Aprender práticas taoistas na era do imediatismo

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

As práticas taoistas são a expressão de um modo de viver a vida. São métodos não só para atingir finalidades pragmáticas, como curar doenças, preservar a boa saúde, atingir a longevidade. Mas são também meios para compreender pela experiência conceitos filosóficos complexos: Tao, não ação, espontaneidade, Vazio. E, porque não, também para realizar o Tao, o estado natural. Mas como fazer para aprender práticas taoistas na era do imediatismo? Como tornar relevantes no mundo de hoje estes métodos milenares? Esta é mais uma postagem da série taoismo e mundo contemporâneo.

Assista aqui a versão em vídeo desta postagem.

Parece que, para muitas pessoas, a vida cotidiana normal precisa ser vivida em velocidade crescente. O filósofo Byul Chung-Han descreveu a sociedade contemporânea como uma Sociedade do Cansaço. Nela, o sujeito da performance explora-se a si próprio voluntariamente, pois acredita que deve se mostrar constantemente produtivo, bem sucedido e feliz, mesmo às custas da sua saúde e sanidade.

Como instrutor de práticas taoistas, tenho encontrado uma situação curiosa. Pessoas têm me perguntado sobre cursos de formação para instrutor de Qigong. Em si, esta é uma boa notícia. Mas o curioso é querer ser instrutor sem antes ser aprendiz. Algumas pessoas nunca praticaram e já pensam em como seria ensinar. Esta vontade de “queimar etapas” é uma característica do nosso tempo. Então como ensinar práticas taoistas na era do imediatismo?

A formação tradicional

Como é a formação tradicional? Resumidamente: iniciante, estudante, praticante experiente, e só então instrutor, professor, e talvez mestre.

Mestre Liu Pallin (1907-2000), pioneiro do taoismo, da medicina chinesa e do Taichi.

Primeiro, somos iniciantes. Quer dizer, não sabemos nada, ou quase nada. Então, depois de um tempo como aprendizes, começamos a nos familiarizar com os princípios das artes taoistas. O treino traz consigo uma mudança de hábitos, primeiro motores e posturais, depois das atitudes habituais. Para isso, basta ter 1 professor/a qualificado/a e um pouco de dedicação e interesse em aprender.

Depois, com mais algumas semanas ou meses de treino, começamos a sentir os benefícios de praticar. Primeiro, nossa vitalidade aumenta. Gradualmente, alguns problemas crônicos de saúde começam a melhorar. Algumas dores que tínhamos no corpo não nos visitam mais. Percebemos também que o estresse diminuiu. Se continuarmos a praticar, esses benefícios se aprofundam. Além disso, começamos a memorizar as sequências de exercícios. E aprimorar nossa consciência corporal.

E, quando memorizamos as sequências, podemos também treinar fora das aulas. Veja bem, quanto mais repetir o treino, maior o benefício. Isso é, se tiver compreendido como praticar corretamente.

Turma da formação em espada Taichi com o professor Ronaldo, Brasília, 2000-2001. O professor Ronaldo está agachado, ao centro. O autor está de pé, logo atrás dele.

Como me disse um dos meus professores: “o treino começa a se revelar para você depois de aprender a sequência”. A partir deste momento a prática se baseia mais na experiência de mover e sentir o corpo. É neste contexto que aprendemos a sentir o Qi. Esta percepção se manifesta primeiro como sensações no nosso próprio corpo.

Mas é um processo lento. Leva alguns anos até integrar todos os conhecimentos e experiências no nível necessário para conseguir ensinar adequadamente. E, além de praticar muitos anos, é importante a orientação de uma pessoa qualificada, mais experiente.

Pois no passado, treinava-se todos os dias com um mestre, ano após ano. Um belo dia, chegava um momento que o mestre promovia o estudante a instrutor, para auxiliar na transmissão dos conhecimentos. E com mais maturidade, poderia então partir para abrir sua própria escola. Mas mesmo entre praticantes avançados/as, nem todo mundo se aprofundaria no caminho a ponto de se tornar mestre.

Treino de Qigong, seminário com mestre Liu Chihming, São Paulo, 2000. O autor é a segunda pessoa à esquerda. (foto da organização do evento).

Que alternativas temos no mundo contemporâneo? A formação na era do imediatismo

Nas nossas vidas urbanas agitadas, cheias de ocupações, atividades e distrações, como começar este caminho? Para começar, encontre tempo em sua agenda conturbada. Pelo menos uma aula por semana é um bom começo. E alguns minutos por dia é uma necessidade, se você deseja progredir.

Tenho uma sugestão, se você sente que não tem tempo. Quem sabe você pode substituir o tempo perdido com distrações excessivas, por alguns minutos de foco e relaxamento. Como resultado, você vai dispor de mais energia para empregar no que realmente importa.

Mas tome cuidado para não cair na armadilha da produtividade infinita. Nem tudo é trabalho, lucro, performance. O momento para treinar uma prática taoista é um momento para o cultivo de si. Mas, paradoxalmente, não é para produzir um eu maior e melhor, justo o contrário. Praticamos Taijiquan, Qigong, meditação para recuperar a capacidade de relaxar. Esta é uma capacidade natural, mas muitas vezes perdida devido a uma vida muito estressante. Quanto a isso, um fator particularmente gerador de estress é a necessidade de cultivar, defender e fortalecer nossa identidade pessoal. A necessidade de ser alguém, alguém especial, é uma das grandes fontes de sofrimento. E com o aumento da individualização no mundo atual, esse sofrimento se tornou ainda maior.

Também praticamos para recuperar nossas energias. É preciso manter o equilíbrio entre atividade e repouso, ou em termos taoistas, movimento e quietude, Yang e Yin. A prática correta deve revigorar, em vez de cansar, ao contrário da ideia convencional de “fazer exercício”. E acima de tudo, quando o corpo está em equilíbrio, é mais fácil ter uma mente calma.

Praticando Baguazhang com mestre Liu Chihming e professor Ronaldo Fernandes, São Paulo, 2000. (foto da organização do evento).

Como conciliar a formação tradicional nas práticas taoistas na era do imediatismo?

Para a maioria das pessoas, talvez não seja mais possível praticar com um mestre dia após dia, por anos a fio. Ainda assim, tendo encontrado uma fonte confiável, é possível aprender com ela. Basta fazer os devidos ajustes na nossa rotina e na nossa ambição por resultados mirabolantes e rápidos.

Encontre espaços em sua rotina, para fazer das práticas taoistas de sua preferência, um hábito diário, nem que seja por alguns minutos. Faça aulas regulares com uma pessoa qualificada, que aprendeu de um mestre autêntico e tem paciência e generosidade para responder de forma clara às suas dúvidas e dificuldades. Treine individualmente para se apropriar dos treinos, memorize as técnicas, repita e aperfeiçoe os movimentos, descubra os seus efeitos com sua experiência. Pois o benefício sentido é o melhor incentivo para continuar a praticar.

É fundamental ter um/a professor/a de referência, que pode acompanhar o seu desenvolvimento, fazer correções e tirar dúvidas. Mas afora isso, é possível aprender com outras pessoas, inclusive utilizar as novas tecnologias de aula ou curso online.

Depois de ter amadurecido sua própria prática e colhido seus frutos, aí então é o melhor momento para compartilhar este tesouro com outras pessoas. Converse com sua professor ou professora, para avaliar se já pode ensinar o que aprendeu.

Se deseja seguir este caminho, vale a pena fazer uma formação para instrutor/a, ou passar pela avaliação certificada por sua escola.

A minha própria experiência aprendendo as práticas taoistas

Como aprendi as práticas taoistas na era do imediatismo? O começo da minha caminhada com as práticas taoistas também foi marcado pela era do imediatismo, só que por outro motivo. Em 1998, estava em trabalho de campo antropológico na escola taoista de mestre Liu Pai Lin em São Paulo. Minha metodologia era participativa e incluía aprender o Taichi e outras práticas como parte do processo de minha etnografia. Eu era um sujeito jovem, ambicioso, experiente nas artes marciais e em dedicação exclusiva. Resultado: aprendi a sequência do Tai Chi de 37 movimentos em apenas 30 dias. E fiquei orgulhoso do meu feito. Ainda não tinha entendido que o verdadeiro aprendizado é para vida toda!

O que começou como pesquisa antropológica virou, contudo, um caminho de vida. Assim, nunca mais parei de treinar. Aprendi novas técnicas e sequências, ano após ano. Em primeiro lugar, para resistir ao estresse e desgaste da vida de professor. E anos mais tarde, porque compreendi que, além dos benefícios óbvios para saúde, havia muito mais. Era uma aprendizado sobre o viver.

Para continuar a aprender e aprofundar o que já sabia, foi um longo percurso. Fiz aulas particulares (de taichi, espada, Baguazhang, meditação), frequentei seminários com os mestres sobre práticas e filosofia taoista e cursos de formação (Taichi Pai Lin, Espada Taichi, I Ching Taoista), fiz as provas de certificação para instrutor de Taijiquan e Baguazhang. Em 2015, fui a Taiwan receber uma iniciação para tornar-me oficialmente discípulo da linhagem Kunlun, uma das várias linhagens do mestre Liu Pailin. Ao todo, foram mais de 20 anos de aprendizado, estudo e prática para poder me considerar um instrutor da minha escola.

Participantes do seminário com mestre Liu Chihming, São Paulo, 2017. O autor está sentado próximo ao canto inferior esquerdo. (foto da organização do evento)

Princípios do Qigong

Se preferir, assista ao vídeo desta postagem no nosso canal no Youtube.

Introdução

Neste artigo, compartilho os conteúdos da masterclass online “Princípios do Qigong: o segredo da prátida bem sucedida”. Nossa conversa hoje é sobre princípios gerais, não sobre as instruções para praticar uma sequência específica. Primeiro, explicarei o que é Qigong. Em seguida, desnvolverei os seguintes aspectos:

  • Como e de quem aprender?
  • Quando, o que e com que frequência praticar?
  • Onde praticar?
  • Postura, alinhamento e ritmo corporal
  • A atitude mental

Depois, falarei dos benefícios do Qigong. E, no final, contarei um pouco da minha história, para você entender como aprendi o que compartilho aqui.

Que é Qigong?

Qìgōng (pronuncie Tchi kung em português) é um termo moderno geral para toda prática que trabalha, treina ou cultiva (gōng 功) o Qi. Geralmente traduzido como energia, Qì (氣 ou 炁) é nossa potência de vida e movimento. Existem diversas escolas, de origem taoista, budista, confucionista, médica e marcial, etc. Os exercícios mais antigos provém da alquimia interna taoista e da medicina tradicional e já eram praticados antes da era cristã, como podemos constatar pelos achados arqueológicos de Mawangdui, datados da dinastia Han (200 a.C.-220d.C.), e de Guodian, datados do período dos Reinos Combatentes (475-221 a.C). Há referências a eles também em textos importantes como o Clássico do Caminho e da Virtude (Dàodéjīng) e no  Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng). Respectivamente, o primeiro é o mais famoso texto filosófico taoista e o segundo o mais famoso texto antigo de medicina chinesa.

Os dois pictogramas para Qì: à esquerda o fogo original do Céu representa o Qi pré-natal. À direita, a combinação de vapor e arroz represetna o Qi pós-natal, que provém da respiração e dos alimentos.

Como e de quem aprender?

O primeiro princípio do Qigong é saber de quem aprender. Uma pessoa é confiável porque está qualificada para ensinar. Ela recebeu a transmissão de uma linhagem autêntica. E praticou e vivenciou os benefícios dos métodos que ensina. Além disso, conhece os princípios do Qigong. Sabe explicá-los e tem paciência, e tempo, para ensinar e tirar dúvidas. Aprendemos por imitação, repetição, treinando junto, escutando as instruções e corrigindo os erros conforme as orientações que recebemos.

O professor ou professora ideal, no nível mais elevado, é um mestre ou mestra que realizou o Tao, alguém de vasto conhecimento, compaixão e sabedoria. Estas pessoas são muito raras. Então, de modo mais realista, basta um instrutor ou instrutora experiente, com permissão de seu mestre ou mestra para ensinar.

Atenção! O conhecimento nunca está completo nos livros. Sempre há detalhes fundamentais que só aprendemos diretamente com uma pessoa mais experiente.

No Qigong, além das posturas e movimentos visíveis, há também a intenção. Com ela, direcionamos a circulação de Qi. Assim, também precisamos de explicações sobre o aspecto invisível da prática.

Quando e com que frequência praticar?

O segundo princípio do Qigong diz respeito ao momento da prática. Preste atenção nos horários do dia e nas estações do ano para escolher o que praticar. Por exemplo, exercícios respiratórios, só da madrugada até 11:00 da manhã. Evite exercícios pesados no meio do dia. Não pratique sob as árvores à noite. Evite praticar durante tempestades. E leve em consideração seu estado de saúde e o momento do seu ciclo de vida. Por exemplo, alguns treinamentos são desaconselhados durante o período menstrual e a gestação, outros são mais importantes quando estamos convalescentes, ou quando queremos prevenir determinadas doenças, e assim por diante.

Treine regularmente, de preferência todos os dias. Pois não há progresso sem regularidade. Após 49 a 100 dias de treinamento contínuo, você começa a perceber diferenças na sua vitalidade.

Se você conhece vários tipos de treinamentos, então pode organizar a prática de duas maneiras, dependendo do horário.

De manhã, siga esta sequência:

  • meditação,
  • respiração de limpeza,
  • qigong estático,
  • qigong de movimento
  • e arte marcial.

À noite, inverta a sequência, retirando a respiração.

Onde praticar?

O terceiro princípio do Qigong diz respeito ao local da prática. Há duas opções básicas: ao ar livre ou dentro de casa.

Se você quer treinar em contato com a natureza, evite expor-se a condições climáticas extremas: calor, frio, umidade, vento e secura excessivos. Por exemplo, não se exponha ao sol forte, à chuva, ao vento. E evite pisar descalço num terreno frio ou molhado.

Além disso, escolha um ambiente natural com Qi abundante e de boa qualidade: ar puro, água límpida, árvores, montanhas, clima ameno. Se isto não é possível, onde você mora, recomenda-se viajar periodicamente para ter contato com a natureza. Os antigos taoistas viajavam para florestas e montanhas remotas para obter o ambiente com o fengshui mais propício para treinar.

Quando você pratica na cidade, ao ar livre, é melhor praticar em parques e jardins, mas ao abrigo do sol forte, do vento e da chuva. Evite ambientes movimentados, barulhentos e poluídos.

Em casa, pratique em um cômodo limpo, iluminado e com ventilação, mas sem se expor diretamente a correntes de ar.

Mas qualquer que seja o ambiente, é importante ter suficiente conforto térmico, acústico, luminoso e segurança, para que possamos relaxar durante a prática, temporariamente sem desconfortos, preocupações e interrupções.

O Corpo

O quarto princípio do Qigong diz respeito ao corpo: sua postura, alinhamento e ritmo.

A prática do Qigong de longa vida visa promover a circulação do Qi correto no nosso corpo, a eliminação do Qi patogênico e a captação do Qi límpido da natureza. E para isso, é importante manter o corpo alinhado e relaxado. Pois o alinhamento favorece a ligação com o Qi do Céu e da Terra. Observe, também, as Seis harmonias entre as articulações: ombros-quadris, cotovelos-joelhos, pulsos-tornozelos. Por sua vez, o relaxamento favorece a livre circulação de Qi e Sangue no corpo. Mas, relaxar não é desabar, a postura continua estável e alinhada.

No Qigong taoista de longevidade, o tônus muscular vem da postura e dos movimentos, não contraímos os músculos com força, deliberadamente. Por isto, é importante usar apenas a força necessária.

Além disso, praticamos com atenção à nossa consciência corporal. Perceba  a distribuição do peso do corpo: nos dois pés, predominante em um dos pés ou apenas em um só pé. Faça alongamentos suaves, respeitando os limites do corpo. A repetição suave e consciente desenvolve e mantém a flexibilidade.

Já a respiração é natural, pelo nariz, movendo a barriga como um bebê. Exceto em exercícios respiratórios com instruções específicas. Nào confunda Qigong com um sinônimo de exercício respiratório.

O ritmo dos movimentos é lento, contínuo e fluido. Por que mover-se “em câmera lenta”? Por vários motivos! Porque isso favorece a circulação equilibrada de Qi e Sangue. Remove bloqueios. Previne lesões (causadas por movimentos bruscos combinados à má postura). Acalma a mente e desenvolve a consciência corporal.

E, por fim, o Qi se manifesta como sensação corporal (calor, formigamento, eletricidade, frio, magnetismo, pulsação, etc). O conhecimento do Qigong não é apenas conceitual. É baseado na experiência e sentido no corpo, não um um mero conceito ou crença..

A mente

O quinto princípio do Qigong diz respeito ao papel da mente. Um dito clássico da medicina chinesa afirma que a Intenção guia o Qi e o Qi guia o Sangue. Portanto, Qigong não é apenas uma ginástica, o efeito depende de nossa consciência presente. Os movimentos são acompanhados por um direcionamento da consciência.

Qigong se pratica com atenção, não é um exercício mecânico, pois precisa de consciência para ser totalmente eficaz. Por isto mesmo, além de prática para saúde é também meditação em movimento.

Antes de começar, fazemos uma preparação interior, tomando consciência do eixo e do centro do corpo. Após concluir, fazemos uma pausa, levando a atenção para o centro do corpo.

Repare que uma sessão de prática reproduz a antiga cosmologia chinesa: partimos do Wújí (無極), para o Tàijí (太極), para as “dez mil coisas”; ao final retornamos ao Tàijí e finalmente ao Wújí. Ou seja, do Vazio, para a unidade dinâmica dos opostos, que se manifesta de mil formas diferentes, e de volta ao Vazio. Logo, esta sequência implica diferentes formas de posicionar nossa consciência durante a prática, alternando entre ficar focado/a e ficar vazio/a.

Outra filosofia do exercício

O Qigong taoista tem outra filosofia do exercício. A prática correta é relaxante e revigorante, gera calma e bem estar. Podemos suar levemente, o coração pode bater um pouco mais forte. Mas não precisamos sentir dor, exaustão, nem ficar ofegantes após os exercícios.

Aqui, a instrução chave é: “sem forçar”. Respeitamos nossos limites corporais e psicológicos. À medida que praticamos com paciência e nos familiarizamos com os exercícios, o corpo vai ficar mais forte, vigoroso e flexível, a mente vai ficar mais calma. Com o tempo, aprendemos a diminuir a tensão física e mental habitual, relaxando o esforço desnecessário.

Praticando assim, podemos vivenciar experiências de fluxo: uma sensação de unidade entre corpo, consciência e ação sem esforço.

Benefícios do Qigong

Ao entrevistar dezenas de praticantes no meu trabalho de campo, foram frequentes os relatos de melhoras nas condições de saúde, inclusive em doenças crônicas graves (Bizerril, 2007).

Quando praticamos regularmente, percebemos um aumento de vitalidade, melhora na digestão, na respiração, no ciclo menstrual das mulheres, no equilíbrio, flexibilidade, coordenação motora. Constatei isso também por experiência própria.

Um efeito ainda mais sutil é sobre nossos estados de humor e paisagem mental. Com o tempo, a mente fica mais calma. As emoções ficam mais estáveis e equilibradas. Até as dificuldades e problemas da vida abalam menos.

Devido ao coração mais sereno e ao corpo mais relaxado, reagimos de forma mais adequada e proporcional às situações desafiadoras. Pois aprendemos a usar apenas a força necessária, com mais sensibilidade ao contexto e à ação necessária.

Qigong e filosofia taoista

A  prática bem orientada do Qigong tem também profundas consequências existenciais. E pode produzir mudanças de estilo e de ritmo de vida. Depois de praticar por algum tempo, começamos a sentir que a pressa, a agitação e o estresse habitual não são benéficos nem necessários.

E tem também consequências filosóficas. Pois a experiência corporal permite compreender conceitos filosóficos difíceis, como Caminho Natural (Dào 道), Taichi (Tàijí 太極), não ação (wúwéi 無為), vacuidade (wú 無, xū 虛), Qi (氣)… Isto acontece por meio do processo que a antropologia da corporeidade chama de “corporificação” (embodiment).

É assim porque os conceitos da filosofia taoista são indicadores de experiências. A naturalidade, a integração dos contrários, a fluidez, a ação sem esforço ou identidade, podem ser vivenciadas por meio de prática corporal regular.

Como tudo começou?

Mestre Liu Pailin (劉百齡 Liú Bǎilíng) (Tianjin,1907- São Paulo, 2000), pioneiro da divulgação do Taichi, do taoismo e da medicina chinesa no Brasil

Em 1998, parti para São Paulo, em trabalho de campo antropológico para minha tese de doutorado. Lá conheci o mestre Liu Pai Lin, em seus últimos anos de vida. Utilizando um metodologia participativa, aprendi e pratiquei intensivamente o Taichi Pai Lin, entrevistei e convivi com praticantes de todos os níveis, observei o cotidiano e anotei, como faz um etnógrafo em pesquisa de campo.

O encontro com o mestre foi tão impactante que, ao voltar para casa, continuei a praticar e nunca mais parei. Havia algo diferente naquele senhor de pouco mais de 90 anos. Uma alegria de viver, uma energia que parecia inesgotável, a velhice sem sinais de decrepitude, os olhos brilhantes de uma inteligência viva, uma grande flexibilidade de corpo e mente. E, pela primeira vez na vida, aprendi a importância de relaxar e fluir, em vez de usar a força de vontade e lutar.

Quem sou eu?

Defendi minha tese de doutorado, O Retorno à Raiz: uma linhagem taoista no Brasil, em janeiro de 2001. No período de 2001 a 2018, publiquei artigos, capítulos de livro e o livro da tese, sobre a tradição taoista no Brasil. Iniciei carreira como professor universitário e pesquidador, função que exerci até julho de 2017.

Paralelamente a isso, passei anos praticando diariamente, seguindo a orientação dos mestres, e sob supervisão de professores/as. Aprofundei minha compreensão do Qigong, Taijiquan, Espada Taiji, Baguazhang, Daoyin, meditação taoista, medicina chinesa e filosofia taoista. Em 2016, tornei-me instrutor certificado de práticas taoistas. Em 2015, viajei a Taiwan pela primeira vez e tornei-me discípulo da linhagem taoista Kunlun Xianzong. Fiz outras viagens para visitar meu professor de meditação taoista desta linhagem e continuar aprofundando a minha prática. Tornei-me também acupunturista. Após 17 anos de carreira acadêmica e cerca de 20 anos de estudos acadêmicos e prática pessoal da tradição taoista, decidi me dedicar a ensinar estes conhecimentos tradicionais chineses.

O resultado disso é o projeto Qigong Taoista, presente nas redes sociais e neste sítio web.

Meditação Taoista: 03. Afinal, para que meditar?

Na postagem de hoje, a ideia é oferecer ao público interessado uma explicação simples, sem tecnicalidades, sobre o que é meditação taoista e para que praticá-la. Um ponto de partida simples é entender que a meditação é um método. Mas um método para que?

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Vamos à resposta mais direta: no nível mais profundo, a meditação taoista é um método para cultivar o que os antigos chineses chamaram de Caminho Natural, que é uma tradução razoável para o termo Tao. Em vez de usar termos filosoficamente complicados, digamos que, na prática, a meditação é um método que desenvolve gradualmente em nós a capacidade de passar cada vez mais tempo em um estado que combina relaxamento, serenidade, sensibilidade ao ambiente à nossa volta, e prontidão para agir em conformidade com o que a situação demanda em um momento específico. Ou seja, não meditamos para sermos pessoas melhores, nem obter algo. Nem se trata de ficar passivo/a, insensível ou indiferente. Em vez disso, meditamos para aprender a reduzir toda tensão, força e identidade desnecessárias, permitindo que as qualidades de nossa natureza essencial se manifestem. Quando nos acostumamos a permanecer em um estado de relaxamento alerta, menos identificados/as com uma identidade sólida associada a desejos e metas, viver fica mais simples. Então, a tradição taoista confia no potencial para bem viver, presente em todos/as nós, que se revela quando nosso está equilibrado e a tensão se dissolve.

Os métodos taoistas se dividem em treinos de movimento e treinos de serenidade. A meditação silenciosa na postura sentada é o treino de serenidade por excelência. Nela, trabalhamos ao mesmo tempo a serenidade e a vitalidade, como expliquei na primeira postagem dessa série. A primeira etapa na prática desse tipo de meditação é o restabelecimento de nossa vitalidade e do equilíbrio de nosso organismo, descrito pelos antigos chineses em termos de Yin e Yang e dos chamados cinco “elementos” (metal, água, madeira, fogo e terra), que correspondem aos órgãos, tecidos e funcionamento de nosso corpo, como tenho explicado desde a primeira postagem sobre medicina tradicional chinesa. Como na concepção chinesa não há uma separação entre corpo e mente, o equilíbrio de nosso organismo está diretamente ligado ao equilíbrio emocional. Assim, quando nossas energias estão equilibradas, é mais fácil meditar. E ao mesmo tempo, na medida que praticamos meditação, aumenta nossa capacidade de autorregulação, o que permite lidar com situações que antes nos deixariam doentes, exaustas/os ou agitadas/os.

O que a meditação oferece é um momento com condições ideias para cultivar a serenidade e “recarregar nossas baterias“. Paramos temporariamente nossas atividades cotidianas, largamos os projetos e preocupações, sentamos em um local silencioso e que inspire tranquilidade. E nessas condições praticamos algumas técnicas para favorecer o relaxamento, a lucidez e a vitalidade. Mas com o tempo de prática regular, os estados de serenidade, relaxamento e vigor que vivenciamos durante a sessão formal de meditação podem ser vivenciados no cotidiano quando não estamos meditando. Algo em nós mudou sem que tenhamos deliberadamente tentado mudar ou aperfeiçoar nada.

Pintura em nanquim, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

Assim como a água que brota de uma nascente e se torna disponível para nutrir a vida dos seres vivos que ali habitam, ou o sol que nasce a cada dia iluminando e aquecendo a terra, espontaneamente se manifesta um potencial para ação eficaz que é benéfico para nós mesmos/as e para quem está à nossa volta. Quando estamos revigorados/as e relaxados/as fica mais fácil estar disponível para os/as outros/as do que quando estamos tensos/as, ensimesmados/as, focados/as em nossas dores e dificuldades. E como explicou o mestre Pailin, esse é o sentido de ter uma vida longa e saudável: poder expressar nosso potencial para benefício coletivo, compartilhando e apoiando o desenvolvimento dos/as outros/as.

Caso deseje aprender a praticar, em março de 2020 teremos um curso de introdução em Brasília.

Meditação Taoista: 02. a postura de meditação

A postagem de hoje dá seguimento à série sobre meditação. Dessa vez, o foco é no aspecto prático, mas sem perder de vista os fundamentos. A consciência da postura durante a prática formal de meditação é um aspecto que precisa ser considerado na suas devidas proporções; não é toda a prática, nem é algo que deveria ser negligenciado. Saber que postura assumir é uma parte importante do conhecimento prático sobre como meditar.

Se a meditação é uma prática do Tao, então a naturalidade é algo que precisa ser cultivado nela. Por isso, aqui o princípio de base é “não forçar”. Persistindo com paciência, há um desenvolvimento gradual. Ao forçar em busca de resultados, há o risco que ficarmos exaustos/as, frustrados/as e, assim, desistir.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Cada tradição meditativa tem suas próprias convenções, recomendações e atitudes sobre a postura de meditação. Foi o que aprendi estudando as instruções de escolas diferentes. No caso do taoismo, a meditação pode ser praticada em várias posturas imóveis, sejam de pé, sentado ou deitado. E mesmo em movimento, como é o caso quando praticamos Qigong ou Taijiquan de forma particularmente lenta, serena e focada, com atenção ao menor gesto. Quanto à postura sentada, podemos imaginar erroneamente que a meditação só ocorre se formos capazes de manter uma perfeita postura de lótus. E isso pode chegar mesmo a se tornar uma obsessão que nos desvia do objetivo de meditar. Mas a postura não é algo que assumimos para impressionar outras pessoas, nem é uma proeza, ou uma meta. Em vez disso, é um dos pontos de partida para nossa prática, pois a meditação também é uma prática corporal. O corpo em equilíbrio, livre de tensão, desconforto e doença, medita com mais facilidade.

O alinhamento, a estabilidade e o relaxamento de nossa postura ajudam a permanecer um tempo quietos/as, sem tensão. Então, a postura deve estar de acordo com os limites e possibilidades de nosso corpo, em função da nossa flexibilidade, disposição vital, faixa etária, etc. Devemos ser capazes de relaxar nela, sem adormecer e sem perder o alinhamento postural. E para isso, não é necessário atingir uma postura de lótus perfeita, embora essa seja considerada por muitas pessoas uma postura excelente para meditação. Pois ela é útil para a prática desde que o/a praticante seja capaz de permanecer nela confortavelmente. Se não é o caso, podemos meditar em meio lótus, ou simplesmente de pernas cruzadas, mas também sentando em uma cadeira, sem reclinar o corpo e encurvar a coluna. Como aqui o foco não está no controle, na força de vontade ou na resistência a estímulos desagradáveis, é importante que a postura de meditação seja suficientemente confortável para permitir que prestemos atenção no treinamento que vamos praticar, e não nas dores e tensões no corpo e na mente que surgem do desafio de manter uma postura forçada.

Com essa orientação, a meditação passa a ser um momento de descanso, de “recarregar as baterias”, e não de luta para alcançar algo. Meditando durante um lapso de tempo em que a postura está confortável, podemos estender gradualmente as sessões, até sermos capazes de permanecer um longo tempo praticando.

Esse e outros aspectos serão abordados em mais detalhes em um curso que será dado pela primeira vez em março de 2020.

O Clássico Interno do Imperador Amarelo: 03. a vida humana e o qì da natureza

A medicina chinesa não separa o ser humano da natureza. Isso fica óbvio no capítulo 3 das Questões Simples (Sùwén 素聞), livro que compõe o Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng 黃帝內經), quando diz: “O ser humano é um pequeno universo, já que o corpo humano tem tudo que o universo tem”. E explica que somos feitxs dos mesmos Cinco Movimentos (wŭxíng 五行) (madeira, fogo, terra, metal e água) que formam todas as coisas do universo. E que se expressam na composição dos tecidos que compõem o corpo, nos órgãos internos (zàngfŭ 臟腑), suas funções fisiológicas e nossas faculdades e processos mentais, que lhes correspondem, segundo a concepção chinesa. E assim como os doze horários, correspondentes aos 12 ramos terrestres (dìzhī 地支), temos doze canais ordinários. Ou seja, em um único parágrafo do clássico, encontramos uma síntese dos fundamentos da medicina clássica chinesa. Este entendimento geral é a base para entender saúde como harmonia Yin-Yang e equilíbrio entre os Cinco Movimentos, de um lado; e os processos de adoecimento como desarmonia Yin-Yang, desequilíbrio entre os Cinco Movimentos e bloqueio do livre fluxo de qì e/ou sangue pelo corpo.

Página da edição chinesa do Suwen, que forma parte do Huangdineijing. Acervo da World Digital Library.

Portanto, esse capítulo do clássico explica também que a vida humana depende do Yin e Yang e dos Cinco Movimentos. No nível da terra, há uma correspondência entre os cinco movimentos e os três fatores climáticos Yin (frio, seco, molhado) e três fatores Yang (vento, fogo e calor de verão), que podem se tornar os fatores externos perversos, causadores de doenças. Particularmente, quando o clima das estações está em correspondência com a natureza das estações – isto é, “cálido na primavera, quente no verão, fresco no outono e frio no inverno em suas condições normais” (Questões Simples, capítulo 3) – isso não deveria causar doenças. Mas quando as condições climáticas estão particularmente anormais, isso pode prejudicar nosso qì e nossos órgãos internos. Além disso, se nosso se encontra enfraquecido ou desequilibrado, os fatores climáticos normais podem invadir e agredir nossos organismo, como é explicado mais adiante no clássico (Questões Simples, capítulo 4).

O clássico recomenda que façamos o nosso entrar em contato com o do universo,”numa circunstância de calma onde não há vento nem tempestade”. Isto é, quando o do ambiente natural e o nosso próprio não estão agitados. Embora não haja uma referência explícita aos treinamentos nesse trecho do clássico, esse é um importante conselho para a prática de qìgōng (氣功) e tàijíquán (太極拳) ao ar livre. Praticando corretamente, em um ambiente de abundante e harmônico, há benefícios para a mente: “pode-se manter o espírito quieto e claro como o céu azul, livre das perturbações do excesso de alegria ou da raiva violenta”. E para o corpo: “sua energia corpórea será substancial, e não será ferida mesmo que for atacada por fatores perversos”. Isso é possível se desenvolvemos a capacidade de nos adaptar aos movimentos do do céu e da terra e preservar nosso próprio , o que caracteriza, para o clássico, uma pessoa sábia.

Na natureza como no corpo humano, a vida está associada ao Yang : “a operação incessante do céu depende do brilho do sol, e a saúde corporal do ser humano, depende dua energia Yang clara e flutuante, que se guarde contra o exterior”. Exterior aqui equivale aos fatores climáticos que tem um efeito perverso quando invadem o corpo: o clássico menciona explicitamente calor, frio, umidade e vento. Mas discorre também sobre os fatores mistos: excesso de trabalho, ascensão do yang por uma explosão de raiva, lesões dos tendões, excessos alimentares. Mas de todos esses fatores causadores de doenças, nesse capítulo o clássico destaca um: “o vento é a principal fonte de várias doenças”.

Pintura retratando o canal zuyangming, correspondente ao estômago, data e autor desconhecidos, Welcome Collection Gallery, disponível em Wikimedia Commons.

O clássico recomenda adaptar-se ao tempo e cuidar do corpo e do espírito, em conformidade com a lei de Yin e Yang. Em uma postagem anterior falamos das estações do ano. Aqui o texto refere-se ao ciclo diário de ascensão e declínio do Yang , como também está descrito no capítulo 4, acontece simultaneamente no corpo humano e na natureza, de modo que aqui cuidar-se é manter-se em harmonia com as fases desse ciclo durante as atividades. A este respeito, ver as recomendações do mestre Liu Pailin sobre os horários de treinamento.

Por fim, uma citação do clássico que resume suas conclusões nesse capítulo:

Se as energias Yin e Yang do ser humano forem mantidas em estado de equilíbrio, seu corpo será forte e seu espírito saudável, se suas energias Yin e Yang falharem em sua comunicação, sua energia vital irá declinar e finalmente ficará esgotada.

Clássico Interno do Imperador Amarelo, Questões Simples, capítulo 3.

Em contato com a natureza

Na postagem de hoje, o assunto é o valor do contato com a natureza. Para a tradição taoista esse é um tema ambíguo. Primeiro, o ser humano não é está isolado do mundo natural, nem o mundo humano é o oposto do mundo natural. Nossos corpos são constantemente atravessados pelo do Céu e da Terra, simplesmente porque respiramos, comemos e habitamos uma determinada paisagem. Fazemos parte do mundo, inevitavelmente. Essa condição oferece riscos e oportunidades: se compreendemos os ciclos da natureza, podemos nos beneficiar deles; se não os compreendemos a natureza é implacável e indiferente. Por isso, o poema 5 do Dàodéjīng (道德經) diz: “O Céu e a terra não são bondosos/ Tratam os dez mil seres como cães de palha”. A tradição oral também diz: “o Céu tem 6 ladrões” (que roubam nosso e, consequentemente, nossa saúde). Possivelmente isso se refere aos 6 fatores patogênicos externos descritos pela medicina chinesa: Vento, Calor, Frio, Umidade, Secura e Calor de Verão. Resumindo, as condições ambientais a que nossos corpos são expostos, no caso climáticas, podem ser motivo de adoecimento, especialmente quando são extremas ou quando nossos corpos já estão debilitados.

Imortais caminhando sobre as águas, detalhe de pintura do acervo temporário do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

Por outro lado, uma particularidade do ser humano é , literalmente, situar-se entre o Céu e a Terra. O eixo vertical de nossa postura alinha nossa cabeça com o Céu e os pés com a Terra. Existe o potencial para a realizar um Tàijí no nosso centro de gravidade, a união do qì celeste e terrestre no ser humano. Esse potencial é encarnado na figura lendária dos imortais, retratados na pintura acima e objeto de uma postagem anterior. Na transmissão do mestre Pailin, como tive a oportunidade de ouvir diretamente do dele, o potencial humano para interagir com o qì da natureza de forma mais consciente, por meio da prática do qìgōng (氣功,炁功), está relacionado ao seu incrível cérebro e suas mãos maravilhosas.

Conhecendo os segredos da prática, podemos nos conectar a fontes naturais de puro e abundante, para suprir a nossa vida e eliminar o turvo, patogênico que se acumula no corpo, como resultado da poluição e outras toxinas presentes no ar, na água e nos alimentos, mas também acumulado em função de nossos próprios desequilíbrios emocionais cotidianos. Daí, a recomendação de treinar diariamente, em um local com ar puro, árvores, luz solar, água abundante, de preferência nos horários yáng (mais precisamente da madrugada até, no máximo as 11 horas da manhã).

Pratique ao ar livre em condições climáticas favoráveis, ou em um ambiente protegido mas ventilado, em outras circunstâncias. E, se vive em uma grande cidade, escape de vez em quando da poluição e da agitação, visitando um local com uma bela paisagem natural, silêncio e de boa qualidade. Desde a antiguidade, praticantes taoistas buscaram a quietude de montanhas e florestas para praticar o cultivo. As circunstâncias históricas mudaram muito, mas ainda é sábio fazer o mesmo, se desejamos aprofundar nossa prática.

Benefícios da prática em detalhes: 6. uma síntese

Ao longo dessa série, meu esforço foi responder, de modo acessível ao público leigo, a seguinte pergunta: mas afinal, por que praticar exóticos exercícios chineses como taijiquan ou qigong? Qual a relevância dessas práticas nos dias de hoje?

As várias postagens anteriores tentaram evidenciar, com contribuições de pesquisas da medicina ocidental os inúmeros benefícios comprovados, mensuráveis desses exercícios, que justificam recomendar sua prática como prevenção e promoção de saúde, como maneira de envelhecer sem decrepitude e com qualidade de vida, mas também como recurso terapêutico complementar para várias doenças crônicas. Foi isso que pretendi compartilhar, em linguagem acessível e utilizando uma fonte confiável de divulgação do conhecimento médico convencional sobre o tema.

Tendo compreendido os benefícios da prática, fica fácil entender porque o treinamento regular, de preferência diário, é um dos segredos da notável vitalidade, saúde e vivacidade de espírito de tantos e tantas praticantes experientes na China e pelo mundo afora, inclusive no Brasil, onde o famoso mestre Liu Pailin, fundador de uma das escolas que pratico e ensino, teve um papel pioneiro na divulgação da medicina tradicional chinesa e do métodos taoistas de longa vida, como o taijiquan e tantos outros.

mestre Liu Pailin (1907-2000)

Voltando à explicação baseada no pensamento chinês, as teorias de fundo que orientaram o desenvolvimento de técnicas corporais taoistas e outros métodos chineses de saúde e longevidade, como o taijiquan, provêm da filosofia taoista e da medicina tradicional. Em vez de separar/opor corpo e mente, como na perspectiva cartesiana que formou a medicina convencional ocidental, a relação corpo e mente é concebida aqui como um contínuo. A consequência é que o equilíbrio do dos órgãos e vísceras contribui para o equilíbrio emocional e vivacidade da consciência, e vice-versa. A plenitude do , a harmonia de yin e yang, a capacidade de manter o coração sereno diante das circunstâncias: tudo isso é a base da saúde e da longevidade, mas também o fundamento para percorrer o caminho do Tao. O equilíbrio no corpo é a base que permite o cultivo da espiritualidade. Por isso, ainda que toda a prática beneficie ao mesmo tempo a saúde e a serenidade, práticas mais aprofundadas de meditação normalmente são ensinadas depois dx praticante aprender a regular o e o coração, aqui entendido no sentido de consciência. Ou nos termos tradicionais, o “cultivo da vida” começa antes do “cultivo do espírito” e é a sua base.

As agitações e preocupações da vida diária, a relação desproporcional entre movimento e quietude, tudo isso cobra o seu preço sobre nossa saúde e sanidade. E, vivendo numa grande cidade, fica cada vez mais difícil escapar do excesso de trabalho, mas também do desgaste excessivo nos momentos de lazer. Mestre Pailin recomendava: “pessoas de meia idade (após os 35 anos), andem devagar”. Havia uma ironia não dita nessa recomendação: devagar, “a caminho do cemitério”. Quem quer ter uma vida longa e possuir não só saúde, mas também boa disposição e manter suas capacidades cognitivas e corporais também na velhice precisa aprender a se preservar. Descansar, manter o coração sereno, interagir com o da natureza, usar apenas a força necessária para realizar uma tarefa. Essas são as recomendações básicas contidas nos inúmeros ensinamentos do mestre. E treinar, treinar e treinar. O mestre afirmava que não ousava ficar um dia sem praticar. Explicava que sua longevidade e impressionante boa saúde em idade avançada se deviam aos treinamentos, pois era de uma família em que as pessoas morriam muito jovens.

Benefícios da prática em detalhes: 5. Mente calma e atenta

Na postagem de hoje sobre os benefícios da prática em detalhes, o assunto é a sua dimensão meditativa que, entre outros aspectos, tem efeitos na saúde cerebral e psicológica. Treinar taijiquan (e outros exercícios análogos, como qigong), além dos benefícios para a saúde descritos nas postagens anteriores, é também uma maneira dinâmica de cultivar uma qualidade meditativa por meio do movimento circular, lento e rítmico, a atenção total ao momento presente. Além disso, a respiração abdominal profunda propicia um aumento do relaxamento e do equilíbrio emocional. Utilizando os termos mais tradicionais para descrever a prática, o taijiquan e exercícios com princípios similares permitem cultivar ao mesmo tempo movimento e serenidade, equilibrando yin e yang. Cultivar e equilibrar o , alinhar a postura, manter o corpo forte e flexível, tudo isso contribui para uma sensação de bem-estar e estabilidade existencial.

Embora, ao falar em meditação em uma tradição de origem asiática, a primeira imagem a surgir na imaginação do público não especializado, com certa razão, é de alguém sentado no chão de pernas cruzadas, ao se comparar budismo e taoismo, observamos também que há métodos de meditação que utilizam posturas deitadas, de pé e mesmo em movimento, como a meditação andando budista, ou os exercícios com movimentos suaves desenvolvidos no contexto taoista. Inclusive há métodos para praticantes mais experientes, que visam manter a consciência meditativa durante todas as atividades cotidianas, contrastando cada vez menos a sessão formal de meditação e o viver.

No entanto, para iniciantes, o melhor é ter um momento específico e regular para desenvolver o hábito de estar presente no próprio corpo e completamente atentx à atividade que realiza naquele momento. Isso é particularmente precioso nas sociedades contemporâneas, cujo estilo de vida predominante, com suas intermináveis solicitações externas e distrações, forma pessoas cronicamente inquietas e distraídas. A incapacidade de relaxar, fazer silêncio e manter o foco sem tensão são problemas cada vez mais comuns nas grandes cidades. E uma boa parte das doenças crônicas contemporâneas tem como raiz o estresse. Considerando que o taijiquan (e similares) é uma alternativa não medicamentosa, livre de efeitos colaterais, simples e barata para os males do estresse atual, já dá uma ideia do valor desse verdadeiro patrimônio cultural da humanidade.

Pesquisas científicas nas áreas de saúde tanto revolucionaram a compreensão das relações entre mente e cérebro, quanto demonstraram os benefícios da prática para a saúde. Mais uma vez, refiro-me às contribuições do Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard para detalhar alguns desses aspectos. Em primeiro lugar, é importante mencionar a hipótese da neuroplasticidade: conforme o conhecimento atual das neurociências, sabe-se que novas células cerebrais crescem a vida toda e que nossos hábitos e desafios de vida constantemente remodelam as conexões cerebrais. Algumas pesquisas na área citadas por esses autores, indicam que exercícios psicossomáticos têm um efeito na saúde cerebral e não só nas demais capacidades físicas mencionadas em postagens anteriores, como equilíbrio, força, flexibilidade e coordenação motora, mas também em funções cognitivas como percepção, memória, atenção e no equilíbrio emocional. Particularmente, o taijiquan pode ser um importante recurso para preservar nossas faculdades físicas e mentais enquanto envelhecemos. As pesquisas em neurociência indicam que a prática regular de exercícios que estimulem corretamente o cérebro com novas aprendizagens – como tocar um instrumento musical, falar um novo idioma, fazer taijiquan ou dançar – favorecem o crescimento de novas células cerebrais, novas conexões neurais e a produção de neurotransmissores e neurorreceptores. E consequentemente podem ser uma ótima forma de manter a saúde cerebral por toda a vida. Citando vários estudos sobre os benefícios do taijiquan sobre a função cognitiva, os mesmo autores concluíram o seguinte: “O impacto do taiji sobre a função cognitiva pode ser atribuído, em parte aos seus efeitos sobre o condicionamento físico. […] No entanto, e de particular relevância para o taiji, estudos recentes indicam que os benefícios do exercício para a função cognitiva não se devem unicamente à aptidão cardiovascular, mas também à aptidão motora, que inclui equilíbrio, velocidade, coordenação, agilidade e força”(Wayne, Fuerst, 2016, p. 222). Outro ponto é que o exercício moderado parece ter um efeito maior de proteção contra perdas nas funções cognitivas, inclusive contra Alzheimer, do que exercícios extenuantes. No caso do taiji, uma vantagem adicional é a redução do estresse e a angústia, bem como o aumento da capacidade de lidar com situações potencialmente estressantes. E ainda, o aspecto imaginativo da prática tem um efeito cerebral complementar ao aspecto mais físico, com importantes efeitos sobre o cérebro e sobre o desempenho corporal. Acrescento a isso, que o conhecimento neurofisiológico acerca da meditação permite afirmar que sua prática regular beneficia as funções cognitivas, inclusive alterando a estrutura cerebral, e reduz o estresse.

Por fim, os autores concluem que, além dos aspectos citados acima, os benefícios do taiji decorrem também do fato que a prática coletiva permite aprender novas habilidades, participar de atividades de lazer e estabelecer vínculos sociais, tudo isso contribuindo para prevenir e retardar perdas da função cognitiva devido ao envelhecimento.

Benefícios da prática em detalhes: 4. respirar melhor

Na postagem de hoje dessa série, o tema é a respiração. Respirar faz parte do fluir fundamental da vida, como tantos outros ritmos e pulsações indispensáveis à existência corporal, expressões da alternância de yin e yang no nosso microcosmo pessoal. A qualidade da respiração está diretamente relacionada à saúde e disposição vital, consequentemente à longevidade, mas também ao nosso equilíbrio emocional. Um respiração curta, entrecortada e superficial está associada não apenas a baixa vitalidade e mesmo a certos processos de adoecimento, como também correspondente a estados de agitação mental e angústia.

Ainda que, nas linhagens taoistas que pratico, a transmissão oral não descreve muitas formas de qigong e o próprio taijiquan como “exercícios respiratórios”, pois o cultivo do qi nem sempre está associado à troca gasosa, ambos têm um efeito benéfico sobre a respiração, por desenvolverem o hábito da respiração abdominal lenta, o que afeta positivamente a capacidade respiratória, a saúde cardiovascular, a regulação do sistema nervoso e o refinamento da percepção. Além disso, do ponto de vista tradicional, o fluxo harmônico do beneficia a circulação do sangue e propicia a autoregulação de todos os sistemas do corpo.

Referindo-me mais uma vez às pesquisas médicas sobre respiração e os benefícios do taijiquan e práticas análogas (como qigong), o Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard faz relações entre capacidade e saúde respiratória e expectativa de vida, bem como ressalta a diminuição potencial da função respiratória devido ao envelhecimento. Isso resulta de alterações na estrutura da caixa torácica, na diminuição da elasticidade do pulmões, ambos fatores contribuindo para redução da qualidade da troca gasosa. E, em todas as idades, alterações emocionais e estresse podem impactar negativamente na qualidade da respiração.

Além disso, a mesma fonte explica de que modo esses exercícios chineses podem ser benéficos para a respiração. O aspecto fundamental é que o padrão respiratório que se transforma em hábito por meio da prática regular desses exercícios é a respiração abdominal (com foco no dantian inferior) lenta e suave, favorecida pelo ritmo dos exercícios executados com consciência e pelo uso da imaginação associada à respiração. Além da troca gasosa, a respiração também massageia os órgãos internos e equilibra o sistema nervoso e consequentemente as emoções. Pesquisas médicas citadas pelos autores sugerem que a prática de Taiji melhora e retarda perdas da função respiratória, inclusive sendo benéfica no tratamento de doenças respiratórias como asma e doença pulmonar obstrutiva crônica. O aspecto meditativo da prática é eficiente na redução do estresse, no aumento do relaxamento e em promover melhorias no humor.

Benefícios da Prática em detalhes: 2. redução de dores e desconfortos

Dando continuidade a série dos benefícios da prática, a postagem de hoje aborda seu efeito sobre dores e desconfortos. Do ponto de vista da medicina chinesa, a dor e diversos tipos de desconforto corporal estão associadas à estagnação e ao bloqueio da livre circulação de e sangue. Tais bloqueios podem ser causados por traumatismos e lesões, mas também por fatores climáticos, alimentação inadequada e desequilíbrios emocionais. Dentre os diversos métodos tradicionais (acupuntura, moxabustão, ventosaterapia, guasha, massagem, etc.) utilizados para aliviar o problema, estão os exercícios terapêuticos, como taijiquan e qigong, por sua notória capacidade de incrementar a boa circulação, a quantidade e qualidade de , um aspecto importante para manter a saúde, segundo a medicina chinesa.

O Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard menciona pesquisas na área médica que reforçam a ideia que movimentos podem ser um tratamento eficaz indicado para dor, inclusive em casos crônicos. Particularmente movimentos suaves, como os dos exercícios terapêuticos chineses ou do yoga indiano, por aumentarem a força, a flexibilidade, melhorarem o alinhamento, a respiração e produzirem bem estar. A mesma fonte afirma que a dor é um dos motivos mais frequentes para se buscar médicos e a maior razão para uso de medicamentos. Enquanto a dor aguda é um recurso evolutivo para proteger a integridade do organismo, a dor crônica é disfuncional, mais difícil de explicar e de tratar do ponto de vista da medicina ocidental convencional. Resumindo uma discussão complexa, digamos que as dores crônicas podem resultar de uma combinação de lesão, inflamação, hipersensibilidade de certas áreas do corpo e enrijecimento do tecido conjuntivo, além de componentes psicossomáticos. Embora analgésicos possam aliviar a dor, podem também ter efeitos colaterais desagradáveis, além de não tratarem a causa da dor.

O alongamento e fortalecimento dos tecidos, combinados à melhoria da circulação no local doloroso são alguns dos benefícios dos movimentos lentos e suaves dos exercícios citados acima, além de melhorar a respiração e o estado de humor. O cultivo do alinhamento postural e consciência do peso, o princípio de abrir a articulação do quadril (kuà 胯), o alinhamento dos pés, o princípio de “não forçar”, o movimento coordenado a partir do centro de gravidade do corpo – característicos do tajiquan e do qigong de longevidade -, tudo isso pode prevenir o desgaste das articulações e fortalecer os músculos e tendões sem expor esses tecidos a lesões por esforço excessivo ou movimento abrupto. A respiração abdominal tem efeito relaxante, além de melhorar a circulação. Além disso, o aspecto meditativo da prática tem um efeito de redução de estresse favorável à redução da dor.

Em particular, no caso de nossa linhagem, ainda que todo treino de movimento de seu repertório tenha benefícios globais semelhantes, além do taijiquan e das diversas formas de qigong, destaco também os “Exercícios para a Flexibilização das Nove Dobras” e “As Oito Formas para Alongamento dos Tendões”, da transmissão do mestre Liu Pailin, como exercícios destinados ao público em geral para recuperar a flexibilidade dos tendões e músculos, bem como a mobilidade das articulações, eficientes na remoção de bloqueios e limitações de movimento, ao mesmo tempo simples e de fácil execução.