Clássicos: : 5. O I Ching como professor

A postagem de hoje retoma a série clássicos. Mais uma vez, o tema é o Yìjīng (易經). Tanto um comentarista clássico, como Confúcio, como a transmissão oral que recebi, inaugurada no Brasil por mestre Liu Pai Lin, afirmam que o texto contém os segredos do Céu e da Terra. Sendo uma das principais referências tradicionais para compreender a filosofia yīn-yáng, o clássico pode, por isso mesmo, ser tratado como um professor que poderia nos iniciar na compreensão, desde que saibamos escutá-lo.

Por sua vez, para isso, uma via tradicional é a da transmissão oral. Uma pessoa viva, que encarna a experiência da compreensão e a exemplifica com sua presença corporal, aponta o caminho a seguir. De posse desse entendimento, podemos começar um diálogo com o “Clássico das Mutações”.

Como assinalou François Jullien em seu ensaio sobre o Yìjīng (易經), Figuras da Imanência, embora seja conhecido como um livro, o “Clássico das Mutações” começou sem palavras: um livro feito de linhas, ou como ele prefere dizer, traços. Nas duas linhas, contínua ou partida, está resumido tudo: yáng, movimento, firmeza, luminosidade, etc.; yīn, quietude, maleabilidade, obscuridade, etc.

Em combinações sucessivas, de duas, três e seis linhas, está codificada toda a cosmologia taoista. Em última instância, o que temos aqui é uma elaboração sofisticada do símbolo do Tàijí (太極)☯. Em poucas palavras, todos os fenômenos que ocorrem nos níveis da Terra, do ser humano e do Céu, podem ser sinteticamente descritos como diferentes combinações destes dois aspectos complementares, opostos, indissociáveis, em perpétua alternância. Compreender isso é a porta de entrada para uma compreensão do mundo que rompe totalmente com a noção de essência, no sentido que a metafísica ocidental deu ao termo. Aqui temos uma filosofia do movimento, da transformação, do jogo de forças. Um filosofia da fluidez.

Pintura da exposição temporária sobre os imortais. Acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

Sendo imagens de seis linhas, como um código de barras, quem criou os hexagramas usou vantajosamente a abstração, pois cada combinação de trigramas contém em si múltiplas possibilidades de interpretação, como é ilustrado na “Discussão dos Trigramas” que é parte das chamadas “Dez Asas”, a coletânea de comentários explicativos ao Clássico, escritos por Confúcio. Nesse texto, em particular, ficam evidentes as múltiplas possibilidades de significação de cada um dos trigramas, isto é, os oito conjuntos de três linhas que representam os fenômenos básicos da natureza, como vimos antes.

Por meio dessas imagens, o Clássico nos dá a ver, ou perceber, o mundo como jogo incessante de yīn e yáng. Uma maneira um tanto simplificada de explicar isso: digamos que é como se os antigos chineses tivessem inventado, milênios antes de nossos computadores, uma descrição da natureza em termos de um código binário, onde yáng é 1 e yīn é zero, sem com isso cair no erro de pensar o mundo em termos dualistas, visto que as oposições estão contidas no interior de todos os fenômenos e as definições de yīn e yáng são sempre contextuais e relacionais.

Esse modo de perceber está em consonância com vários dos saberes tradicionais chineses: medicina, geomancia, artes marciais, técnicas de longa vida, estratégia militar, mesmo a pintura ou a música, entre outros.

Aprender o Tao: 3. o lugar do gesto

Nessa nova postagem da série, o foco está no aprendizado prático. Para saber fazer, dependemos de uma capacidade humana fundamental de perceber e reproduzir semelhanças, que Walter Benjamin chamou de “faculdade mimética”. Consideremos que, nesse contexto, ela se manifesta como a capacidade de observar, reconhecer e reproduzir movimentos corporais, com suas sutis qualidades implícitas e sensações características, ideia que já havia desenvolvido no capítulo 6 de minha tese de doutorado, dedicado ao aprendizado do Tàijíquán.

Imortal voando num dragão, detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2019.

Mas como isso participa do aprendizado do Tao? Duas respostas provisórias: I) pelo fato de aprendermos a sentir com o corpo e no corpo a naturalidade e a fluidez eficaz; II) e de adquirirmos habilidades motoras e perceptivas que são o fundamento de vários saberes taoistas. Quanto ao primeiro aspecto, destaco que certos conceitos filosóficos caros ao taoismo, como os de wújí (無極), de tàijí (太極) ou de wúwéi (無為), por exemplo, são de difícil compreensão quando ficam restritos ao nível do intelecto, mas algo simples no plano da experiência corporal. No começo, ao observar como faz o/a mestre/a, ou ao menos algum/a praticante mais experiente, fica evidente uma certa graciosidade eficaz, sem esforço e aparentemente sem intencionalidade. Depois, com o tempo de treinamento, isso se evidencia na experiência pessoal, ao se ganhar gradualmente maestria sobre uma determinada técnica, até que ela faça parte da potência do corpo, não sendo mais algo distinto dele. Uma vez compreendido o gesto exemplar da técnica, com suas nuances sutis, o caminho é repetir e repetir, treinando até se apropriar dele. Em um primeiro momento, para certos/as estudantes, o intelecto pode ajudar a sistematizar uma compreensão rudimentar inicial, mas o verdadeiro aprendizado é sem palavras. É ele que sedimenta o conhecimento, que passa a fazer parte do repertório potencial de habilidades corporais.


É assim que 1 hábil artista marcial executa uma técnica em uma fração de segundo, reagindo à situação sem pensar. Também desse modo, 1 acupunturista experiente lê toda a condição de 1 paciente ao tocar seus pulsos e auscultá-los e insere as agulhas em pontos precisos de modo indolor. Dessa maneira, também a meditação começa, simplesmente ao se assumir a postura corporal e a atitude existencial correta: o se manifesta e começa a circular espontaneamente. Cada uma das habilidades que venho desenvolvendo gradualmente ao longo dos anos se deve à convivência com exemplos vivos: o mestre, um/a professor/a, um/a irmã/o de treinamento mais generosa/o que abriu as portas da compreensão ao proporcionar uma experiência marcante. Uma vez entendida a direção a seguir, só então, livros, imagens, vídeos e outros recursos didáticos e mnemônicos podem cumprir seu papel como ferramentas auxiliares ao aprendizado direto (corpo a corpo), graças à experiência pessoal previamente adquirida. O Caminho não se esgota: quanto mais se aprofunda, mais há a aprender e a compartilhar. Mas a partir de certo ponto é um aprendizado diferente: em vez de aumentar o volume de conhecimento, aprofunda-se a sua compreensão a tal ponto que o conhecimento se simplifica e se integra. Começamos a perceber os mesmos princípios que se expressam em diferentes áreas e múltiplas aplicações. Que perfeição! O próprio treinamento, se praticado corretamente, torna-se também um professor.

Aprender o Tao: 2. o lugar da imagem

Nessa segunda postagem da série, abordaremos o papel da iconografia na transmissão do Tao. Como ponto de partida, digamos que, no princípio está a experiência cinestésica, um corpo que sente e se move, no domínio pré-objetivo, sem a necessidade de palavras. Em segundo lugar, vem a imagem: símbolo, emblema, diagrama, pintura, síntese visual não só de uma experiência, mas de todo um entendimento não verbal acerca do mundo. Aqui cabem os dizeres geniais da obra clássica de Marcel Granet: o pensamento chinês é de natureza sintética. Ou dito de outro modo: poucos princípios, infinitas aplicações.

Imortal voando num dragão, detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2019.
O símbolo do Taiji rodeado do Bagua do Céu Anterior, com os trigramas Zhen e Xun atravessados pela espada, conforme utilizado pela linhagem taoista Pailin.

Tomemos como exemplo o símbolo mais central da tradição taoista, aquele que engloba seu traço mais distintivo. Uma verdadeira pérola da civilização chinesa. O símbolo do Tàijí (太極) ☯: yīn (陰) e yáng(陽) unidos em um movimento incessante de alternância, oposição, complementaridade e inseparabilidade. Uma só imagem que não apenas descreve de forma genial a natureza processual de todos os fenômenos, micro e macro, pessoais e coletivos, sociais e naturais, mas também prescreve uma postura existencial, informando uma verdadeira arte da existência. Os oito trigramas (八卦), oito manifestações básicas das possíveis combinações de yīn e yáng, nos três níveis da realidade: Céu (天), ser humano (人) e Terra (地) que compõem os 64 hexagramas do Clássico das Mutações (Yìjīng易經). Também eles são compostos de apenas duas possibilidades, yīn e yáng, dessa vez representados, respectivamente, por uma linha partida () ou uma linha contínua (). Resumindo, em uma representação iconográfica relativamente simples está contida toda uma filosofia da natureza, acessível à apreensão intuitiva.

Além de outras imagens clássicas da chamada filosofia yīn/yáng, como o Diagrama do Rio e o Livro Lo, poderíamos incluir como exemplos também as imagens alquímicas e mesmo as pinturas taoistas, nas quais o vazio tem pelo menos a mesma importância que as formas. Em certo sentido, a própria escrita chinesa, especialmente as formas mais estilizadas de caligrafia como estilo de pintura, tem essa característica imagética evocativa, habilmente utilizada também na poesia. O pictograma é uma palavra-imagem, com um poder evocativo distinto dos alfabetos das línguas ocidentais, ao menos para um/a leitor/a da língua chinesa suficientemente embebido/a em sua atmosfera cultural.

Detalhe de caligrafia sobre papel, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

No entanto, mais uma vez, para aprender o Tao não basta a imagem, pois em geral ela não se revela por si própria. É preciso um/a mestre/a que nos ensine a ver. Mais uma vez, é a presença corporal encarnada, em uma relação pessoal, que nos dá a ver o Tao por meio das imagens, assim como permitiu lê-lo ou ouvi-lo entre as palavras.

Aprender o Tao: 1. o lugar do texto e da transmissão oral

A nova série que começa hoje abordará aspectos do aprendizado do Tao. Na postagem de hoje, o tema é o papel das palavras. Embora seja óbvio que o Caminho está além das palavras, por isso mesmo, inominável e indescritível, como afirmado desde Laozi ou Zhuangzi, ainda assim, elas têm o seu lugar na transmissão. Diz-se que o cânon taoista contém 108 textos clássicos. No entanto, segundo a transmissão oral que recebi de meus professores, também é dito que as instruções realmente importantes nunca são colocadas na íntegra nos livros.

Imortal voando num dragão, detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

Há motivos distintos para isso. Alguns aspectos do ensinamento estão além das palavras e só podem ser compreendidos intuitivamente, por experiência direta, mediante a prática consistente dos treinamentos que levam ao cultivo de um estado meditativo. Por isso, Laozi utilizou termos como mistério (xuán) ou maravilha (miào妙). Uma maneira de explicar isso para o/a leitor/a com um inclinação mais filosófica é recorrer à fenomenologia de Merleau-Ponty. Digamos que aquilo que é tematizado por referência à noção de Tao (道) seria da ordem do pré-objetivo. Ou seja, mais do domínio da percepção e da sensibilidade do que da ordem do intelecto e do discurso. Por outro lado, isso não inviabiliza que a tradição taoista tenha encontrado maneiras de comunicar essa compreensão fundada na experiência direta. Por isso, Zhuangzi afirma que o valor dos livros está em algo que se balança além das palavras. E no poema 1 do Xishengjing é dito: “Quando não se conhece o Tao, palavras criam confusão” [minha tradução] (Kohn, 1991, p.235 apud Bizerril, 2007, p. 19).


pintura do acervo do National Palace Museum, foto do autor, setembro de 2018.

Além disso, outro aspecto é que há conhecimentos técnicos específicos que poderiam causar danos se caíssem nas mãos erradas, de pessoas imaturas ou inescrupulosas. Assim, quem ensina é responsável por testar a maturidade e integridade da/o discípula/o antes de transmitir semelhantes conhecimentos. Só para ilustrar, os textos de alquimia interna foram escritos não só em linguagem poética, mas também repletos de imagens que sintetizam os segredos técnicos da prática, mas de uma forma cifrada, acessível apenas a quem tem a chave de leitura. Essa, por sua vez, depende de um/a professor/a qualificado/a e do desenvolvimento da sensibilidade e inteligência da/o praticante.

Assim, ao mesmo tempo que a tradição taoista confiou aos livros, e mais recentemente aos meios multimídia contemporâneos, sua experiência acumulada, ainda é necessário como ingrediente para o aprendizado, a transmissão oral que se faz de mestre/a a discípulo/a, de professor/a a aluno/a. E, como já foi mencionado em postagens anteriores, alguém só pode ser considerado mestre quando cumpre os critérios tradicionais que indicam que completou seu treinamento até atingir um nível de realização estável, cujos sinais foram reconhecidos coletivamente. Para ser instrutor/a, não é necessário ser mestre/a, mas é preciso ter praticado suficientemente o que se pretende ensinar, até obter seus benefícios, e ter a permissão de seu/sua próprio/a professor/a. Isso tudo porque um dos ingredientes fundamentais da transmissão é a palavra viva de alguém que vivenciou o que ensina e compreendeu essa vivência corretamente. Não basta eloquência e mero conhecimento intelectual.

Por outro lado, uma mestre/a pode deixar, como parte de seu legado, escritos para guiar seus/suas estudantes na direção certa. Mas não é demais repetir, mais uma vez, que as palavras apenas apontam o caminho a seguir.

Modo de vida taoista: 13. harmonia com a natureza

Na postagem de hoje continuamos a desenvolver a temática do modo de vida taoista. É comum na tradição taoista o elogio ao estado natural ou a valorização da natureza, seja nas suas expressões artísticas, seja nos textos clássicos. Mas o que significa isso?

Pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor, setembro de 2018.

Como qualquer pessoa com alguma sensibilidade antropológica já deve ter se dado conta, não é possível saber o que é a natureza “em si”, mas essa compreensão é sempre mediada por artefatos culturais. Assim, em vez de opor natureza a cultura ou sociedade, prefiro pensar em termos de naturezas-culturas, como propõe Bruno Latour.

No caso, como os antigos chineses perceberam o que, em línguas ocidentais, traduziríamos por natureza, percepção essa que está presente na tradição taoista? Ao menos na linhagem que pratico, a noção de natureza está diretamente relacionada ao que os Estudos Chineses chamam de “cosmologia Huang-Lao”, cujo fundamento é a combinação da filosofia yin/yang à teoria dos Cinco Movimentos (五行). A própria noção de Tao (道), ainda que impossível de descrever plenamente – pois tem a qualidade de “maravilha” (妙) e “mistério” (玄) conforme é dito no primeiro poema do Daodejing (道德經) – traz consigo uma sensação de movimento ordenado, cujos princípios podem ser apreendidos por observação direta, por contemplação, pelo cultivo de um modo corporificado de consciência e pelo estudo dos clássicos. Movimento circular, no microcosmo, e cíclico, no macrocosmo. A presença de padrões espiralados em inúmeras formas naturais, sejam os movimentos do ar ou da água, ou a própria estrutura dos seres vivos e seus padrões de movimento corporal. Movimento contínuo. Afinal, vida é, por definição, movimento, ainda que, de tão sutil, possa ser imperceptível a olho nu.

Então, em primeiro lugar, poderíamos dizer que harmonia com a natureza é desenvolver uma sensibilidade sutil a estes padrões. Isto é, sintonizar-se com o movimento do no universo, como o caso de 1 praticante experiente de qigong que desperta naturalmente de manhã cedo, sentido a ascensão do yang, quando o sol nasce e sua luz e calor banham a terra, nutrindo as plantas e despertando os animais de hábitos diurnos. Além da sensibilidade aos horários do dia, poderíamos incluir também às fases da lua, às estações do ano, às condições climáticas, etc. No princípio, é uma sensibilidade fabricada: tentamos prestar atenção deliberadamente a esses fenômenos e inclusive ajustar nossos treinamentos e demais atividades a eles. Mas com o tempo, torna-se uma percepção intuitiva aliada a uma resposta espontânea de autorregulação em relação a essas circunstâncias.


pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Mas um outro sentido do “natural” refere-se a um estado que combina plena atenção e relaxamento, que proporciona um senso de ação sem esforço, acompanhada da sutil alegria de abrir mão de toda tensão desnecessária. Paradoxalmente essa condição de espontaneidade e naturalidade, que nada tem a ver com a ação impulsiva movida por um condicionamento, é um tipo particular de liberdade que resulta de um longo período de treinamento, no qual nos dedicamos a aprender a relaxar e fluir.

Modo de vida taoista: 12. mínimo esforço = máxima eficiência

Na postagem dessa semana, damos continuidade aos temas do modo de vida taoista. Se é importante reduzir o esforço desnecessário e aprender a relaxar, isso não se confunde com uma espécie de elogio à preguiça nem com a suposição equivocada de que o universo irá prover tudo sem que se tome as medidas necessárias. Obviamente, dentre as medidas necessárias, podemos incluir a paciência, para agir apenas no momento certo. E a sensibilidade para perceber o que fazer e como fazer. Essa decisão depende de uma capacidade de sentir o potencial da situação e agir com precisão sobre as forças que se direcionam a um determinado resultado. Não se trata de uma decisão tão calculista e deliberada, mas de uma sintonia com o momento presente, que não necessita de um autor da ação, alguém que se identifica com o resultado. Mas ao contrário, que age como se ninguém estivesse fazendo nada em especial.

A ideia é de um estilo de ação que busca os espaços de mínima resistência. Zhuangzi (莊子) utiliza a imagem magistral do cozinheiro do príncipe Wen Hui, destrinchando a carne de um boi. Ao cortar exatamente “na linha natural”, “no espaço oculto”, “como uma brisa”, o fio da lâmina não se desgasta. Do mesmo modo, o elogio de Laozi (老子) à água nos poemas 8 e 78 do Daodejing (道德經) refere-se justamente à sua suavidade e capacidade de adaptar-se, fluir, preencher os espaços vazios, uma excelente metáfora da ação em conformidade com o Tao.

O paradoxo dessa ação eficaz e aparentemente sem qualquer esforço, é que resulta, para imensa maioria das pessoas, de um aprendizado longo, de treinamento constante. Aprendemos o Tao por meio da constância. O ideograma de mesmo nome ䷟, composto pelo trovão (☳) acima e o vento (☴) abaixo, representa o movimento incessante, uma combinação de iniciativa externa e suavidade interna, entre outras possibilidades de interpretação. Pela prática repetida e pelo desenvolvimento gradual, é possível chegar a um nível de maestria que não é o da virtuose, mas sim o da não ação (無為).


O Tao é indefinível. Mas como definir o Taoismo?

Definir o Tao é uma tarefa ingrata. No primeiro poema do Daodejing (道德經), Laozi alerta que o Grande Tao não pode ser nomeado. Qualquer praticante taoista sabe que o Tao é algo que se desvela por meio da experiência meditativa e da contemplação, não algo de ordem conceitual, que pode ser devidamente descrito com o intelecto. Mas e o taoismo?

Detalhe da fachada de um dos templos taoista no complexo de Zhinangong, Taipei. (Foto do autor)

Esse é o tema da postagem de hoje. Em primeiro lugar, uma maneira comum de tratar o tema é situar o taoismo dentre as grandes religiões mundiais, mencionada em qualquer dicionário de religiões ou tratado de história das religiões. A sinóloga Livia Kohn (2001, p. 1) o descreveu como “religião autóctone organizada da China tradicional”. Possivelmente, suas origens remontam a um desenvolvimento filosófico de formas locais de xamanismo, como apontou Toshihiko Izutsu. Quanto à oposição comum entre taoismo filosófico e religioso, outra sinóloga, Isabelle Robinet, considera a distinção insignificante. Além disso, ambas concordam com o fato básico que o taoismo nunca foi uma religião unificada. Em vez disso, consistiu em uma combinação de ensinamentos, que só pode ser compreendida por meio de suas manifestações concretas. E por outro lado, tanto para Robinet, quanto para outro autor, Kristopher Schipper, não se deve confundir o taoismo com a religiosidade popular chinesa. É importante também lembrar, que a noção de religião é eminentemente ocidental, e foi aplicada a aspectos de outras culturas. Em geral, ao definir taoismo como religião, se leva em consideração a existência de templos, de instituições sociais, que contêm uma hierarquia sacerdotal, os aspectos de sua cosmologia que dizem respeito ao sentido da vida, suas concepções sobre a morte e o pós-morte, divindades e outros seres espirituais com os quais se interage, bem como rituais que abordam estas temáticas e tecnologias contemplativas.

No entanto, em função da própria diversidade interna, nem toda escola ou linhagem taoista apresenta essas características. E além disso, há diversos outros saberes e práticas que se desenvolveram no contexto do taoismo e que não seriam descritas adequadamente como propriamente religiosos: artes marciais, práticas de longevidade, os diversos ramos da medicina chinesa, geomancia, caligrafia, pintura, música, astrologia, etc.

Uma outra possibilidade seria descrever o taoismo como uma tradição, inclusive como uma tradição contemplativa, diante da profusão de métodos meditativos centrais para várias de suas linhagens. No entanto, para isso, seria preciso, primeiro, elucidar, que significa tradição. Aqui, refiro-me simplesmente a uma transmissão cultural intergeracional de longa duração. E, no caso do taoismo, especificamente, um produto da civilização chinesa, que se tornou no século XX um patrimônio da humanidade. É importante frisar aqui, que não se trata de um conhecimento ancestral imutável. Seria um erro grave retirar o taoismo – ou qualquer outro fenômeno queiramos chamar de tradição – do fluxo da história. Todo conhecimento cultural vivo é sujeito, por sua própria natureza, à mudança, à releitura e à inovação, mesmo que o passado seja tratado com reverência. Aliás, o que torna algo um clássico é justamente a riqueza de sentido que permite novas releituras. Outro aspecto de igual relevância, é afastar-nos do uso do termo tradição como forma para legitimar o imaginário conservador. Não é o caso de idealizar o passado, na contramão da compreensão aprofundada de suas condições históricas. Uma tradição não é uma essência, mas sim um fluxo, com determinadas características que permitem perceber algumas continuidades em meio às descontinuidades.

Acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.

Que há de fundamental no taoismo? A noção de Tao (道), que aponta discretamente para o grande mistério da vida, com um certo senso de ordem e fluidez, mas que resiste às tentativas de descrevê-lo em palavras e categorizá-lo. Pode apenas ser indicado alusivamente, por exemplo, por meio do símbolo do taiji ☯, a mais sintética imagem do caráter dinâmico, complementar, cíclico de todos os processos da existência. Talvez a mais genial criação da civilização chinesa, a intuição de base que está por trás de inúmeras das suas grandes realizações. Toda a lógica do Yijing ou mesmo dos cinco movimentos, a base da medicina chinesa, derivam dessa primeira intuição.

Respeitando a diversidade de linhagens e escolas, prefiro concluir com algumas ponderações derivadas da minha própria experiência, como estudioso e praticante da escola que mestre Liu Pailin fundou no Brasil, e como discípulo da linhagem Kunlun. No período em que viveu no Brasil, mestre Pailin fez questão de frisar que seus ensinamentos se referiam ao conhecimento da natureza, à compreensão do funcionamento do Céu e da Terra e de suas implicações na vida humana. Transmitiu práticas de longevidade, terapêuticas da medicina chinesa e métodos de meditação que representam uma síntese das várias linhagens que conheceu e praticou. Nesse sentido, o que ofereceu a seus discípulos e discípulas foi o que chamava de um Caminho de Vida, que incluia a dimensão da espiritualidade, mas não à maneira de uma religião formal, nem ao menos do taoismo de tipo sacerdotal e/ou monástico.