O Tao e a subjetividade contemporânea

Um texto antigo como o Daodejing (道德經) já mencionava o apego a uma identidade sólida e a busca da fama como uma fonte de angústia: “Prestígio é inferior/ Ao obtê-lo ficamos assustados / ao perdê-lo ficamos assustados”(poema 13). No entanto, talvez em nossa época, o desejo de ser visto/a e admirado/a chegou a um novo patamar. E esse é o tema de hoje.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Um dos aspectos intrigantes do mundo contemporâneo é como novas condições sociais decorrentes dos processos globais favoreceram o surgimento de certo tipo de subjetividade coletiva. Além do aumento da velocidade, da fluidez, da instabilidade e consequentemente da imprevisibilidade da vida das populações urbanas globais, como vimos em uma postagem anterior, o desenvolvimento recente das tecnologias de comunicação tornou possível o acesso a uma quantidade e diversidade de informação nunca antes vista na história da humanidade, mas também um nível de exposição da intimidade e da vida cotidiana em escala inteiramente nova.

“Trailing lights”, foto de pranab.mund , licenciada por Creative Commons CC BY-SA 2.0

Isso tornou possível a promessa de uma rápida ascensão de pessoas comuns à fama e à visibilidade pública, particularmente por meio das mídias sociais, como apontou a pesquisadora argentina Paula Sibilia. E testemunha a passagem de uma subjetividade da interioridade a uma nova subjetividade exteriorizada. Antes da popularização da internet e da miniaturização das tecnologias multimídia em dispositivos portáteis, não só havia uma clara distinção entre os emissores das mensagens (mídia impressa, rádio, TV, cinema) e o público receptor (leitorxs, ouvintes, expectadorxs), como também havia nas sociedades ocidentalizadas uma noção de sujeito baseada na ideia de uma interioridade psicológica, de pensamentos e sentimentos, que definiam o indivíduo naquilo que tinha de mais precioso e único. Hoje são bilhões de pessoas que constroem seu senso de identidade online, em perfis de redes sociais, utilizam-nos para obter informação e se entreter, e nelas mantém uma parte significativa de seus contatos sociais. Não é que a vida off-line esteja totalmente desconectada da vida online, mas também não corresponde a ela totalmente. Mas assistir a vida passar pelas postagens de amigxs e conhecidxs, principalmente para quem anda triste ou desesperadx, pode dar a impressão que apenas nós não vivemos vidas maravilhosas, com relacionamentos perfeitos, viagens memoráveis, amizades profundas, sucesso profissional, etc. No entanto, aqui e ali, notícias da depressão de pessoas famosas ou do fim trágico e violento de relacionamentos amorosos aparentemente perfeitos rompe momentaneamente a ilusão.

Levada ao extremo, a subjetividade contemporânea globalizada pode ser imaginada como uma superfície refletora sobre a qual a intimidade de cada pessoa se expõe pública e voluntariamente . A metáfora dominante em séculos passados, da identidade pessoal como um núcleo profundo e íntimo, “um eu dentro mim”, inacessível aos demais, vai se tornando lentamente obsoleta. É como se o dever de “publicar ou perecer”, que pesava sobre escritores e mais recentemente sobre cientistas, agora pesasse sobre as pessoas comuns no manejo diário de seus perfis nas redes sociais, como verdadeiras empresárias e empresários de si. Aparentar vai se tornando o valor supremo: o dilema não é mais sobre ser ou ter. Hoje em dia, basta parecer. De certo modo, o número de curtidas e visualizações se tornou um índice de valor e sucesso, e sua ausência, fonte de angústia. E em termos de norma cultural, a aparência digital e a aparência corporal se sobrepõem, como bens que temos o dever de administrar, com investimentos de tempo e dinheiro. Não é por acaso que um tema comum de exibição digital são as imagens de nossos corpos.

detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

O centro do problema é a ideia de que investir no eu é a base da felicidade. A tradição taoista ensina justamente que é a crença em uma identidade pessoal sólida que é a raiz da preocupação e da insatisfação. A vida é fluxo, mudança, naturalmente, sem que tenhamos que buscar isso deliberadamente por meio de uma atualização (upgrade) incessante. E por outro lado, não é preciso esforçar-se para destruir o eu, já que um eu sólido e imutável é uma ilusão. Já faria grande diferença em nosso cotidiano se pudermos relaxar a tensão que deriva do nosso senso de importância própria e levar-nos menos a sério. As práticas meditativas podem nos ajudar a reconhecer isso por meio da experiência e não apenas pelo raciocínio. Como ensina o Clássico da Pureza e da Serenidade (清靜經), em um estado de serenidade, é possível observar mente, corpo e objetos e finalmente perceber que são vazios, no sentido de serem processos e não “coisas” sólidas.

Modo de vida taoista: 12. mínimo esforço = máxima eficiência

Na postagem dessa semana, damos continuidade aos temas do modo de vida taoista. Se é importante reduzir o esforço desnecessário e aprender a relaxar, isso não se confunde com uma espécie de elogio à preguiça nem com a suposição equivocada de que o universo irá prover tudo sem que se tome as medidas necessárias. Obviamente, dentre as medidas necessárias, podemos incluir a paciência, para agir apenas no momento certo. E a sensibilidade para perceber o que fazer e como fazer. Essa decisão depende de uma capacidade de sentir o potencial da situação e agir com precisão sobre as forças que se direcionam a um determinado resultado. Não se trata de uma decisão tão calculista e deliberada, mas de uma sintonia com o momento presente, que não necessita de um autor da ação, alguém que se identifica com o resultado. Mas ao contrário, que age como se ninguém estivesse fazendo nada em especial.

A ideia é de um estilo de ação que busca os espaços de mínima resistência. Zhuangzi (莊子) utiliza a imagem magistral do cozinheiro do príncipe Wen Hui, destrinchando a carne de um boi. Ao cortar exatamente “na linha natural”, “no espaço oculto”, “como uma brisa”, o fio da lâmina não se desgasta. Do mesmo modo, o elogio de Laozi (老子) à água nos poemas 8 e 78 do Daodejing (道德經) refere-se justamente à sua suavidade e capacidade de adaptar-se, fluir, preencher os espaços vazios, uma excelente metáfora da ação em conformidade com o Tao.

O paradoxo dessa ação eficaz e aparentemente sem qualquer esforço, é que resulta, para imensa maioria das pessoas, de um aprendizado longo, de treinamento constante. Aprendemos o Tao por meio da constância. O ideograma de mesmo nome ䷟, composto pelo trovão (☳) acima e o vento (☴) abaixo, representa o movimento incessante, uma combinação de iniciativa externa e suavidade interna, entre outras possibilidades de interpretação. Pela prática repetida e pelo desenvolvimento gradual, é possível chegar a um nível de maestria que não é o da virtuose, mas sim o da não ação (無為).


Compreender o Tao: 1. ponto de partida

Hoje inicio uma série de postagens, intitulada compreender o Tao. Além da óbvia distância cultural entre a tradição taoista e o horizonte cultural primário de praticantes não chineses e não chinesas, de nações ocidentais ou do hemisfério sul, como a nossa, existe um problema ainda mais básico. Em função de uma história de modernização e ocidentalização em escala mundial, o que não pode ser descrito pela linguagem de forma precisa nem compreendido por meio do intelecto tende a ser desconsiderado. E é justamente disso que trata o taoismo: o indizível que pode ser vivenciado. Transcrevo abaixo os dois primeiros versos do texto fundante da tradição taoista, o Daodejing (道德經), na tradução do mestre Liu Pai Lin e de Jerusha Chang:

“O Tao descrito como o Tao não é o verdadeiro Tao.

O inominável nenhum nome pode nomear” (Daodejing, poema 1).img_36531-e1524669487821.jpg

(Acima: o sentido da estrutura do pictograma, segundo mestre Liu Pai Lin. Ilustração originalmente publicada em: Saúde Longevidade, caderno 1, São Paulo, Associação Tai Chi Pai Lin, 1994, p. 16).

O pictograma Dào (道) é normalmente traduzido como “caminho”. O sentido do termo já foi debatido à exaustão tanto por estudiosos e estudiosas, como por praticantes taoistas. De forma aproximativa, remete a uma ideia de ordem cósmica, formulada em termos de padrões cíclicos, ao estado natural, ao mistério da vida, etc. Mas, o paradoxo é que Laozi afirma explicitamente que não é possível descrevê-lo. Ou seja, as palavras e o intelecto não são suficientes para realmente compreendê-lo. Pode ser reconhecido por meio da experiência meditativa e da contemplação dos fenômenos da natureza. Aqui, como em outras tradições contemplativas, os conceitos, as palavras, são meramente indicadores da direção a seguir.

Estéticas da Existência em Fluxo: Corporeidade Taoista e Mundo Contemporâneo

Estéticas de Existência em Fluxo é o título de outro artigo que publiquei em 2011 na revista Ciências Sociais e Religião. Nele, refleti sobre a relevância da tradição taoista no mundo atual, ao se difundir fora da China e das comunidades chinesas da diáspora. Resumindo em umas poucas linhas, o argumento é que o taoismo proporciona uma linha de fuga à instabilidade das condições da vida urbana contemporânea, acirradas pelo capitalismo de consumo e pela privatização do bem público. Fora de apropriações consumistas superficiais, o taoismo poderia ser lido como uma verdadeira “arte da existência”. Seu modo de vida, avesso à aceleração e ao consumismo característico das formas vigentes de capitalismo. Quando bem sucedido, o treinamento taoista favorece uma reorientação existencial  em decorrência do aprendizado corporal consistente: aprender a perceber,  mover-se e sentir de um novo modo, implica aprender a ser. Relaxar toda tensão e esforço desnecessário, desfrutar dos prazeres da vida sem se exaurir, equilibrar atividade e repouso. São várias as metáforas clássicas, presentes no Daodejing (道德經) para expressar o viver em consonância com o Tao: a espontaneidade, maleabilidade e energia inesgotável de uma criancinha,  a perfeição da madeira bruta, a fluidez da água…

Qiedong fall