Benefícios da prática em detalhes: 1. Equilíbrio

A postagem de hoje inaugura uma nova série, na qual os benefícios da prática de qigong e taijiquan serão tratados em mais detalhes. O primeiro ponto a ser tratado é a questão do equilíbrio. Um aspecto central do aprendizado das práticas chinesas de longevidade é o refinamento da consciência corporal. E um de seus aspectos é a consciência da postura, do alinhamento e da distribuição de peso do corpo. A capacidade de manter o equilíbrio é fundamental para a saúde, mas também pode ser vista até mesmo como um fator de sobrevivência, visto que quedas podem causar lesões graves, especialmente fraturas. E a gravidade de suas consequências aumenta com a idade justamente porque o envelhecimento muitas vezes traz consigo simultaneamente uma redução das habilidades motoras e o enfraquecimento de ossos e articulações.

O Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard indica os benefícios da prática do Taiji tanto para melhorar o equilíbrio como a densidade óssea, mencionando várias pesquisas na área médica. Os autores do livro elencam quatro componentes do equilíbrio: 1) a força e flexibilidade do sistema músculoesquelético; 2) a precisão da ação combinada de visão, propriocepção e do ouvido interno na percepção da posição do corpo e das condições do ambiente circundante; 3) a sinergia neuromuscular; 4) os processos cognitivos necessários a manter o equilíbrio, prever situações perigosas, coordenar atividades motoras simultâneas e reagir a situações de desequilíbrio. Todos esses fatores tendem a declinar em pessoas idosas e podem ser trabalhados pela prática regular do Taiji e técnicas afins.

O Taijiquan e outras artes marciais internas, bem como formas de qigong de longevidade que seguem os mesmos princípios motores e posturais – movimento lento, circular e suave, consciência do eixo e do centro de gravidade – podem ser uma excelente solução para os problemas de equilíbrio, ao fortalecer as pernas, aumentar a flexibilidade, cultivar o alinhamento postural. Os movimentos em “câmera lenta”, característicos dessas formas de exercício, tanto fortalecem a musculatura de modo gradual, como desenvolvem a consciência postural e a sensibilidade visual e tátil às condições do ambiente. Ao que parece, a prática continuada melhora a organização sensorial, o controle do equilíbrio, a coordenação motora e a capacidade de se recuperar de um desequilíbrio. Além disso, a redução geral da ansiedade e o aumento da autoconfiança com relação à própria destreza também têm um efeito benéfico sobre o equilíbrio.

O hábito de relaxar (fàngsōng 放鬆) que se desenvolve na prática tem um sentido bem específico. Diferente de simplesmente deixar o corpo mole e sem tônus, significa soltar o peso para baixo, descer o centro de gravidade, “sedimentar”, “enraizar-se”, ao mesmo tempo mantendo o alinhamento vertical e cultivando a consciência do terreno sob as solas dos pés. Essa é uma metáfora antropomórfica bastante eficaz: cultivar o corpo centrado e alinhado tem também um efeito existencial.

Modo de Vida Taoista: 11. Reduzir todo esforço desnecessário

A postagem de hoje retoma a série dedicada ao modo de vida taoista. Em tempos de exaustão coletiva, o princípio taoista da não ação, ao mesmo tempo pode soar absurdo e servir como um lembrete útil sobre outras possibilidades de existência e subjetividade.

lagoa de carpas, com um símbolo do Tao, nas montanhas de Yilan, Taiwan.

Uma instrução básica da transmissão do mestre Liu Pailin era: “não forçar”. Isso se aplica, em primeiro lugar, à prática regular dos treinamentos taoistas que, ao contrário da cultura fitness, não pressupõem que a dor é o requisito para o resultado. Mas também é um princípio válido para uma atitude existencial geral. Essa recomendação simples expressa a confiança no desenvolvimento gradual e contínuo, sem necessidade de rupturas abruptas e superação de limites por meio da luta.

De fato, na maioria de nossas atividades cotidianas, relações e projetos, aplicamos mais força que o necessário. No nível mais óbvio, observe quanta tensão muscular é aplicada em movimentos simples que podem ser feitos de forma mais econômica e eficaz se aprendemos a relaxar enquanto nos movemos e utilizar apenas a força necessária. Experimente prestar atenção em quanta força e tensão utiliza para escovar os dentes, girar uma maçaneta, preparar um alimento, lavar louça, subir uma escada, segurar o volante do carro, digitar ou qualquer outra tarefa cotidiana. Ao praticar taijiquan ou o abraço da árvore (zhanzhuang), aprendemos a relaxar os músculos ao mesmo tempo em que mantemos a postura, o alinhamento do corpo e nos movimentamos de forma harmônica. O que é aprendido pelo corpo nas sessões formais de treinamento, com o tempo pode ser transferido para as atividades diárias. Nosso treinamento se expressa em uma graciosidade corporal natural.

O excesso de esforço desnecessário fica óbvio no movimento corporal, mas pode ser descoberto também quando examinamos a nossa vida mental. Como é cansativo ficar pensando intensamente, sem parar, mesmo quando não há nenhum problema urgente que exija nossa atenção. E como é exaustivo ser arrastado por emoções tão intensas que levam a ações sem lucidez que nos geram arrependimento. Por isso, as práticas taoistas combinam movimento e serenidade, serenidade ao se mover, e movimento interno ao ficar imóvel. Como a inquietude do coração é a base para todo tipo de doença, aprender a serenar, a manter o coração tranquilo em todas as circunstâncias, não é apenas parte de uma prática meditativa ou de um caminho de vida, mas tem indiscutíveis efeitos para a saúde. Nas frenéticas realidades urbanas contemporâneas, pouca gente pode entender o valor do silêncio, da quietude, do repouso, mas principalmente do silêncio interno.

Por do sol na Serra dos Pirineus, foto do autor.

Mas não se trata de um silêncio artificial, que nega as experiências ou deseja congelar a consciência numa quietude forçada, que é como uma anestesia. Em nosso corpo e em toda a natureza, vida é movimento incessante. E nas consciências, vida é percepção incessante. O segredo é aprender ficar ao mesmo tempo atentx e relaxadx. Assim é possível perceber os espaços vazios entre os objetos, as pausas entre os movimentos, os silêncios entre os sons. Esse é um dos sentidos da experiência da vacuidade.

Justamente, como expliquei anteriormente, o wuwei não se refere a não fazer, mas sim ao fazer com o máximo de eficiência e o mínimo de esforço. Contudo, esse fazer eficaz depende da capacidade de se desfazer de um senso de autoria, de alguém que faz, e de permanecer “vazio”, no sentido de uma receptividade altamente adaptável. Quanto maior a sintonia com as circunstâncias, quanto mais fluidez e adaptabilidade, menos esforço é necessário para realizar uma tarefa e chegar a um resultado favorável. E, embora seja um princípio, é menos algo que se decide por em prática deliberadamente, do que a consequência ostensiva do resultado de um sistema de práticas que transforma o corpo e a subjetividade.

Como avaliar se a prática está sendo bem sucedida?

Na postagem de hoje, algumas considerações pragmáticas sobre os treinamentos taoistas. Anteriormente, já havia compartilhado algumas considerações sobre como praticar. Desta vez, a pergunta central é: quais os parâmetros para avaliar nosso desenvolvimento no caminho?

Um breve passo a passo, baseado na minha experiência pessoal, para iniciar as práticas taoistas com sucesso: 1) identifique uma escola/linhagem séria com a qual sinta afinidade; 2) localize 1 professor/a devidamente qualificado/a em quem confie; 3) organize sua rotina pessoal para que nela caibam momentos regulares de prática, de preferência além do horário da aula, e idealmente todos os dias; 4) regule a intensidade da prática, inclusive a duração das sessões, de acordo com uma avaliação realista de suas próprias necessidades e capacidades; 5) confie no desenvolvimento gradual por meio da prática continuada; 6) uma atitude perseverante, mas tranquila e despretensiosa, é mais produtiva do que o esforço excessivo e a ambição.

Os resultados da prática não se obtém do dia para a noite. Lembre que praticar o Tao é seguir um caminho, ou melhor, o caminho natural. Suas características são suavidade, circularidade e continuidade. Estamos em busca de aprender a manter-nos no fluxo, adaptando-nos habilmente às circunstâncias. Não é à toa que muitas, talvez a maioria, das práticas taoistas de longevidade e saúde, são também práticas de serenidade, possuindo uma qualidade meditativa. Ao treinar não apenas cultivamos o corpo, mas, por meio dele, aprendemos uma atitude existencial em consonância com o Tao. Com o tempo, há uma graciosidade e fluidez corporal que são a expressão ostensiva de uma leveza existencial.

O que estamos aprendendo? A primeira coisa é aprender a relaxar, reduzindo todo o esforço e tensão desnecessária à realização de uma determinada atividade. Relaxar é, em teoria simples, porque tem mais relação com não fazer, ou fazer menos. No entanto, exige uma prática persistente para que se torne um hábito ao mesmo tempo corporal e subjetivo. A não ação (wuwei) taoista não é o mesmo que passividade, ou inação, mas sim um estilo de agir que, de tão sintonizado com as circunstâncias, dá a impressão que nada foi feito, mas ainda assim, ocorreu o que a situação pedia.

Também estamos cultivando nosso eixo e nosso centro, num sentido cinestésico, de consciência do movimento corporal. Ao mesmo tempo, existencialmente, aprendemos a nos manter centrados/as e alinhados/as.

Então, proponho algumas perguntas que podem servir como critérios iniciais para avaliar nosso desenvolvimento na prática: 1) como está nossa consciência corporal, de peso, eixo, alinhamento e centro? 2) Que grau de relaxamento conseguimos acessar, tanto nas situações formais de treinamento, como numa aula de qigong ou taijiquan, por exemplo, mas também no nosso cotidiano? 3) Como respondemos a situações estressantes e por quanto tempo continuamos em estado de tensão após a situação ter passado? 4) A intensidade das nossas emoções tira nosso sossego, lucidez e equilíbrio? 5) Como lidamos com os contatos com outras pessoas?

Obviamente, se a motivação inicial para praticar os treinamentos taoistas foi uma questão de saúde, uma maneira fácil de avaliar seu progresso é comparar sua condição de saúde antes de começar a praticar, e como evoluiu com o passar do tempo, com treinamento regular. Observe, por exemplo, como está seu equilíbrio, flexibilidade, digestão, respiração, humor, qualidade do sono e se houve melhora em algum problema crônico de saúde, como uma alergia ou a tendência a ficar resfriado/a.

A Eficácia dos Treinamentos: 3. uma explicação com base na medicina convencional

Nesta terceira postagem da série, examinaremos as contribuições das pesquisas da ciência médica convencional, que têm indicado benefícios dos treinamentos que são concretos, mensuráveis e explicáveis em termos do conhecimento científico moderno.

Pesquisas experimentais, que podem ser localizadas nas plataformas de divulgação de periódicos científicos, mas também em alguns livros recentes, têm demonstrado vários benefícios da prática regular de qigong, taijiquan e exercícios similares. Em particular, por sua uma obra recente acessível em português, recomendo o Guia de Tai Chi da Faculdade de Medicina de Harvard (cujo capítulo 1 está disponível nesse link), que sintetiza o resultado de várias pesquisas, disponíveis na literatura científica especializada.

Mais uma ilustração do Baduanjin, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.

Esse tipo de exercício tradicional chinês tem várias vantagens: podem ser praticados durante toda a vida por pessoas de qualquer faixa etária e diferentes condições de saúde; são um recurso barato para a promoção da saúde, prevenção e tratamento de várias doenças; tem um efeito psicossomático; apesar de serem de baixo impacto, trabalham força, flexibilidade, resistência, coordenação motora e capacidade cardiorrespiratória.

Resumo abaixo as conclusões da revisão literatura médica acerca dos benefícios da prática regular, elaborada na segunda parte no Guia do Tai Chi.

É sabido que o risco de quedas, e das fraturas decorrentes delas, aumenta com a idade. Um dos primeiros benefícios da prática regular de taijiquan e qigong é o aumento do equilíbrio, ou seja da estabilidade postural, com consequente diminuição da ocorrência de quedas. Isso se deve a esses exercícios beneficiarem o sistema musculoesquelético, por meio da transferência de peso, mantendo sua força e flexibilidade, especialmente dos membros inferiores, bem como pela ênfase no alinhamento vertical. Além disso, com seu ritmo lento e contínuo, desenvolve a capacidade de propriocepção e a orientação espacial, contribuindo para uma melhor organização sensorial. Por sua diversidade de movimentos, melhora a coordenação dos padrões neuromusculares, o que favorece uma caminhada mais estável e permite uma melhor recuperação de escorregões e tropeços. Ao diminuir a ansiedade e o medo de cair, a prática também favorece os processos cognitivos associados ao equilíbrio.

Além disso, outro benefício é a prevenção da perda de densidade óssea, decorrente do envelhecimento e, no caso das mulheres, da menopausa, até mesmo o aumento da massa óssea com a prática prolongada desses exercícios, que por serem de baixo impacto, podem ser praticados inclusive por pessoas com baixo condicionamento físico e quadros de osteopenia e osteoporose.

Outro aspecto notável da prática é a redução de dores e desconfortos, sejam eles decorrentes de tensão muscular, sejam o efeito de doenças e lesões articulares, ou mesmo casos de dor crônica. Os exercícios suaves alongam e fortalecem os tecidos, além de melhorarem a circulação. O alinhamento postural previne o desgaste das articulações, bem como evita a sobrecarga muscular decorrente do corpo desalinhado. O princípio de “não forçar” ao se exercitar previne lesões. Isso sem falar, dos benefícios psicológicos da prática decorrentes de seu aspecto meditativo, e do apoio social que advém do treinamento coletivo.

Há ainda benefícios cardiorrespiratórios notáveis. A prática regular é um exercício aeróbico seguro, que fortalece o coração, desenvolve a respiração abdominal suave, melhora a oxigenação e a circulação, bem como tem bons resultados na prevenção e recuperação de doenças cardiovasculares.

Por fim, sendo uma atividade meditativa por excelência, o taijiquan (assim como o qigong) é eficaz na redução do estresse, desenvolve a atenção, reduz a ansiedade e a depressão, estabiliza o humor e melhora a qualidade do sono. Por fim, estimula positivamente a neuroplasticidade, mantendo a vivacidade e a lucidez mental até uma idade avançada.

Liu Pailin (1907-2000)

Contudo, mais do que as evidências científicas, o que mais me inspirou a praticar foi o exemplo vivo dos mestres. Tive o privilégio de conhecer o famoso mestre Liu Pailin nos seus últimos anos de vida. Ele transbordava vitalidade com mais de 90 anos de idade. Idoso, mas sem sinais de decrepitude: a pele lisa, os músculos firmes, os olhos brilhantes de inteligência viva e perspicácia, o corpo flexível, um homem cheio de alegria de viver. Enfim, a prova viva dos benefícios do taiji e do qigong.

A Eficácia dos Treinamentos: 2. uma explicação fenomenológica

Na postagem de hoje, como na anterior, continuo a discussão sobre a eficácia dos treinamentos taoistas, só que dessa vez, desde uma outra chave de leitura: uma fenomenologia cultural da corporeidade.

Evitando uma longa e difícil discussão teórica que não é relevante para @ leitor não especialista, refiro-me aqui a um posicionamento que leva em conta o corpo como sujeito da cultura, considerando a experiência sensóriomotora e afetiva a base de nossa existência. É a capacidade de movimento próprio, percepção e afeto, aliada a um ajuste existencial ao ambiente circundante que torna possível toda a vida animada. E neste contexto, a experiência sensível precede a linguagem e o intelecto, tanto do ponto de vista lógico quanto cronológico/evolutivo.

Flechar o Ganso Selvagem, mais um exercício da famosa série Baduanjing. Foto do autor, setembro de 2018, da ilustração do século XIX, acervo do National Palace Museum, Taipei.

A hipótese de que por meio da experiência corporal podemos acessar um domínio da vida que antecede a linguagem e o intelecto é compatível com as práticas corporais taoistas utilizadas como meio para o cultivo de si. No caso, a pergunta seria: como exercícios lentos – caracterizados pela circularidade, pelo relaxamento, pela atenção ao eixo vertical e ao movimento que parte do centro de gravidade do corpo – podem promover uma transformação subjetiva, existencial?

Simplesmente pela criação e consolidação de novos hábitos posturais, motores e perceptivos, que tem um efeito global sobre o corpo. Como este não está separado da subjetividade, mas ambos compõem uma unidade, aprender novas técnicas corporais e criar novos hábitos pode ser uma das chaves para uma mudança subjetiva, existencial. Um aspecto fundamental aqui é o efeito do ritmo sobre a consciência. Uma maneira mais encarnada de entender uma cultura é como uma paisagem sensorial total que é marcada por seus próprios ritmos, texturas, sabores e cheiros.

Simplificando: no caso do mundo cultural taoista, treinando o hábito de manter o corpo relaxado e alinhado, de utilizar apenas a força necessária à execução de uma tarefa, de permanecer imóvel por longos períodos e de manter a atenção no centro de gravidade do corpo, de mover-se lentamente de forma circular, cultivamos, literalmente, um senso de centramento e equilíbrio existencial, refinamos nossa sensibilidade às circunstâncias do momento presente. O movimento em câmera lenta dos exercícios de qigong e taijiquan tem uma qualidade meditativa, que favorece a consciência do momento presente, por meio de uma apreensão direta, que dispensa as palavras e conceitos.


Imagem ilustrativa do exercício para o Triplo Aquecedor, da série Baduanjing. Foto ao autor, acervo do National Palace Museum, Taipei, setembro de 2018.

Esse retorno a uma consciência corporal pré-verbal, que percebe a postura e o movimento sem a necessidade de palavras, corresponde, em alguma medida, a um retorno à condição pré-natal. Assim, além de seus benefícios para a saúde, descritos em linguagem tradicional na postagem anterior, esses métodos ensinam uma atitude existencial caracterizada por um silêncio pleno de presença, de uma atenção relaxada, ao mesmo tempo a base da meditação e o efeito de sua prática prolongada.

A Eficácia dos Treinamentos: 1. uma explicação com base na tradição

Nessa postagem e na próxima, dedico-me à responder a seguinte pergunta: por que milhões de pessoas, durante incontáveis gerações na China e atualmente em vários países no mundo contemporâneo, praticam os treinamentos taoistas? A primeira parte da resposta é: por sua comprovada eficácia no cultivo da vida e da saúde, bem como no desenvolvimento de certas habilidades.


Baduanjing, ou os Oito Panos de Seda, famosa série de exercícios tradicionais para a saúde. Ilustração do século XIX, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor.

Portanto, não se trata de uma questão de crença, mas sim de experiência acumulada, acessível a quem pratica com seriedade. Tampouco se trata apenas de comprovar por experiência própria. Os treinamentos se baseiam num conhecimento sofisticado do corpo, que tem como referência a teoria médica chinesa e a cosmologia taoista.

Dito de uma maneira mais genérica, os diversos treinamentos são maneiras tradicionais para cultivar um equilíbrio dinâmico, no próprio corpo, entre yin e yang que, unidos em harmonia, formam um Taiji ☯. Essa atividade de regulação é a própria ação do Tao, segundo o poema 77 do Daodejing (道德經):

O Caminho do Céu é como o retesar do arco

A parte superior abaixa, a parte inferior sobe

A parte que possui sobra é diminuída

A parte não suficiente é completada

E era nesse sentido que mestre Liu Pailin afirmava que ensinava os treinamentos do Taiji, não apenas do Taijiquan. Ohando para um panorama geral dos treinamentos de nossa linhagem, faço a seguinte lista de benefícios básicos, utilizando de forma livre o vocabulário tradicional chinês:

Outra da série de ilustrações do século XIX do Baduanjing, ou os Oito Panos de Seda. Acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor.
  • Eliminar o turvo, causador de doenças, resultante da invasão de fatores patogênicos externos, mas também acumulado em função da alimentação, de tensões e de emoções excessivas e turbulentas.
  • Captar o de fontes naturais (o sol, a lua, certas constelações, montanhas, cachoeiras, florestas, árvores ancestrais, rochedos, o mar) para suprir o do corpo
  • Flexibilizar tendões e articulações.
  • Remover os bloqueios que impedem a livre circulação de e sangue. E promover uma circulação abundante e suave.
  • Equilibrar os cinco movimentos (五行):metal, água, madeira, fogo, terra.
  • Tonificar a essência (精) e o (氣 ou 炁), regular o shén (神), o que proporciona ao mesmo tempo longevidade e serenidade.
  • Despertar a espiritualidade latente do ser humano.

A alquimia interna taoista possui um aforismo que descreve de forma mais sofisticada e hermética todo o caminho da prática, que vai da condição pós-natal de uma pessoa comum à condição pré-natal de um ser completamente iluminado, como um imortal (仙) da mais alta categoria:

Treinar o jīng (精) para gerar qì (氣 ou 炁); treinar o para gerar shén (神); treinar o shén para entrar na vacuidade; treinar a vacuidade para unir-se ao Tao (道)

Essa descrição sintética e cifrada, no entanto, transcende a prática comum, para a saúde, e refere-se ao cultivo como caminho de vida, uma situação mais rara e que depende de algumas condições especiais: a obtenção de ensinamentos autênticos, a ajuda de um/a professor/a qualificadx, a dedicação cotidiana à prática.

É possível ser taoista na cidade?

Vista do pôr do sol no templo Tiandao, setembro de 2018. À distância, se percebe a silhueta da cidade de Taipei. ( Foto do autor.)

A tradição taoista se tornou mundialmente famosa por seu elogio à natureza. Desenvolvida por contemplativos que se refugiaram em montanhas e florestas, recusando honrarias e cargos na burocracia imperial, em busca das condições ideais para cultivar o e a serenidade. As histórias exemplares de mestres e mestras que teriam atingido a condição de imortal, falam do abandono das ambições mundanas. Mas será que para praticar o Tao é indispensável sair da cidade e renunciar a uma vida comum?

Certamente, como dizia mestre Liu Pailin, é recomendável a prática periódica em um ambiente natural dotado de um abundante e de boa qualidade, daí a busca por locais com um bom fengshui (風水) para treinar, inclusive com condições específicas dependendo do tipo de treinamento praticado. As andanças de Wang Liping e seus mestres pelas montanhas e outros lugares sagrados da China, descritas por dois de seus discípulos em Opening the Dragon Gate, biografia de um mestre contemporâneo da linhagem taoista Longmen (龍門), ilustram muito bem a importância do contato com a natureza no treinamento taoista.

Pintura em seda representando imortais reunidos em uma caverna, National Palace Museum, Taipei, foto do autor.

Mas, ao contrário dessa condição privilegiada, se boa parte da população mundial vive em grandes cidades, e se mestres famosos como Liu Pailin escolheram viver nelas, deve haver maneiras de praticar o Caminho também em condições que não são as ideais. Uma solução parcial para quem não tem nem a inclinação nem a oportunidade para viver como eremita contemplativo nas montanhas é integrar a prática do Tao ao seu cotidiano urbano. Em muitas partes do mundo, onde há presença cultural chinesa, pode-se ver pessoas praticando qigong, taijiquan e outras artes marciais nos parques públicos das grandes cidades.

A dica é incluir na rotina diária momentos para praticar com constância um treinamento preferido ou recomendado, além de momentos para simplesmente relaxar, sem fazer nada especial. Após anos praticando diferentes métodos, cada qual com seu propósito específico, arrisco uma generalização: todos eles regulam o , ao mesmo tempo em que ensinam uma presença corporal no mundo, estar alerta e relaxado ao mesmo tempo. Combinando movimento suave e circular, a respiração natural e relaxamento dos músculos, aprendemos a mover o corpo com economia, fazendo apenas a força necessária ao movimento eficiente. Permanecendo de pé na “postura da árvore” ou sentadx em meditação silenciosa, aprendemos a serenar o coração, ao mesmo tempo que alinhamos a postura e fortalecemos o corpo de dentro para fora, e do invisível para o visível.

Além de eremitas contemplativxs, a história da tradição taoista conta também com praticantes que permaneceram nas vilas e cidades, em uma vida simples: cuidando de suas famílias, exercendo um ofício e cultivando o Tao sem chamar muita atenção para si. Embora seja mais frequente lembrarmos de especialistas nos diferentes ramos da medicina chinesa ou de artistas marciais, houve praticantes do Tao nos diferentes estratos sociais e exercendo os mais diversos ofícios, dos mais sofisticados aos mais modestos. E ainda hoje isso é assim. Em minhas andanças por Taiwan para estudar a linhagem Kunlun, também conheci irmãos e irmãs de treinamento das mais diversas profissões: empresários, massagistas, mecânicos, artesãos, herboristas, especialistas em fengshui, etc.

E assim continuam(os), sozinhxs ou em pequenos grupos. Não tanto como uma identidade social, mas mais como um caminho de vida. Com o desafio, para nós, pessoas complicadas do mundo contemporâneo, de viver uma vida pautada no amor, na simplicidade e em não desejar ser o primeiro. Movendo-se lentamente no fluxo acelerado da metrópole, saboreie as pequenas alegrias de cada momento; faça o que é necessário em cada situação, mas mantenha o coração sereno; contemple o movimento contínuo de yin e yang à sua volta, mas também em você mesmx.

Medicina Chinesa e Treinamentos Taoistas: 3. longevidade e imortalidade

Nessa nova postagem da série, abordaremos o interesse pela longa vida. Desde o seu texto fundante, a medicina chinesa indaga sobre o tema, como é testemunhado no primeiro capítulo do Suwen (素問), no Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huangdineijing 黃帝內經), que mencionamos previamente. Um aspecto compartilhado do conhecimento tradicional da medicina e dos treinamentos taoistas é como manter a harmonia com o Tao, de modo a viver uma vida longa e saudável. Obviamente, além dos fatores constitucionais hereditários, o modo de vida em consonância com os ritmos da natureza é uma estratégia clássica para chegar a esse objetivo. Mas também, como apontamos na postagem passada, a prática regular dos treinamentos para cultivar a vida.

foto do autor, pintura sobre seda, National Palace Museum, Taipei.

 Ao falar em imortalidade, um tema recorrente na religiosidade popular chinesa e na alquimia taoista, à primeira vista, pareceria que se trata de uma imagem que leva às últimas consequências a busca da longevidade associada à compreensão da natureza. Encarna também o ideal de vida de gerações de praticantes que se retiraram para as montanhas e se dedicaram a uma vida contemplativa, como indicado pelo caractere chinês para imortal, xiān (仙), que contém em sua composição o caractere montanha, shān (山). Neste sentido, a imortalidade poderia ser tomada como “metáfora ou epíteto da alma realizada” (Bizerril, 2007, p. 120).  Alguém que se torna imortal não apenas possui uma vida muito mais longa que a de uma pessoa comum, mas também uma série de outros atributos especiais, inclusive poderes extraordinários.

Num sentido mais elevado, um/a imortal é uma pessoa que se aperfeiçoou, desenvolvendo o seu pleno potencial. Além do cultivo do seu , obtiveram uma completa equanimidade, livres de  impaciência, orgulho ou preocupações. Por isso, é dito: “o verdadeiro Tao requer de nós que lidemos com o mundo real, mas o coração não se agita”. Em completa sintonia com os ritmos da natureza e com as circunstâncias, são capazes de agir com compaixão. Tendo aprendido a esquecer-se completamente de si, podem praticar a não-ação (wúwéi 無為), a ação eficaz sem esforço. Podem ser pessoas sábias renomadas ou viver em completo anonimato, beneficiando secretamente o mundo à sua volta.

Dentre as habilidades extraordinárias tradicionalmente atribuídas a imortais devido à sua maestria do Tao, podemos citar: capacidades de cura; poderes de exorcismo; controle das condições climáticas; faculdades divinatórias; comunicação com animais, espirítos e divindades; imunidade aos elementos; controle sobre o próprio corpo; multiplicação e materialização/desmaterialização do corpo; invisibilidade; voo, etc. como belamente descrito em uma sessão da antologia de textos taoistas organizada por Livia Kohn, The Taoist Experience.

foto do autor, detalhe de pintura representando imortais taoistas,  National Palace Museum, Taipei.

O primeiro capítulo do Zhonglüchuandaoji (鍾呂傳道集) texto clássico de alquimia interna taoista, traduzido para o português, que contém conversações entre os imortais Zhongli Quan e Lü Dongbin, afirma que: “Havendo nascimento, haverá morte” (p.38). No entanto,  no contexto de uma concepção de ciclo de mortes e renascimentos, tanto o tipo de renascimento quanto a existência pós-morte podem ser afetadas pelo cultivo, que permite atingir o estado de imortal. Mas o imortal Zhongli diz: “tornar-se imortal não é a meta final do cultivo de si mesmo”(p. 39). E apresenta uma tipologia dos imortais: imortais fantasmas, imortais humanos, imortais espirituais, imortais terrestres e imortais celestes. A forma inferior é @ imortal fantasma, alguém que tentou cultivar o Tao sem a compreensão correta, não são imortais propriamente dit@s, mas fantasmas cuja existência yin continua.  @s imortais human@s também possuem uma compreensão incompleta do Tao, praticando apenas um método inflexivelmente, mas obtiveram boa saúde e vida longa. @s imortais terrestres obtiveram um nível moderado de realização e podem viver no reino humano sem morrer. Já @s imortais espirituais continuaram o seu treinamento no reino terrestre e transformaram seu corpo humano em um corpo sutil. Continuam o seu cultivo e agem em benefício da humanidade até tornarem-se imortais celestes, que residem nos reinos celestiais.

Isso tudo  apenas  dá uma ideia  desse fascinante tema na cosmologia tradicional chinesa. Imortais são personagens que aparecem com frequência na literatura, nas artes visuais, na religiosidade popular e nos clássicos taoistas.

Medicina Chinesa e Treinamentos Taoistas: 2. pré-natal e pós-natal

foto do autor: pintura sobre leque, National Palace Museum, Tapei.

Nessa nova postagem da série, mais uma reflexão na fronteira entre os dois campos. Desta vez, com relação ao uso das concepções chave de pré-natal e pós-natal, utilizadas por ambos. Dito de uma forma simples, o pré-natal remete ao estado embrionário literal e metaforicamente, ao período anterior ao nascimento  no caso de um ser humano, ao momento anterior à manifestação, no caso do universo. Já o pós-natal remete à vida humana ordinária após o nascimento, com seus processos de crescimento, maturação, envelhecimento e morte. E também aos ciclos do mundo natural: dias e noites, fases da lua, estações, o movimento dos astros, etc. No contexto da filosofia do Yìjīng (易經), o Clássico das Mutações, as duas condições podem ser expressas pelos dois diagramas do bāguà (八卦) conforme as figuras abaixo:

Particularmente, no caso da vida humana, há algumas aproximações e diferenças entre a descrição da medicina chinesa em geral e da tradição taoista, nos seguintes termos: o pré-natal corresponde àquilo (essência, qì, etc.) que foi recebido da natureza e de nossa mãe e nosso pai no momento da concepção, enquanto o pós-natal corresponde ao que é adquirido da nossa interação com o mundo, inclusive extraído do ar que respiramos e dos alimentos que ingerimos. O pré-natal representa, portanto, o que é inato, constitucional, hereditário na vida humana.  E então, uma vez perdido,  dificilmente pode ser recuperado. Sendo assim, o ciclo normal da vida humana, conforme descrito na filosofia do Yìjīng por meio do simbolismo do bagua pós-natal e dos 12 hexagramas do calendário, se inicia no estado totalmente yin d@ recém-nascid@, tenr@ e vulnerável, que se transforma gradualmente em pleno yáng, até que, ao chegar a plenitude, começa a declinar, perdendo yáng gradualmente, rumo à doença, à decrepitude e finalmente à morte, também descrita como totalmente yīn. A velocidade com que isso ocorrerá depende das condições e do estilo de vida, além da constituição de cada pessoa.

Contudo, esse processo natural pode ser positivamente afetado pelos treinamentos taoistas, que podem atrasar o relógio da vida, fazendo-a mais longa, de modo a envelhecer com vigor e lucidez. E até mesmo recuperar a essência e o pré-natal. Esse é um dos sentidos do chamado “Caminho do Retorno”. Esse aspecto da restauração da vitalidade e da preservação da saúde correspondem ao chamado treino ou cultivo da vida (mìng gōng 命功), a primeira etapa do caminho taoista. Esse foi um motivo que levou milhões de pessoas, no passado e no presente, a praticarem esses métodos, independente de se identificarem com o taoismo como um caminho de vida. Até aqui estamos no domínio do uso de exercícios preventivos ou terapêuticos como prática medicinal. Em nossa linhagem, mestre Liu Pailin e seu sucessor, mestre Liu Chihming, juntamente com seus discípulos e discípulas, ensinaram milhares de pessoas no Brasil a cuidar da saúde utilizando esse recurso, o treinamento diário de  práticas corporais baseadas num conhecimento tradicional sistemático acerca do .

Para além desse aspecto, o retorno ao pré-natal da tradição taoista é mais profundo: os treinamentos são o meio potencial para uma transformação completa –  ao mesmo tempo corporal, subjetiva e existencial –  que combina a plenitude da potência de movimento da vida a um estado de serenidade e espontaneidade, que permitiria estar em completa sintonia com as circunstâncias, de modo a agir de modo eficaz, mas sem esforço ou identificação pessoal com a ação.  Uma verdadeira arte de viver baseada na fluidez, que só se pode aprender por experiência. A plena realização dessa condição é encarnada na figura d@ imortal ou ser iluminado, que ainda será tema de alguma postagem futura.

Modo de vida taoista: 6. Lidando com pessoas e situações

Neste sexto post da série modo de vida taoista, o tema são os desafios do cotidiano. A medida do sucesso na prática é o saber viver, aqui definido como uma justa combinação de fluidez e sensibilidade. De nada adianta a prática formal de meditação sentada, qìgōng ou tàijíquán, se, fora da situação de treinamento somos incapazes de expressar as qualidades que vivenciamos nos treinos. Aprender a mover o corpo de forma suave e circular, ou manter o corpo imóvel e estável por um longo período, ou ainda a relaxar e manter o coração sereno, são capacidades que é aconselhável transpor também para as situações diárias, principalmente as de conflito ou dificuldade. Por isso se diz:

O verdadeiro Tao requer de nós que lidemos com o mundo real, mas ao fazê-lo, o coração não se agita.

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Foto do autor: Detalhe do portal de entrada do templo do imortal Dòngbīn, em Zhǐnán Gōng, Taipei.

Metaforicamente, é preciso desenvolver nas relações uma habilidade de escuta, recepção e direcionamento da intenção das outras pessoas, como um tuīshǒu, o treinamento de empurrar as mãos do tàijíquán. Sem entrar em confronto direto, sem impor-se pela força, delicadamente redirecionando e dissolvendo as tensões. É preciso adaptabilidade e escuta nas situações comuns: imprevistos, mal-entendidos, tarefas, mesmo tragédias. De fato, as situações desafiantes ficam mais fáceis de lidar, se tratadas com leveza e tranquilidade, pois uma parte significativa das dificuldades vem de nossa própria confusão e tensão desnecessária. Isso não significa nem indiferença, nem negligência diante da ação necessária, mas em vez disso, uma prontidão serena que permite acolher a situação como é, agir de forma eficaz diante dela.