E por isso nos distanciamos do fluxo espontâneo da vida.
E como o cultivo do Tao pode nos ajudar a recuperar a fluidez, a capacidade natural de movimento e transformação? A primeira chave é a capacidade de relaxar. No estado de relaxamento, a capacidade de autorregulação do corpo é potencializada. As feridas cicatrizam mais rápido, o coração reaprende a ser leve. Como vimos em postagens anteriores, o relaxamento é um benefício tanto dos exercícios suaves do qigong, do taijiquan e práticas afins, quanto da meditação sentada, desde que praticados com constância e com orientação adequada. A segunda chave é o movimento harmônico – no sentido de rítmico, contínuo e fluido – que promove o alinhamento e o alongamento do corpo, ao mesmo tempo que incrementa a circulação de qì e sangue, restaurando seu fluxo correto. Para a mtc, um traumatismo físico, por exemplo, resultante de uma queda ou pancada, pode resultar em uma “síndrome de obstrução dolorosa”, um bloqueio que causa dor e limitação de movimento. Os exercícios previnem e tratam esses bloqueios, mas em casos mais graves, podemos usar todo o repertório da medicina chinesa – acupuntura, moxa, ventosas, ervas – para potencializar a recuperação. A terceira chave é habituar-se, por meio da meditação, a um estado mental ao mesmo tempo alerta e descontraído. É nesse estado que aprendemos a soltar a dor, a mágoa e as memórias de eventos perturbadores, reconectando-nos com a vivacidade do presente, pleno de novas possibilidades.
Essa explicação só aponta a direção, mas não substitui a prática com um/a professor/a qualificado/a. Somente com a experiência é possível saborear os benefícios maravilhosos.
Na postagem de hoje, o objetivo é tornar acessível ao público leigo o valor de dois conhecimentos tradicionais chineses: o Taichi e a acupuntura. A tarefa exige um caminho antropológico: um tentativa de tradução cultural. E a pergunta que pretendo responder é a seguinte: como explicar o sentido e a finalidade dessas duas práticas para um público formado numa visão biomédica de saúde e numa visão “fitness” de exercício? A resposta se destina a esse público, ou a praticantes e especialistas das práticas chinesas que estão em busca de formas simples de tornar a sua atividade compreensível para essas pessoas.
O benefícios do Taichi e da medicina tradicional chinesa são mundialmente conhecidos e inclusive comprovados por pesquisas na área de saúde, como pode ser constatado consultando as plataformas de artigos científicos e também alguns livros destinados a um público mais amplo. Ao longo de várias postagens anteriores, tentei tornar essas informações acessíveis, como nas séries Medicina Tradicional Chinesa e Benefícios da Prática em Detalhes. No entanto, os conhecimentos tradicionais chineses se baseiam em princípios muito diferentes daqueles que fundamentam tanto a medicina convencional ocidental quanto as formas mais comuns de atividade física ocidental, ambas baseadas na mesma concepção (cartesiana) de corpo, entendido como “máquina maravilhosa”.
Em primeiro lugar, a medicina tradicional e os exercícios chineses para saúde e longa vida não se baseiam em uma separação entre corpo e mente: o aspecto material e “energético” de nosso corpo e a nossa consciência formam uma unidade dinâmica e complexa. Muito antes da ciência ocidental ter desenvolvido uma medicina psicossomática, os antigos chineses já haviam correlacionado os processos emocionais e o equilíbrio fisiológico, tanto em suas concepções de saúde, quanto de doença. Assim, tanto um desequilíbrio funcional pode implicar desequilíbrio emocional, quanto emoções excessivamente intensas e prolongadas podem ocasionar disfunções no nível fisiológico. Além disso, além dos componentes materiais do corpo, estruturas anatômicas, tecidos, órgãos e vísceras, os antigos chineses entenderam que o corpo é também composto por aspectos mais sutis, não perceptíveis diretamente, mas identificáveis qualitativamente, pelas condições de um determinado corpo.
Dentre estes aspectos sutis, talvez o conceito mais central seja o de qì (氣 ou 炁), normalmente traduzido como “energia”, “força vital” ou “vitalidade”. A discussão entre especialistas em filosofia chinesa e medicina tradicional tem questionado essas traduções, por sua imprecisão, ou melhor, porque as três noções mencionadas acima são alheias ao pensamento chinês e derivam respectivamente da física newtoniana e da filosofia vitalista, ambas de origem europeia.
Uma maneira relativamente simples de explicar a noção de qì é relacioná-la à capacidade de movimento e transformação, no corpo humano e na natureza em geral. Assim, todos os processos da vida, humana, animal e vegetal, animada e inanimada, podem ser descritos em termos de qualidades e quantidades distintas de qì.
Voltando ao nosso tema, toda a medicina chinesa, mas também o taichi, podem ser descritos como uma ciência tradicional do qì, ou se preferirem, um “trabalho sobre o qì” (qìgōng 氣功 ou 炁功).
Mais precisamente, o que faz a acupuntura ao tratar uma doença é primeiro entender a natureza de uma doença específica como um tipo processual de desequilíbrio do qì, seja pela invasão do corpo por um fator patogênico externo (calor, frio, umidade, secura), seja por um desequilíbrio dos tipos de qì associados aos órgãos e vísceras (segundo a teoria dos cinco movimentos, metal, água, madeira, fogo e terra), seja por fatores alimentares, de estilo de vida ou emocionais. E, em seguida, utilizar as agulhas ou outros métodos) para regular o qì, removendo excessos, bloqueios que prejudicam seu livre fluxo, e/ou suplementando deficiências. Portanto, o objetivo da medicina chinesa é apoiar os processos de autorregulação presentes no próprio organismo.
Já o Taichi, e outros exercícios tradicionais chineses, podem ser pensados como qìgōng (氣功), formas cultivar o qì: circular, equilibrar, captar, acumular, etc. A lógica não é a do esforço, performance e exercício estenuante, ao contrário dos exercícios físicos convencionais. Ao contrário, são práticas lentas e suaves que promovem o desenvolvimento gradual e a preservação das capacidades corporais, trabalhando de forma suave e inteligente a força, a flexibilidade, o equilíbrio, a respiração natural e sobretudo a consciência corporal e a serenidade.
Na postagem de hoje sobre os benefícios da prática em detalhes, o assunto é a sua dimensão meditativa que, entre outros aspectos, tem efeitos na saúde cerebral e psicológica. Treinar taijiquan (e outros exercícios análogos, como qigong), além dos benefícios para a saúde descritos nas postagens anteriores, é também uma maneira dinâmica de cultivar uma qualidade meditativa por meio do movimento circular, lento e rítmico, a atenção total ao momento presente. Além disso, a respiração abdominal profunda propicia um aumento do relaxamento e do equilíbrio emocional. Utilizando os termos mais tradicionais para descrever a prática, o taijiquan e exercícios com princípios similares permitem cultivar ao mesmo tempo movimento e serenidade, equilibrando yin e yang. Cultivar e equilibrar o qì, alinhar a postura, manter o corpo forte e flexível, tudo isso contribui para uma sensação de bem-estar e estabilidade existencial.
Embora, ao falar em meditação em uma tradição de origem asiática, a primeira imagem a surgir na imaginação do público não especializado, com certa razão, é de alguém sentado no chão de pernas cruzadas, ao se comparar budismo e taoismo, observamos também que há métodos de meditação que utilizam posturas deitadas, de pé e mesmo em movimento, como a meditação andando budista, ou os exercícios com movimentos suaves desenvolvidos no contexto taoista. Inclusive há métodos para praticantes mais experientes, que visam manter a consciência meditativa durante todas as atividades cotidianas, contrastando cada vez menos a sessão formal de meditação e o viver.
No entanto, para iniciantes, o melhor é ter um momento específico e regular para desenvolver o hábito de estar presente no próprio corpo e completamente atentx à atividade que realiza naquele momento. Isso é particularmente precioso nas sociedades contemporâneas, cujo estilo de vida predominante, com suas intermináveis solicitações externas e distrações, forma pessoas cronicamente inquietas e distraídas. A incapacidade de relaxar, fazer silêncio e manter o foco sem tensão são problemas cada vez mais comuns nas grandes cidades. E uma boa parte das doenças crônicas contemporâneas tem como raiz o estresse. Considerando que o taijiquan (e similares) é uma alternativa não medicamentosa, livre de efeitos colaterais, simples e barata para os males do estresse atual, já dá uma ideia do valor desse verdadeiro patrimônio cultural da humanidade.
Pesquisas científicas nas áreas de saúde tanto revolucionaram a compreensão das relações entre mente e cérebro, quanto demonstraram os benefícios da prática para a saúde. Mais uma vez, refiro-me às contribuições do Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard para detalhar alguns desses aspectos. Em primeiro lugar, é importante mencionar a hipótese da neuroplasticidade: conforme o conhecimento atual das neurociências, sabe-se que novas células cerebrais crescem a vida toda e que nossos hábitos e desafios de vida constantemente remodelam as conexões cerebrais. Algumas pesquisas na área citadas por esses autores, indicam que exercícios psicossomáticos têm um efeito na saúde cerebral e não só nas demais capacidades físicas mencionadas em postagens anteriores, como equilíbrio, força, flexibilidade e coordenação motora, mas também em funções cognitivas como percepção, memória, atenção e no equilíbrio emocional. Particularmente, o taijiquan pode ser um importante recurso para preservar nossas faculdades físicas e mentais enquanto envelhecemos. As pesquisas em neurociência indicam que a prática regular de exercícios que estimulem corretamente o cérebro com novas aprendizagens – como tocar um instrumento musical, falar um novo idioma, fazer taijiquan ou dançar – favorecem o crescimento de novas células cerebrais, novas conexões neurais e a produção de neurotransmissores e neurorreceptores. E consequentemente podem ser uma ótima forma de manter a saúde cerebral por toda a vida. Citando vários estudos sobre os benefícios do taijiquan sobre a função cognitiva, os mesmo autores concluíram o seguinte: “O impacto do taiji sobre a função cognitiva pode ser atribuído, em parte aos seus efeitos sobre o condicionamento físico. […] No entanto, e de particular relevância para o taiji, estudos recentes indicam que os benefícios do exercício para a função cognitiva não se devem unicamente à aptidão cardiovascular, mas também à aptidão motora, que inclui equilíbrio, velocidade, coordenação, agilidade e força”(Wayne, Fuerst, 2016, p. 222). Outro ponto é que o exercício moderado parece ter um efeito maior de proteção contra perdas nas funções cognitivas, inclusive contra Alzheimer, do que exercícios extenuantes. No caso do taiji, uma vantagem adicional é a redução do estresse e a angústia, bem como o aumento da capacidade de lidar com situações potencialmente estressantes. E ainda, o aspecto imaginativo da prática tem um efeito cerebral complementar ao aspecto mais físico, com importantes efeitos sobre o cérebro e sobre o desempenho corporal. Acrescento a isso, que o conhecimento neurofisiológico acerca da meditação permite afirmar que sua prática regular beneficia as funções cognitivas, inclusive alterando a estrutura cerebral, e reduz o estresse.
Por fim, os autores concluem que, além dos aspectos citados acima, os benefícios do taiji decorrem também do fato que a prática coletiva permite aprender novas habilidades, participar de atividades de lazer e estabelecer vínculos sociais, tudo isso contribuindo para prevenir e retardar perdas da função cognitiva devido ao envelhecimento.
Na postagem de hoje dessa série, o tema é a respiração. Respirar faz parte do fluir fundamental da vida, como tantos outros ritmos e pulsações indispensáveis à existência corporal, expressões da alternância de yin e yang no nosso microcosmo pessoal. A qualidade da respiração está diretamente relacionada à saúde e disposição vital, consequentemente à longevidade, mas também ao nosso equilíbrio emocional. Um respiração curta, entrecortada e superficial está associada não apenas a baixa vitalidade e mesmo a certos processos de adoecimento, como também correspondente a estados de agitação mental e angústia.
Ainda que, nas linhagens taoistas que pratico, a transmissão oral não descreve muitas formas de qigong e o próprio taijiquan como “exercícios respiratórios”, pois o cultivo do qi nem sempre está associado à troca gasosa, ambos têm um efeito benéfico sobre a respiração, por desenvolverem o hábito da respiração abdominal lenta, o que afeta positivamente a capacidade respiratória, a saúde cardiovascular, a regulação do sistema nervoso e o refinamento da percepção. Além disso, do ponto de vista tradicional, o fluxo harmônico do qì beneficia a circulação do sangue e propicia a autoregulação de todos os sistemas do corpo.
Referindo-me mais uma vez às pesquisas médicas sobre respiração e os benefícios do taijiquan e práticas análogas (como qigong), o Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard faz relações entre capacidade e saúde respiratória e expectativa de vida, bem como ressalta a diminuição potencial da função respiratória devido ao envelhecimento. Isso resulta de alterações na estrutura da caixa torácica, na diminuição da elasticidade do pulmões, ambos fatores contribuindo para redução da qualidade da troca gasosa. E, em todas as idades, alterações emocionais e estresse podem impactar negativamente na qualidade da respiração.
Além disso, a mesma fonte explica de que modo esses exercícios chineses podem ser benéficos para a respiração. O aspecto fundamental é que o padrão respiratório que se transforma em hábito por meio da prática regular desses exercícios é a respiração abdominal (com foco no dantian inferior) lenta e suave, favorecida pelo ritmo dos exercícios executados com consciência e pelo uso da imaginação associada à respiração. Além da troca gasosa, a respiração também massageia os órgãos internos e equilibra o sistema nervoso e consequentemente as emoções. Pesquisas médicas citadas pelos autores sugerem que a prática de Taiji melhora e retarda perdas da função respiratória, inclusive sendo benéfica no tratamento de doenças respiratórias como asma e doença pulmonar obstrutiva crônica. O aspecto meditativo da prática é eficiente na redução do estresse, no aumento do relaxamento e em promover melhorias no humor.
Nessa nova postagem da série, damos continuidade ao detalhamento de alguns dos inúmeros benefícios da prática. E dessa vez o assunto é o coração. Na medicina tradicional chinesa, o coração é descrito como o “monarca” dentre os órgãos e vísceras, e a sede da consciência, ou termos chineses do shén (神). Dada a sua importância, um dito taoista afirma que “todas as doenças se iniciam no coração”, recomendando cautela diante de qualquer desequilíbrio que atinja esse órgão, seja por fatores externos, por desequilíbrio do qì do demais órgãos, por alimentação inadequada ou por desequilíbrios emocionais.
De modo análogo, o Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard ressalta que, além das suas óbvias funções relativas à circulação sanguínea, a medicina ocidental tem também reconhecido as relações do coração com o sistema nervoso, endócrino e imunológico. Não é por acaso que os problemas cardiovasculares sejam uma das maiores causas de doença e morte em escala mundial. E disso decorre a recomendação que se adote um estilo de vida favorável à saúde cardiovascular, prevenindo fatores de risco como hipertensão, colesterol alto, estresse, etc. A mesma fonte aponta o taiji (e podemos acrescentar, mais uma vez, exercícios com princípios similares, como o qigong de longevidade) como uma eficaz forma não medicamentosa de prevenção e reabilitação de doenças cardiovasculares, por combinar exercício, redução de estresse, equilíbrio emocional, capacidade respiratória e por sua prática coletiva proporcionar um espaço de convívio social. E menciona várias pesquisa médicas que corroboram essas afirmações.
Resumindo os argumentos, há alguns aspectos notáveis: 1) o taiji (e o qigong) é uma forma segura de exercício aeróbico, cuja intensidade (dependendo do ritmo e das posturas) é adaptável a praticantes com diferentes níveis de condicionamento físico (do paciente de cardiopatia ao atleta); executado de forma moderada, seu impacto comparável a uma caminhada. 2) por suas qualidades meditativas, o exercício reduz o estresse, a depressão e a ocorrência de explosões de raiva, pois tem um efeito regulador do humor e das emoções. 3) a respiração profunda característica do exercício favorece a atividade conjunta do coração e dos pulmões, bem como contribui para reduzir a pressão arterial, melhorar a circulação e acalmar.
Dando continuidade a série dos benefícios da prática, a postagem de hoje aborda seu efeito sobre dores e desconfortos. Do ponto de vista da medicina chinesa, a dor e diversos tipos de desconforto corporal estão associadas à estagnação e ao bloqueio da livre circulação de qì e sangue. Tais bloqueios podem ser causados por traumatismos e lesões, mas também por fatores climáticos, alimentação inadequada e desequilíbrios emocionais. Dentre os diversos métodos tradicionais (acupuntura, moxabustão, ventosaterapia, guasha, massagem, etc.) utilizados para aliviar o problema, estão os exercícios terapêuticos, como taijiquan e qigong, por sua notória capacidade de incrementar a boa circulação, a quantidade e qualidade de qì, um aspecto importante para manter a saúde, segundo a medicina chinesa.
O Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard menciona pesquisas na área médica que reforçam a ideia que movimentos podem ser um tratamento eficaz indicado para dor, inclusive em casos crônicos. Particularmente movimentos suaves, como os dos exercícios terapêuticos chineses ou do yoga indiano, por aumentarem a força, a flexibilidade, melhorarem o alinhamento, a respiração e produzirem bem estar. A mesma fonte afirma que a dor é um dos motivos mais frequentes para se buscar médicos e a maior razão para uso de medicamentos. Enquanto a dor aguda é um recurso evolutivo para proteger a integridade do organismo, a dor crônica é disfuncional, mais difícil de explicar e de tratar do ponto de vista da medicina ocidental convencional. Resumindo uma discussão complexa, digamos que as dores crônicas podem resultar de uma combinação de lesão, inflamação, hipersensibilidade de certas áreas do corpo e enrijecimento do tecido conjuntivo, além de componentes psicossomáticos. Embora analgésicos possam aliviar a dor, podem também ter efeitos colaterais desagradáveis, além de não tratarem a causa da dor.
O alongamento e fortalecimento dos tecidos, combinados à melhoria da circulação no local doloroso são alguns dos benefícios dos movimentos lentos e suaves dos exercícios citados acima, além de melhorar a respiração e o estado de humor. O cultivo do alinhamento postural e consciência do peso, o princípio de abrir a articulação do quadril (kuà 胯), o alinhamento dos pés, o princípio de “não forçar”, o movimento coordenado a partir do centro de gravidade do corpo – característicos do tajiquan e do qigong de longevidade -, tudo isso pode prevenir o desgaste das articulações e fortalecer os músculos e tendões sem expor esses tecidos a lesões por esforço excessivo ou movimento abrupto. A respiração abdominal tem efeito relaxante, além de melhorar a circulação. Além disso, o aspecto meditativo da prática tem um efeito de redução de estresse favorável à redução da dor.
Em particular, no caso de nossa linhagem, ainda que todo treino de movimento de seu repertório tenha benefícios globais semelhantes, além do taijiquan e das diversas formas de qigong, destaco também os “Exercícios para a Flexibilização das Nove Dobras” e “As Oito Formas para Alongamento dos Tendões”, da transmissão do mestre Liu Pailin, como exercícios destinados ao público em geral para recuperar a flexibilidade dos tendões e músculos, bem como a mobilidade das articulações, eficientes na remoção de bloqueios e limitações de movimento, ao mesmo tempo simples e de fácil execução.