Tao, natureza e cultura

Uma das traduções mais frequentes para Tao (Dào 道) é caminho ou, mais precisamente, “o caminho natural”. E o taoismo seria, portanto, uma tradição que ensina a seguir o Tao, portanto, a estar em harmonia com a natureza. Mas de que estamos falando quando usamos os termos “natural” e “natureza”?

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.
Pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor, setembro 2018.

Ao falar em natural, ou natureza, num sentido taoista, a primeira imagem que surge é a alternância de yīn e yáng, observável nos ciclos do mundo natural: dias e noites, movimentos dos astros, fases da lua, estações do ano, marés. Isso também é observável nas formas pelas quais animais e plantas respondem a esses ciclos. E no próprio corpo humano: a grande circulação diária do pelos doze canais ordinários, correspondentes aos órgãos e vísceras, e o próprio ciclo de vida, do nascimento à morte, conforme descrito pela medicina tradicional chinesa. Baseada numa longa observação desses e outros processos durante muitas gerações, a tradição taoisa desenvolveu estratégias para manter o equilíbrio de yīn e yáng no ser humano, adaptando-se de modo inteligente às circunstâncias do mundo natural, em vez de se prejudicar por causa delas. O primeiro sentido da expressão “caminho natural” é bastante literal: o modo como as coisas funcionam na natureza, seus ciclos e fluxos. E estar em harmonia com a natureza é, portanto, adequar o modo de vida a esses processos. Por exemplo, quanto a que tipos de treinamentos fazer em que horário do dia ou época do ano.

Mas será que esse amor à natureza, o valor do natural, precisa ser inimigo dos desenvolvimentos tecnológicos? Ao longo da história da China, justamente por seu gosto em observar a natureza, muitas inovações técnicas foram desenvolvidas por taoistas. Aqui, basta pensar nos desenvolvimentos significativos no campo da medicina chinesa, uma das tradições médicas mundiais reconhecidas pela OMS. Ou seja, o respeito à natureza não está em contradição com o desenvolvimento técnico. Por outro lado, não se trata de uma narrativa cosmológica do privilégio humano sobre os outros seres, como a que caracterizou a tradição judaico-cristã e seus desdobramentos na modernidade, não apenas em nações ocidentais, mas pelo mundo afora.

Foto de satélite dos incêndios na Amazônia visíveis do espaço em 13 de agosto. Fonte: Nasa Earth Observatory.

Num momento como o atual, em que a relação predatória com o meio ambiente chega a níveis trágicos e catastróficos, como é ilustrado pela crise climática global, pelas toneladas de plástico poluindo os oceanos e mais recentemente pelo incêndio devastador na floresta amazônica, é preciso questionar as bases dos modelos de desenvolvimento e de relação com a natureza que têm movido esse movimento coletivo insano e suicida nas sociedades globalizadas e, especificamente, em nosso país. O descaso com a vida do planeta, inclusive com as vidas humanas, movido por uma ganância irracional, produziu uma infraestrutura de exploração que funciona de forma automática na geração de lucro, sem limites éticos nem preocupação com danos e consequências, uma verdadeira máquina de autodestruição. O que está em jogo é o ar, a água, o solo, os animais e plantas que dividem o planeta conosco, nossa própria sobrevivência, ameaçada por um processo que trouxe consigo uma crescente desigualdade econômica. Recursos vitais que pertencem a todos os seres estão sendo esgotados e destruídos para o enriquecimento de poucos e a pobreza de muitos.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

Neste sentido, dar ouvidos a outras vozes, ao saber acumulado de outras civilizações pode justamente inspirar uma atitude existencial mais respeitosa e abrangente com o mundo natural do qual fazemos parte, sem uma oposição entre o mundo humano e a natureza. Foi justamente a suposição de uma supremacia humana que tem justificado moralmente a devastação do meio ambiente, a extinção de outras formas de vida, a perturbação do delicado equilíbrio entre os diversos seres. Não se trata de negar o desenvolvimento tecnológico, mas de orientá-lo desde uma perspectiva de cuidado com a vida, de harmonia com a paisagem, de solidariedade entre seres humanos, fazendo uso dos recursos de uma forma mais sensata, que atente às gerações futuras, a reverter os danos causados até o presente e a gerar formas de extrair os recursos necessários sem exaurir a Terra.

Aqui faço essa reflexão inspirado pelas gerações de contemplativos taoistas que observaram com admiração o Céu, a Terra e os dez mil seres, no seu funcionamento cíclico, e buscaram meios para habitar o cosmo em harmonia com o fluxo da vida. Mas do mesmo modo, podemos buscar inspiração na sabedoria tradicional dos povos da floresta em nosso próprio país, que travam uma dura batalha pela sobrevivência.

A única constante na vida é a mudança

Continuando com o propósito de relacionar vida cotidiana e filosofia taoista, o tema da postagem de hoje é uma parte fundamental dela. Enquanto a maioria das tendências do pensamento filosófico ocidental, da antiguidade até pelo menos o início do século XX, trabalhou com a ideia metafísica de essência, que o mais importante é algo imutável, o fundamento do pensamento taoista é o movimento, a mudança. Isto está expresso em conceitos como Tao (Dào), yin-yang (yīn-yáng 陰陽), Taichi (Tàijí 太極), mutação ( 易), etc. Resumindo tudo isso num princípio simples: o caminho natural tende ao equilíbrio dinâmico; quando algo chega ao extremo se transforma no seu contrário.

Nebulosa planetária MyCn18, imagem do telescópio Hubble, NASA & ESA. O formato dessa nebulosa lembra muito a forma antiga do pictograma chinês “mistério” (xuán 玄).

Todos esses conceitos estão em consonância com uma característica fundamental de toda a vida, que podemos perceber ao observar a natureza, a sociedade ou nossa própria existência pessoal: tudo que está vivo está em perpétuo movimento. Na verdade, todo o universo, mesmo o que consideramos como matéria inanimada também está em movimento: nossos corpos e consciências, as sociedades e culturas, as plantas e animais, a paisagem geográfica, os corpos celestes e mesmo a menor das partículas. Em resumo, tudo é movimento, ritmo, mudança, transformação. Nesse ponto, o conhecimento tradicional chinês está em total concordância com o conhecimento científico moderno, seja da biologia, da física, da geografia, da astronomia, ou da história e das ciências sociais.

Pintura em seda, acervo do National Palace Museum, Taipei. foto do autor, setembro 2018.

Se isso é óbvio no nível material, também faz sentido ao observarmos com cuidado nossa experiência existencial: estar vivo é vivenciar constantemente novas percepções, impressões, emoções, pensamentos, incessantemente. Estamos vivos enquanto nossa capacidade de autorregulação continua a fazer as mudanças adaptativas necessárias, sejam metabólicas, fisiológicas, motoras, mas também emocionais e cognitivas, relacionais, um ajuste existencial contínuo, em todos os níveis, diante das situações que mudam a cada momento. Estar vivo é mover-se, mas também sensibilizar-se, aprender, descobrir.

mestre Liu Pailin (1907-2000).

O que a prática do Tao nos ensina é a nos manter em movimento de modo inteligente, em harmonia com o que cada momento pede, sem fazer força desnecessária, sem agitar o coração. Assim, saboreamos mais cada experiência, envelhecemos com sabedoria e saúde, passamos por situações difíceis com alguma serenidade, não nos desgastamos à toa. Não é casual que uma expressão de realização do Tao seja o riso, leve e espontâneo como o de uma criança pequena. Algo que só podemos vivenciar num estado de relaxamento. E essa leveza nos sensibiliza, quando estamos na presença de um mestre realizado. Foi assim que muitas pessoas começaram a praticar, após se encontrarem frente a frente com o mestre Liu Pai Lin, como ouvi repetidas vezes no final do anos 90, quando fazia meu trabalho de campo antropológico em sua escola. Também foi essa leveza que me fez buscar o caminho. Obrigado, mestre!

O Tao é indefinível. Mas como definir o Taoismo?

Definir o Tao é uma tarefa ingrata. No primeiro poema do Daodejing (道德經), Laozi alerta que o Grande Tao não pode ser nomeado. Qualquer praticante taoista sabe que o Tao é algo que se desvela por meio da experiência meditativa e da contemplação, não algo de ordem conceitual, que pode ser devidamente descrito com o intelecto. Mas e o taoismo?

Detalhe da fachada de um dos templos taoista no complexo de Zhinangong, Taipei. (Foto do autor)

Esse é o tema da postagem de hoje. Em primeiro lugar, uma maneira comum de tratar o tema é situar o taoismo dentre as grandes religiões mundiais, mencionada em qualquer dicionário de religiões ou tratado de história das religiões. A sinóloga Livia Kohn (2001, p. 1) o descreveu como “religião autóctone organizada da China tradicional”. Possivelmente, suas origens remontam a um desenvolvimento filosófico de formas locais de xamanismo, como apontou Toshihiko Izutsu. Quanto à oposição comum entre taoismo filosófico e religioso, outra sinóloga, Isabelle Robinet, considera a distinção insignificante. Além disso, ambas concordam com o fato básico que o taoismo nunca foi uma religião unificada. Em vez disso, consistiu em uma combinação de ensinamentos, que só pode ser compreendida por meio de suas manifestações concretas. E por outro lado, tanto para Robinet, quanto para outro autor, Kristopher Schipper, não se deve confundir o taoismo com a religiosidade popular chinesa. É importante também lembrar, que a noção de religião é eminentemente ocidental, e foi aplicada a aspectos de outras culturas. Em geral, ao definir taoismo como religião, se leva em consideração a existência de templos, de instituições sociais, que contêm uma hierarquia sacerdotal, os aspectos de sua cosmologia que dizem respeito ao sentido da vida, suas concepções sobre a morte e o pós-morte, divindades e outros seres espirituais com os quais se interage, bem como rituais que abordam estas temáticas e tecnologias contemplativas.

No entanto, em função da própria diversidade interna, nem toda escola ou linhagem taoista apresenta essas características. E além disso, há diversos outros saberes e práticas que se desenvolveram no contexto do taoismo e que não seriam descritas adequadamente como propriamente religiosos: artes marciais, práticas de longevidade, os diversos ramos da medicina chinesa, geomancia, caligrafia, pintura, música, astrologia, etc.

Uma outra possibilidade seria descrever o taoismo como uma tradição, inclusive como uma tradição contemplativa, diante da profusão de métodos meditativos centrais para várias de suas linhagens. No entanto, para isso, seria preciso, primeiro, elucidar, que significa tradição. Aqui, refiro-me simplesmente a uma transmissão cultural intergeracional de longa duração. E, no caso do taoismo, especificamente, um produto da civilização chinesa, que se tornou no século XX um patrimônio da humanidade. É importante frisar aqui, que não se trata de um conhecimento ancestral imutável. Seria um erro grave retirar o taoismo – ou qualquer outro fenômeno queiramos chamar de tradição – do fluxo da história. Todo conhecimento cultural vivo é sujeito, por sua própria natureza, à mudança, à releitura e à inovação, mesmo que o passado seja tratado com reverência. Aliás, o que torna algo um clássico é justamente a riqueza de sentido que permite novas releituras. Outro aspecto de igual relevância, é afastar-nos do uso do termo tradição como forma para legitimar o imaginário conservador. Não é o caso de idealizar o passado, na contramão da compreensão aprofundada de suas condições históricas. Uma tradição não é uma essência, mas sim um fluxo, com determinadas características que permitem perceber algumas continuidades em meio às descontinuidades.

Acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.

Que há de fundamental no taoismo? A noção de Tao (道), que aponta discretamente para o grande mistério da vida, com um certo senso de ordem e fluidez, mas que resiste às tentativas de descrevê-lo em palavras e categorizá-lo. Pode apenas ser indicado alusivamente, por exemplo, por meio do símbolo do taiji ☯, a mais sintética imagem do caráter dinâmico, complementar, cíclico de todos os processos da existência. Talvez a mais genial criação da civilização chinesa, a intuição de base que está por trás de inúmeras das suas grandes realizações. Toda a lógica do Yijing ou mesmo dos cinco movimentos, a base da medicina chinesa, derivam dessa primeira intuição.

Respeitando a diversidade de linhagens e escolas, prefiro concluir com algumas ponderações derivadas da minha própria experiência, como estudioso e praticante da escola que mestre Liu Pailin fundou no Brasil, e como discípulo da linhagem Kunlun. No período em que viveu no Brasil, mestre Pailin fez questão de frisar que seus ensinamentos se referiam ao conhecimento da natureza, à compreensão do funcionamento do Céu e da Terra e de suas implicações na vida humana. Transmitiu práticas de longevidade, terapêuticas da medicina chinesa e métodos de meditação que representam uma síntese das várias linhagens que conheceu e praticou. Nesse sentido, o que ofereceu a seus discípulos e discípulas foi o que chamava de um Caminho de Vida, que incluia a dimensão da espiritualidade, mas não à maneira de uma religião formal, nem ao menos do taoismo de tipo sacerdotal e/ou monástico.

Mestres do Tao: tradição, experiência e etnografia

Mestres do Tao é o título de um artigo que publiquei na Revista Horizontes Antropológicos em 2005, uma versão reduzida de um dos capítulos de minha tese de doutorado sobre a escola taoista do mestre Liu Pai Lin (1907-2000). Nele, reflito sobre o papel na narrativa no aprendizado do Tao, como a palavra se combina a outros modos de transmissão da tradição e os dilemas da tentativa de fazer uma descrição etnográfica dela. Naquele momento, a figura do mestre Pai Lin (foto abaixo) me impressionava por sua saúde e vivacidade de espírito, com mais de 90 anos. E por, literalmente, encarnar o que ensinava, um conhecimento vivencial sobre a vida, não uma “filosofia” no sentido de um saber meramente intelectual, desencarnado. Não tinha ainda a dimensão do impacto desse contato breve na minha biografia. Vinte anos depois deste primeiro encontro, percebo que o que me impressionou foi a possibilidade de existir com fluidez e relaxamento, com lucidez e alegria de viver, inclusive em uma idade tão avançada. Um encontro que deixou uma marca profunda e plantou as sementes do momento atual. IMG_1308.jpg