O Qì é a base da vida. Mas o que é Qì?

O fundamento taoista do pensamento chinês que é a base da medicina tradicional e do qìgōng de longevidade é uma filosofia do movimento, da mudança. Como compreensão da vida, e aqui se incluem tanto concepções de natureza como de corpo humano, o conceito de é central. Mas, afinal, o que é ?

detalhe de pintura do acervo temporário do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Uma maneira prática de tratar o assunto é entender o como uma linguagem dos antigos chineses para descrever as qualidades de diferentes fenômenos naturais: um organismo vivo, uma paisagem, um fenômeno climático, um alimento ou planta medicinal, inclusive um corpo humano, uma pessoa, sua condição de saúde ou doença, etc. Não se trata de algo no campo da crença. Não é preciso “acreditar em ” como se fosse algum tipo de entidade metafísica. Embora esse conceito remeta ao aspecto invisível dos fenômenos naturais, que move ou anima, o qì se percebe com os sentidos, é algo que se sente, como qualquer artista marcial, praticante de qìgōng, especialista em fēngshuǐ ou acupunturista pode atestar. De fato, aprender qualquer um desses conhecimentos tradicionais chineses é familiarizar-se na prática com isso.

O pictograma em estilo caligráfico.

O caractere mais frequentemente utilizado para representar (氣), deriva historicamente do caractere vento (風), o que levou alguns estudiosos, especialmente da escola francesa, a descrever o como sopro. Em sua estrutura, é formado pelos caracteres para vapor e arroz, conotando um aspecto sutil do ar e dos alimentos. Há também outro caractere para (炁) que consta dos talismãs taoistas e que, segundo a explicação do mestre Pailin, remete ao aspecto yáng de luminosidade e calor: fogo do Céu. Em geral, o conceito de tem sido traduzido para línguas ocidentais como “energia”, “vitalidade” ou “força vital”, inclusive em traduções conceituadas de textos clássicos chineses, manuais de medicina tradicional e na transmissão oral de muitos mestres chineses.

Especialistas dos Estudos Chineses, como a francesa Elizabeth Rochat de la Valée ou o brasileiro Orley Dulcetti Júnior, apontam que se refere à capacidade de movimento e transformação. Ou seja, é a chave para entender todos os fenômenos naturais da perspectiva chinesa. Apesar de muito usados, termos como energia, vitalidade e força vital são alheios ao pensamento chinês antigo. Derivam de tendências do pensamento científico e filosófico europeu e foram utilizados desde as primeiras traduções dos clássicos chineses para línguas ocidentais, ainda no século XVIII. Esses termos podem ser úteis por serem familiares, mas trazem consigo armadilhas, pois nos levam para o terreno da crença ou da tentativa de demonstração da existência objetiva de uma força ou substância, às vezes até apelando para uma confirmação por parte da ciência experimental ocidental.

Mestre Liu Pailin era bastante taxativo ao afirmar que os métodos taoistas que ensinava era baseados em um conhecimento da natureza, a essência da civilização chinesa, sem uma conotação mística ou religiosa. Desde a perspectiva da tradição taoista, uma boa maneira de compreender o que é é pela experiência pessoal com os treinamentos de qìgōng, tàijíquán, dǎoyǐn, meditação, etc. Praticando, desenvolvemos uma nova sensibilidade corporal e aprendemos a perceber o por meio de certas sensações descritas pela tradição (frio, calor, peso, formigamento, corrente elétrica, fluxo, vibração) que surgem espontaneamente durante os treinamentos. Além disso, os estudos de antropologia dos sentidos e antropologia da corporeidade podem ser ferramentas úteis para entender esses fenômenos e nos familiarizar com esse importante conceito chinês.

Modo de Vida Taoista: 11. Reduzir todo esforço desnecessário

A postagem de hoje retoma a série dedicada ao modo de vida taoista. Em tempos de exaustão coletiva, o princípio taoista da não ação, ao mesmo tempo pode soar absurdo e servir como um lembrete útil sobre outras possibilidades de existência e subjetividade.

lagoa de carpas, com um símbolo do Tao, nas montanhas de Yilan, Taiwan.

Uma instrução básica da transmissão do mestre Liu Pailin era: “não forçar”. Isso se aplica, em primeiro lugar, à prática regular dos treinamentos taoistas que, ao contrário da cultura fitness, não pressupõem que a dor é o requisito para o resultado. Mas também é um princípio válido para uma atitude existencial geral. Essa recomendação simples expressa a confiança no desenvolvimento gradual e contínuo, sem necessidade de rupturas abruptas e superação de limites por meio da luta.

De fato, na maioria de nossas atividades cotidianas, relações e projetos, aplicamos mais força que o necessário. No nível mais óbvio, observe quanta tensão muscular é aplicada em movimentos simples que podem ser feitos de forma mais econômica e eficaz se aprendemos a relaxar enquanto nos movemos e utilizar apenas a força necessária. Experimente prestar atenção em quanta força e tensão utiliza para escovar os dentes, girar uma maçaneta, preparar um alimento, lavar louça, subir uma escada, segurar o volante do carro, digitar ou qualquer outra tarefa cotidiana. Ao praticar taijiquan ou o abraço da árvore (zhanzhuang), aprendemos a relaxar os músculos ao mesmo tempo em que mantemos a postura, o alinhamento do corpo e nos movimentamos de forma harmônica. O que é aprendido pelo corpo nas sessões formais de treinamento, com o tempo pode ser transferido para as atividades diárias. Nosso treinamento se expressa em uma graciosidade corporal natural.

O excesso de esforço desnecessário fica óbvio no movimento corporal, mas pode ser descoberto também quando examinamos a nossa vida mental. Como é cansativo ficar pensando intensamente, sem parar, mesmo quando não há nenhum problema urgente que exija nossa atenção. E como é exaustivo ser arrastado por emoções tão intensas que levam a ações sem lucidez que nos geram arrependimento. Por isso, as práticas taoistas combinam movimento e serenidade, serenidade ao se mover, e movimento interno ao ficar imóvel. Como a inquietude do coração é a base para todo tipo de doença, aprender a serenar, a manter o coração tranquilo em todas as circunstâncias, não é apenas parte de uma prática meditativa ou de um caminho de vida, mas tem indiscutíveis efeitos para a saúde. Nas frenéticas realidades urbanas contemporâneas, pouca gente pode entender o valor do silêncio, da quietude, do repouso, mas principalmente do silêncio interno.

Por do sol na Serra dos Pirineus, foto do autor.

Mas não se trata de um silêncio artificial, que nega as experiências ou deseja congelar a consciência numa quietude forçada, que é como uma anestesia. Em nosso corpo e em toda a natureza, vida é movimento incessante. E nas consciências, vida é percepção incessante. O segredo é aprender ficar ao mesmo tempo atentx e relaxadx. Assim é possível perceber os espaços vazios entre os objetos, as pausas entre os movimentos, os silêncios entre os sons. Esse é um dos sentidos da experiência da vacuidade.

Justamente, como expliquei anteriormente, o wuwei não se refere a não fazer, mas sim ao fazer com o máximo de eficiência e o mínimo de esforço. Contudo, esse fazer eficaz depende da capacidade de se desfazer de um senso de autoria, de alguém que faz, e de permanecer “vazio”, no sentido de uma receptividade altamente adaptável. Quanto maior a sintonia com as circunstâncias, quanto mais fluidez e adaptabilidade, menos esforço é necessário para realizar uma tarefa e chegar a um resultado favorável. E, embora seja um princípio, é menos algo que se decide por em prática deliberadamente, do que a consequência ostensiva do resultado de um sistema de práticas que transforma o corpo e a subjetividade.

Como avaliar se a prática está sendo bem sucedida?

Na postagem de hoje, algumas considerações pragmáticas sobre os treinamentos taoistas. Anteriormente, já havia compartilhado algumas considerações sobre como praticar. Desta vez, a pergunta central é: quais os parâmetros para avaliar nosso desenvolvimento no caminho?

Um breve passo a passo, baseado na minha experiência pessoal, para iniciar as práticas taoistas com sucesso: 1) identifique uma escola/linhagem séria com a qual sinta afinidade; 2) localize 1 professor/a devidamente qualificado/a em quem confie; 3) organize sua rotina pessoal para que nela caibam momentos regulares de prática, de preferência além do horário da aula, e idealmente todos os dias; 4) regule a intensidade da prática, inclusive a duração das sessões, de acordo com uma avaliação realista de suas próprias necessidades e capacidades; 5) confie no desenvolvimento gradual por meio da prática continuada; 6) uma atitude perseverante, mas tranquila e despretensiosa, é mais produtiva do que o esforço excessivo e a ambição.

Os resultados da prática não se obtém do dia para a noite. Lembre que praticar o Tao é seguir um caminho, ou melhor, o caminho natural. Suas características são suavidade, circularidade e continuidade. Estamos em busca de aprender a manter-nos no fluxo, adaptando-nos habilmente às circunstâncias. Não é à toa que muitas, talvez a maioria, das práticas taoistas de longevidade e saúde, são também práticas de serenidade, possuindo uma qualidade meditativa. Ao treinar não apenas cultivamos o corpo, mas, por meio dele, aprendemos uma atitude existencial em consonância com o Tao. Com o tempo, há uma graciosidade e fluidez corporal que são a expressão ostensiva de uma leveza existencial.

O que estamos aprendendo? A primeira coisa é aprender a relaxar, reduzindo todo o esforço e tensão desnecessária à realização de uma determinada atividade. Relaxar é, em teoria simples, porque tem mais relação com não fazer, ou fazer menos. No entanto, exige uma prática persistente para que se torne um hábito ao mesmo tempo corporal e subjetivo. A não ação (wuwei) taoista não é o mesmo que passividade, ou inação, mas sim um estilo de agir que, de tão sintonizado com as circunstâncias, dá a impressão que nada foi feito, mas ainda assim, ocorreu o que a situação pedia.

Também estamos cultivando nosso eixo e nosso centro, num sentido cinestésico, de consciência do movimento corporal. Ao mesmo tempo, existencialmente, aprendemos a nos manter centrados/as e alinhados/as.

Então, proponho algumas perguntas que podem servir como critérios iniciais para avaliar nosso desenvolvimento na prática: 1) como está nossa consciência corporal, de peso, eixo, alinhamento e centro? 2) Que grau de relaxamento conseguimos acessar, tanto nas situações formais de treinamento, como numa aula de qigong ou taijiquan, por exemplo, mas também no nosso cotidiano? 3) Como respondemos a situações estressantes e por quanto tempo continuamos em estado de tensão após a situação ter passado? 4) A intensidade das nossas emoções tira nosso sossego, lucidez e equilíbrio? 5) Como lidamos com os contatos com outras pessoas?

Obviamente, se a motivação inicial para praticar os treinamentos taoistas foi uma questão de saúde, uma maneira fácil de avaliar seu progresso é comparar sua condição de saúde antes de começar a praticar, e como evoluiu com o passar do tempo, com treinamento regular. Observe, por exemplo, como está seu equilíbrio, flexibilidade, digestão, respiração, humor, qualidade do sono e se houve melhora em algum problema crônico de saúde, como uma alergia ou a tendência a ficar resfriado/a.

O Tao é indefinível. Mas como definir o Taoismo?

Definir o Tao é uma tarefa ingrata. No primeiro poema do Daodejing (道德經), Laozi alerta que o Grande Tao não pode ser nomeado. Qualquer praticante taoista sabe que o Tao é algo que se desvela por meio da experiência meditativa e da contemplação, não algo de ordem conceitual, que pode ser devidamente descrito com o intelecto. Mas e o taoismo?

Detalhe da fachada de um dos templos taoista no complexo de Zhinangong, Taipei. (Foto do autor)

Esse é o tema da postagem de hoje. Em primeiro lugar, uma maneira comum de tratar o tema é situar o taoismo dentre as grandes religiões mundiais, mencionada em qualquer dicionário de religiões ou tratado de história das religiões. A sinóloga Livia Kohn (2001, p. 1) o descreveu como “religião autóctone organizada da China tradicional”. Possivelmente, suas origens remontam a um desenvolvimento filosófico de formas locais de xamanismo, como apontou Toshihiko Izutsu. Quanto à oposição comum entre taoismo filosófico e religioso, outra sinóloga, Isabelle Robinet, considera a distinção insignificante. Além disso, ambas concordam com o fato básico que o taoismo nunca foi uma religião unificada. Em vez disso, consistiu em uma combinação de ensinamentos, que só pode ser compreendida por meio de suas manifestações concretas. E por outro lado, tanto para Robinet, quanto para outro autor, Kristopher Schipper, não se deve confundir o taoismo com a religiosidade popular chinesa. É importante também lembrar, que a noção de religião é eminentemente ocidental, e foi aplicada a aspectos de outras culturas. Em geral, ao definir taoismo como religião, se leva em consideração a existência de templos, de instituições sociais, que contêm uma hierarquia sacerdotal, os aspectos de sua cosmologia que dizem respeito ao sentido da vida, suas concepções sobre a morte e o pós-morte, divindades e outros seres espirituais com os quais se interage, bem como rituais que abordam estas temáticas e tecnologias contemplativas.

No entanto, em função da própria diversidade interna, nem toda escola ou linhagem taoista apresenta essas características. E além disso, há diversos outros saberes e práticas que se desenvolveram no contexto do taoismo e que não seriam descritas adequadamente como propriamente religiosos: artes marciais, práticas de longevidade, os diversos ramos da medicina chinesa, geomancia, caligrafia, pintura, música, astrologia, etc.

Uma outra possibilidade seria descrever o taoismo como uma tradição, inclusive como uma tradição contemplativa, diante da profusão de métodos meditativos centrais para várias de suas linhagens. No entanto, para isso, seria preciso, primeiro, elucidar, que significa tradição. Aqui, refiro-me simplesmente a uma transmissão cultural intergeracional de longa duração. E, no caso do taoismo, especificamente, um produto da civilização chinesa, que se tornou no século XX um patrimônio da humanidade. É importante frisar aqui, que não se trata de um conhecimento ancestral imutável. Seria um erro grave retirar o taoismo – ou qualquer outro fenômeno queiramos chamar de tradição – do fluxo da história. Todo conhecimento cultural vivo é sujeito, por sua própria natureza, à mudança, à releitura e à inovação, mesmo que o passado seja tratado com reverência. Aliás, o que torna algo um clássico é justamente a riqueza de sentido que permite novas releituras. Outro aspecto de igual relevância, é afastar-nos do uso do termo tradição como forma para legitimar o imaginário conservador. Não é o caso de idealizar o passado, na contramão da compreensão aprofundada de suas condições históricas. Uma tradição não é uma essência, mas sim um fluxo, com determinadas características que permitem perceber algumas continuidades em meio às descontinuidades.

Acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.

Que há de fundamental no taoismo? A noção de Tao (道), que aponta discretamente para o grande mistério da vida, com um certo senso de ordem e fluidez, mas que resiste às tentativas de descrevê-lo em palavras e categorizá-lo. Pode apenas ser indicado alusivamente, por exemplo, por meio do símbolo do taiji ☯, a mais sintética imagem do caráter dinâmico, complementar, cíclico de todos os processos da existência. Talvez a mais genial criação da civilização chinesa, a intuição de base que está por trás de inúmeras das suas grandes realizações. Toda a lógica do Yijing ou mesmo dos cinco movimentos, a base da medicina chinesa, derivam dessa primeira intuição.

Respeitando a diversidade de linhagens e escolas, prefiro concluir com algumas ponderações derivadas da minha própria experiência, como estudioso e praticante da escola que mestre Liu Pailin fundou no Brasil, e como discípulo da linhagem Kunlun. No período em que viveu no Brasil, mestre Pailin fez questão de frisar que seus ensinamentos se referiam ao conhecimento da natureza, à compreensão do funcionamento do Céu e da Terra e de suas implicações na vida humana. Transmitiu práticas de longevidade, terapêuticas da medicina chinesa e métodos de meditação que representam uma síntese das várias linhagens que conheceu e praticou. Nesse sentido, o que ofereceu a seus discípulos e discípulas foi o que chamava de um Caminho de Vida, que incluia a dimensão da espiritualidade, mas não à maneira de uma religião formal, nem ao menos do taoismo de tipo sacerdotal e/ou monástico.

É possível ser taoista na cidade?

Vista do pôr do sol no templo Tiandao, setembro de 2018. À distância, se percebe a silhueta da cidade de Taipei. ( Foto do autor.)

A tradição taoista se tornou mundialmente famosa por seu elogio à natureza. Desenvolvida por contemplativos que se refugiaram em montanhas e florestas, recusando honrarias e cargos na burocracia imperial, em busca das condições ideais para cultivar o e a serenidade. As histórias exemplares de mestres e mestras que teriam atingido a condição de imortal, falam do abandono das ambições mundanas. Mas será que para praticar o Tao é indispensável sair da cidade e renunciar a uma vida comum?

Certamente, como dizia mestre Liu Pailin, é recomendável a prática periódica em um ambiente natural dotado de um abundante e de boa qualidade, daí a busca por locais com um bom fengshui (風水) para treinar, inclusive com condições específicas dependendo do tipo de treinamento praticado. As andanças de Wang Liping e seus mestres pelas montanhas e outros lugares sagrados da China, descritas por dois de seus discípulos em Opening the Dragon Gate, biografia de um mestre contemporâneo da linhagem taoista Longmen (龍門), ilustram muito bem a importância do contato com a natureza no treinamento taoista.

Pintura em seda representando imortais reunidos em uma caverna, National Palace Museum, Taipei, foto do autor.

Mas, ao contrário dessa condição privilegiada, se boa parte da população mundial vive em grandes cidades, e se mestres famosos como Liu Pailin escolheram viver nelas, deve haver maneiras de praticar o Caminho também em condições que não são as ideais. Uma solução parcial para quem não tem nem a inclinação nem a oportunidade para viver como eremita contemplativo nas montanhas é integrar a prática do Tao ao seu cotidiano urbano. Em muitas partes do mundo, onde há presença cultural chinesa, pode-se ver pessoas praticando qigong, taijiquan e outras artes marciais nos parques públicos das grandes cidades.

A dica é incluir na rotina diária momentos para praticar com constância um treinamento preferido ou recomendado, além de momentos para simplesmente relaxar, sem fazer nada especial. Após anos praticando diferentes métodos, cada qual com seu propósito específico, arrisco uma generalização: todos eles regulam o , ao mesmo tempo em que ensinam uma presença corporal no mundo, estar alerta e relaxado ao mesmo tempo. Combinando movimento suave e circular, a respiração natural e relaxamento dos músculos, aprendemos a mover o corpo com economia, fazendo apenas a força necessária ao movimento eficiente. Permanecendo de pé na “postura da árvore” ou sentadx em meditação silenciosa, aprendemos a serenar o coração, ao mesmo tempo que alinhamos a postura e fortalecemos o corpo de dentro para fora, e do invisível para o visível.

Além de eremitas contemplativxs, a história da tradição taoista conta também com praticantes que permaneceram nas vilas e cidades, em uma vida simples: cuidando de suas famílias, exercendo um ofício e cultivando o Tao sem chamar muita atenção para si. Embora seja mais frequente lembrarmos de especialistas nos diferentes ramos da medicina chinesa ou de artistas marciais, houve praticantes do Tao nos diferentes estratos sociais e exercendo os mais diversos ofícios, dos mais sofisticados aos mais modestos. E ainda hoje isso é assim. Em minhas andanças por Taiwan para estudar a linhagem Kunlun, também conheci irmãos e irmãs de treinamento das mais diversas profissões: empresários, massagistas, mecânicos, artesãos, herboristas, especialistas em fengshui, etc.

E assim continuam(os), sozinhxs ou em pequenos grupos. Não tanto como uma identidade social, mas mais como um caminho de vida. Com o desafio, para nós, pessoas complicadas do mundo contemporâneo, de viver uma vida pautada no amor, na simplicidade e em não desejar ser o primeiro. Movendo-se lentamente no fluxo acelerado da metrópole, saboreie as pequenas alegrias de cada momento; faça o que é necessário em cada situação, mas mantenha o coração sereno; contemple o movimento contínuo de yin e yang à sua volta, mas também em você mesmx.

Medicina Chinesa e Treinamentos Taoistas: 3. longevidade e imortalidade

Nessa nova postagem da série, abordaremos o interesse pela longa vida. Desde o seu texto fundante, a medicina chinesa indaga sobre o tema, como é testemunhado no primeiro capítulo do Suwen (素問), no Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huangdineijing 黃帝內經), que mencionamos previamente. Um aspecto compartilhado do conhecimento tradicional da medicina e dos treinamentos taoistas é como manter a harmonia com o Tao, de modo a viver uma vida longa e saudável. Obviamente, além dos fatores constitucionais hereditários, o modo de vida em consonância com os ritmos da natureza é uma estratégia clássica para chegar a esse objetivo. Mas também, como apontamos na postagem passada, a prática regular dos treinamentos para cultivar a vida.

foto do autor, pintura sobre seda, National Palace Museum, Taipei.

 Ao falar em imortalidade, um tema recorrente na religiosidade popular chinesa e na alquimia taoista, à primeira vista, pareceria que se trata de uma imagem que leva às últimas consequências a busca da longevidade associada à compreensão da natureza. Encarna também o ideal de vida de gerações de praticantes que se retiraram para as montanhas e se dedicaram a uma vida contemplativa, como indicado pelo caractere chinês para imortal, xiān (仙), que contém em sua composição o caractere montanha, shān (山). Neste sentido, a imortalidade poderia ser tomada como “metáfora ou epíteto da alma realizada” (Bizerril, 2007, p. 120).  Alguém que se torna imortal não apenas possui uma vida muito mais longa que a de uma pessoa comum, mas também uma série de outros atributos especiais, inclusive poderes extraordinários.

Num sentido mais elevado, um/a imortal é uma pessoa que se aperfeiçoou, desenvolvendo o seu pleno potencial. Além do cultivo do seu , obtiveram uma completa equanimidade, livres de  impaciência, orgulho ou preocupações. Por isso, é dito: “o verdadeiro Tao requer de nós que lidemos com o mundo real, mas o coração não se agita”. Em completa sintonia com os ritmos da natureza e com as circunstâncias, são capazes de agir com compaixão. Tendo aprendido a esquecer-se completamente de si, podem praticar a não-ação (wúwéi 無為), a ação eficaz sem esforço. Podem ser pessoas sábias renomadas ou viver em completo anonimato, beneficiando secretamente o mundo à sua volta.

Dentre as habilidades extraordinárias tradicionalmente atribuídas a imortais devido à sua maestria do Tao, podemos citar: capacidades de cura; poderes de exorcismo; controle das condições climáticas; faculdades divinatórias; comunicação com animais, espirítos e divindades; imunidade aos elementos; controle sobre o próprio corpo; multiplicação e materialização/desmaterialização do corpo; invisibilidade; voo, etc. como belamente descrito em uma sessão da antologia de textos taoistas organizada por Livia Kohn, The Taoist Experience.

foto do autor, detalhe de pintura representando imortais taoistas,  National Palace Museum, Taipei.

O primeiro capítulo do Zhonglüchuandaoji (鍾呂傳道集) texto clássico de alquimia interna taoista, traduzido para o português, que contém conversações entre os imortais Zhongli Quan e Lü Dongbin, afirma que: “Havendo nascimento, haverá morte” (p.38). No entanto,  no contexto de uma concepção de ciclo de mortes e renascimentos, tanto o tipo de renascimento quanto a existência pós-morte podem ser afetadas pelo cultivo, que permite atingir o estado de imortal. Mas o imortal Zhongli diz: “tornar-se imortal não é a meta final do cultivo de si mesmo”(p. 39). E apresenta uma tipologia dos imortais: imortais fantasmas, imortais humanos, imortais espirituais, imortais terrestres e imortais celestes. A forma inferior é @ imortal fantasma, alguém que tentou cultivar o Tao sem a compreensão correta, não são imortais propriamente dit@s, mas fantasmas cuja existência yin continua.  @s imortais human@s também possuem uma compreensão incompleta do Tao, praticando apenas um método inflexivelmente, mas obtiveram boa saúde e vida longa. @s imortais terrestres obtiveram um nível moderado de realização e podem viver no reino humano sem morrer. Já @s imortais espirituais continuaram o seu treinamento no reino terrestre e transformaram seu corpo humano em um corpo sutil. Continuam o seu cultivo e agem em benefício da humanidade até tornarem-se imortais celestes, que residem nos reinos celestiais.

Isso tudo  apenas  dá uma ideia  desse fascinante tema na cosmologia tradicional chinesa. Imortais são personagens que aparecem com frequência na literatura, nas artes visuais, na religiosidade popular e nos clássicos taoistas.

Medicina Chinesa e Treinamentos Taoistas: 2. pré-natal e pós-natal

foto do autor: pintura sobre leque, National Palace Museum, Tapei.

Nessa nova postagem da série, mais uma reflexão na fronteira entre os dois campos. Desta vez, com relação ao uso das concepções chave de pré-natal e pós-natal, utilizadas por ambos. Dito de uma forma simples, o pré-natal remete ao estado embrionário literal e metaforicamente, ao período anterior ao nascimento  no caso de um ser humano, ao momento anterior à manifestação, no caso do universo. Já o pós-natal remete à vida humana ordinária após o nascimento, com seus processos de crescimento, maturação, envelhecimento e morte. E também aos ciclos do mundo natural: dias e noites, fases da lua, estações, o movimento dos astros, etc. No contexto da filosofia do Yìjīng (易經), o Clássico das Mutações, as duas condições podem ser expressas pelos dois diagramas do bāguà (八卦) conforme as figuras abaixo:

Particularmente, no caso da vida humana, há algumas aproximações e diferenças entre a descrição da medicina chinesa em geral e da tradição taoista, nos seguintes termos: o pré-natal corresponde àquilo (essência, qì, etc.) que foi recebido da natureza e de nossa mãe e nosso pai no momento da concepção, enquanto o pós-natal corresponde ao que é adquirido da nossa interação com o mundo, inclusive extraído do ar que respiramos e dos alimentos que ingerimos. O pré-natal representa, portanto, o que é inato, constitucional, hereditário na vida humana.  E então, uma vez perdido,  dificilmente pode ser recuperado. Sendo assim, o ciclo normal da vida humana, conforme descrito na filosofia do Yìjīng por meio do simbolismo do bagua pós-natal e dos 12 hexagramas do calendário, se inicia no estado totalmente yin d@ recém-nascid@, tenr@ e vulnerável, que se transforma gradualmente em pleno yáng, até que, ao chegar a plenitude, começa a declinar, perdendo yáng gradualmente, rumo à doença, à decrepitude e finalmente à morte, também descrita como totalmente yīn. A velocidade com que isso ocorrerá depende das condições e do estilo de vida, além da constituição de cada pessoa.

Contudo, esse processo natural pode ser positivamente afetado pelos treinamentos taoistas, que podem atrasar o relógio da vida, fazendo-a mais longa, de modo a envelhecer com vigor e lucidez. E até mesmo recuperar a essência e o pré-natal. Esse é um dos sentidos do chamado “Caminho do Retorno”. Esse aspecto da restauração da vitalidade e da preservação da saúde correspondem ao chamado treino ou cultivo da vida (mìng gōng 命功), a primeira etapa do caminho taoista. Esse foi um motivo que levou milhões de pessoas, no passado e no presente, a praticarem esses métodos, independente de se identificarem com o taoismo como um caminho de vida. Até aqui estamos no domínio do uso de exercícios preventivos ou terapêuticos como prática medicinal. Em nossa linhagem, mestre Liu Pailin e seu sucessor, mestre Liu Chihming, juntamente com seus discípulos e discípulas, ensinaram milhares de pessoas no Brasil a cuidar da saúde utilizando esse recurso, o treinamento diário de  práticas corporais baseadas num conhecimento tradicional sistemático acerca do .

Para além desse aspecto, o retorno ao pré-natal da tradição taoista é mais profundo: os treinamentos são o meio potencial para uma transformação completa –  ao mesmo tempo corporal, subjetiva e existencial –  que combina a plenitude da potência de movimento da vida a um estado de serenidade e espontaneidade, que permitiria estar em completa sintonia com as circunstâncias, de modo a agir de modo eficaz, mas sem esforço ou identificação pessoal com a ação.  Uma verdadeira arte de viver baseada na fluidez, que só se pode aprender por experiência. A plena realização dessa condição é encarnada na figura d@ imortal ou ser iluminado, que ainda será tema de alguma postagem futura.

Medicina chinesa e treinamentos taoistas: 1. aproximações e diferenças

Os Seis Centros (Liùshénqiào 六神竅), diagrama utilizada pelo mestre Liu Pailin em suas aulas de Daoyin e meditação. 

A postagem dessa semana inaugura uma nova série que discute as relações  entre medicina chinesa e treinamentos taoistas. É sabido que o fundamento filosófico e cosmológico da medicina chinesa pode ser corretamente descrito como taoista: a filosofia yīn/yáng e a teoria dos cinco movimentos são seus pilares. E além disso, conceitos, teorias e outros elementos da medicina tradicional informam tanto treinamentos para longevidade quanto métodos de meditação taoista. No entanto, não é necessário ser taoista para praticar medicina chinesa, nem tampouco praticar o taoismo implica um conhecimento aprofundado de medicina.

Hoje gostaria de responder a pergunta de um aluno de acupuntura: qual a relação entre o sistema de canais, colaterais (jīngluò 經絡) e os pontos de acupuntura (xué 穴) da medicina chinesa, e os centros (qiào 竅), campos de elixir (dāntián 丹田) e círculos/circulações (xuán 旋) dos treinamentos taoistas?

Em primeiro lugar, há certa correspondência entre o trajeto de algumas circulações utilizadas em treinamentos de qìgōng (e meditação) e canais extraordinários, como por exemplo o circuito formato pelo Vaso da Concepção e o Vaso Governador, no treinamento do “Pequeno Universo” ou “Circulação dos Seis Centros” (representados na ilustração acima). Grosso modo, Renmai e Dumai correspondem aos caminhos do Fogo e do Vento da alquimia interna taoista. Contudo, a circulação dos seis centros não segue pela superfície da cabeça, acompanhando os pontos do trajeto do Vaso Governador na linha mediana do crânio, em vez disso conecta vários centros importantes no interior da cabeça, o que poderíamos supor que corresponde a um ramo interno do Dumai.

Comparação semelhante pode ser feita entre os pontos de acupuntura e os centros. Existe uma correspondência entre algumas localizações importantes, mas não são idênticas. Por exemplo, o ponto VC1 ( Huìyīn 會陰), situado no períneo, corresponde ao centro Yīnqiào (陰竅), no entanto, este segundo se situa nos genitais internos. O ponto VG4 (mìngmén 命門) corresponde ao centro dos rins (shènqiào 腎竅), mas enquanto o ponto de acupuntura se situa na coluna vertebral, o centro se situa no interior do corpo, entre os rins e à frente da coluna. Resumindo, em geral os centros utilizados em meditação e qìgōng estão situados mais internamente no corpo, além do alcance do agulhamento, ao contrário dos pontos de acupuntura.

Além disso, há os campos de elixir, que são regiões maiores, que abrangem vários centros e pontos de acupuntura. A transmissão que recebi fala em três:  superior, médio e inferior. Estão situados, respectivamente, na cabeça, no peito e no ventre. Possuem funções e  localizações distintas do Triplo Aquecedor (Sānjiāo 三焦), víscera da medicina chinesa sem correspondência com as estruturas identificadas pela anatomia ocidental, mas que, entre outros aspectos, representa três conjuntos de funções fisiológicas: respiração/circulação, digestão, excreção.

Ou seja, é preciso prudência ao estudar os dois campos de conhecimento tradicional chinês, prestando atenção a aproximações e distinções. Minha recomendação é evitar o realismo ingênuo. Não se trata de descobrir uma verdade objetiva separada de construções simbólicas culturalmente situadas e de experiências corpóreas. Nenhum dos conceitos mencionados aqui refere-se a um objeto físico que pode ser apontado, mas compõem uma tecnologia cultural eficaz que permite prevenir e tratar doenças, promover a saúde e a longevidade, acessar experiências meditativas e desenvolver um certo tipo de consciência corporal.

Isso fica evidente quando constatamos as diferenças de terminologia, descrição e interpretação das várias linhagens taoistas, mas também quando fazemos estudos comparativos do que poderia ser chamado de “psicofisiologia do corpo sutil” conforme elaborada também em outras tradições como o yoga e o tantra, tanto hindu quanto budista, só para citar uns exemplos.

Quem supõe que os centros e campos de elixir descritos pelos taoistas sejam a mesma coisa que os chakras das tradições indianas, descobrirá, com surpresa, que suas formas, cores, localizações, funções e quantidades divergem enormemente. Mais interessante ainda, nem ao menos no interior de uma mesma tradição há esse consenso, exceto quando foi forçado em certas circunstâncias históricas.
A esse respeito, achei particularmente instrutivo o artigo de Christopher Wallis, the real story on the Chakras. Ele demonstra que, até o final do século XIX, não havia ainda um sistema unificado de chakras, mas sim várias versões, dependendo da escola. Foi a preservação e tradução de uma obra indiana para línguas ocidentais que fez o sistema de Sete chakras a concepção oficial e canônica do yoga. E afirma que os chakras tem função prescritiva e não descritiva, são um método ióguico e meditativo para organizar a circulação do prana no corpo de certa maneira, não a descrição de uma realidade a priori.
E por que me refiro a esse assunto em um blog sobre taoismo? Há uma analogia entre os diversos sistemas dentro uma mesma tradição e na comparação entre tradições distintas,  mas não há uma correspondência coerente. Podemos aprender a mesma lição proposta por Wallis a respeito também dos conceitos do taoismo e da medicina chinesa. São métodos para induzir certas experiências, uma linguagem eficaz, resultante da experiência acumulada de incontáveis gerações de praticantes, mas não são fatos objetivos a priori que devam ser debatidos dogmaticamente.

Medicina Tradicional Chinesa: 4. Moxabustão

Nessa nova postagem da série, falaremos de outro  tratamento clássico da medicina chinesa. A moxa é um método antigo que utiliza a artemísia, às vezes em combinação com outras ervas medicinais, para queimar, defumar e aquecer certas regiões do corpo, agindo sobre os pontos de acupuntura, os canais e os colaterais. Sua prática está registrada desde o século VI a.C. Originalmente o método mais utilizado era moxa direta, os cones de artemísia aplicados diretamente sobre a pele.

img_4121Nas dinastias Jin e Tang, desenvolveu-se a moxa indireta com interposição de um anteparo (de sal, gengibre, alho ou outra substância) entre o cone de artemísia e a pele. E, por fim, durante a dinastia Ming desenvolveu-se a moxa em bastão. Além desses métodos, há outros como a caixa de moxa, para aquecer uma região maior, ou as agulhas aquecidas com moxa. Mais recentemente, desenvolveu-se um bastão de moxa feito de carvão de artemísia que tem a vantagem de não emitir fumaça. Entre os seus efeitos terapêuticos clássicos estão: remover o Frio, o aquecer os canais, estimular a circulação de e sangue, tratar edemas, desintoxicação, bem como o fortalecimento geral do organismo. A moxa também é recomendada no tratamento de alguns tipos de lesões das articulações. 9af9dbd1-842e-4174-9952-c26f452e2fd7-1Para isso, uma aplicação clássica, considerada um verdadeiro tratamento para longevidade, é a aplicação regular de moxa no ponto zusanli (E36).

Medicina Tradicional Chinesa: 3. As agulhas de acupuntura

Nesta nova postagem da série medicina tradicional chinesa, começaremos a falar de seus métodos. O primeiro deles, talvez o mais característico dessa tradição médica é uso de agulhas especiais para tratar e prevenir doenças. img_4380Voltando ao Clássico Interno do Imperador Amarelo, o capítulo 1 do Lingshu (靈樞) descreve os dois princípios básicos do uso das agulhas: tonificar e dispersar. Isso corresponde à atividade natural do Tao, que tende ao equilíbrio: suprir o que está em deficiência; remover o patogênico que invadiu o corpo do exterior, ou o de um dos cinco movimentos que está em excesso, por motivos constitucionais, alimentares, emocionais, etc. E ensina como manipular os nove tipos de agulhas (existentes na época) e estimular os pontos de acupuntura, dependendo do propósito. Em particular, ao fazê-lo, a obtenção da sensação de acupuntura, déqì (得氣) é considerada fundamental para o efeito curativo da acupuntura. Esse fato, que a chegada ou obtenção do é crucial, mostra que, do ponto de vista tradicional, a acupuntura não é apenas  manipulação mecânica das agulhas. Sua prática possui uma dimensão de qìgōng, dependente da intenção e do  dx acupunturista.