Modo de vida taoista: 2. como praticar?

Nessa segunda postagem da série modo de vida taoista, o assunto é como praticar. A ideia de harmonizar-se com os ciclos da natureza não é uma mera metáfora para a tradição taoista, mas uma questão prática, baseada em um conhecimento técnico refinado. Um aspecto da questão é quando e que tipo de treinamentos praticar. A esse respeito, há várias orientações. Hoje compartilharei uma recomendação simples para quem deseja ter uma prática diária. O ideal seria ter dois momentos de prática no início e no final do dia, ajustáveis à rotina de cada pessoa, em função de seu tempo, necessidades e práticas preferidas.

Por exemplo exemplo, ao começar o dia nos preparamos para iniciar nossas atividades: meditação, respiração de limpeza, qigong e arte marcial interna. Ao terminar o dia, estamos nos recolhendo; seguimos a ordem contrária, da arte marcial à meditação. Esse modo de organizar o treino diário segue a progressão de yīn para yáng e vice-versa, da serenidade ao movimento e do movimento de volta à serenidade.

Alguns conselhos suplementares do mestre Liu Pailin: 1) pratique técnicas respiratórias de captação do qì da natureza nos horários yáng (23:00-11:00). O melhor horário é de manhã bem cedo, quando ainda há uma faixa de luz alaranjada no horizonte. 2) no período mais quente do dia, o mais indicado é meditar e repousar, evitando exercícios extenuantes. 3) A não ser  que o objetivo seja captar o qì da lua ou das estrelas, evite praticar à noite diretamente sob árvores, pois nesse horário o qì se move da Terra para o Céu.

O Corpo Taoista: 4. a educação corporal

Nesta quarta postagem da série O Corpo Taoista, o assunto é a educação corporal como arte da existência. Levar em consideração apenas as concepções de corpo sem atentar para as práticas corporais taoistas seria um grave mal entendido, pois os conceitos são descrições que permitem expressar e cultivar experiências. Traduzindo em termos práticos, cultivar o Tao equivale a uma (re)educação dos sentidos, da postura e dos modos de se mover. Mais uma vez, como a expressão dos mesmos princípios básicos, o corpo taoista senciente e em movimento, percebe sem se agitar e move-se em conformidade com o que é observado na natureza como a  chave para a continuidade: movimento lento, contínuo, gradual e circular, como foi reconhecido pelos antigos sábios taoistas ao contemplarem os astros, os ciclos das estações e outros fenômenos naturais. Ou como afirma a transmissão oral, inspirada no  Yijing: “o Céu e a Terra são duradouros porque sabem se mover continuamente”. Não só o movimento corporal se inspira nos ritmos naturais, mas também se harmoniza à manifestação cíclica de yin e yang no universo.  Há também inúmeros exercícios baseados nos movimentos de animais, reais ou míticos, uma apropriação seletiva de suas qualidades. O Caminho é percorrido por meio de um duplo aprendizado: contemplando diariamente a natureza e praticando os métodos transmitidos ao longo das gerações, tendo como exemplo uma pessoa viva que encarna a tradição com seu próprio corpo, como foi o caso do mestre Liu Pai Lin ao longo de cerca de duas décadas no Brasil.

mestres taoistas

Na foto, da direita para esquerda, mestre Liu Pailin e alguns de seus mestres: Liu Beizhong (linhagem Kunlun), o ancião Nanshi Laoren, Liao Kong (linhagem Longmen), Tanlaisheng (linhagem Jinshan).

 

 

O Corpo Taoista: 3. a especificidade do ser humano

Nessa terceira postagem da série O Corpo Taoista, recapitulo uma lição aprendida da  transmissão do mestre Liu Pai Lin, a particularidade do ser humano, como ponto de união entre Céu e Terra, se expressa em algumas características corporais de nossa espécie: o bipedismo, as mãos de cinco dedos e o fantástico cérebro humano. A postura bípede faz da coluna vertebral um eixo vertical. A cabeça e as mãos se conectam com o Céu, o baixo ventre e os pés se conectam com a Terra. Mais precisamente, as digitais dos dedos e o língtái (靈台), situado na região do terceiro ventrículo, conectam-se com os 10 Troncos Celestes (天干), enquanto a sola dos pés e o yīnqiào (陰竅), situado nos genitais internos, conectam-se com os 12 Ramos Terrestres (地支). São estas características que permitem captar o qì da natureza, para cultivar a vida e o espírito. O qì do Céu e o  da Terra se reúnem no centro do corpo, formando um Taiji, em torno do qual está um Bagua. Portanto, cultivar essa ligação é, ao mesmo tempo, qìgōng (炁功) e meditação (静坐). Mantendo as mãos e a atenção sobre a barriga, literalmente tomamos consciência do nosso centro, nosso Taiji, fazemos as eletricidades de cima e de baixo interagirem.

6 centros

Além disso, um ser humano vivo possui 6 Centros (六神竅), relacionados a diferentes aspectos da consciência, que permitem a interação com o da natureza para cultivar o Tao. A circulação dos 6 centros, ou pequeno universo, é um método clássico de meditação taoista. (Na foto acima, o diagrama dos 6 Centros utilizado pelo mestre Liu Pai Lin).

O Corpo Taoista: 2. O País Interior

Nessa segunda postagem da série O Corpo Taoista, desenvolvo o ponto anterior. O corpo, como pequeno universo, possui uma paisagem interna que, como objeto de contemplação meditativa, pode ser descrito como “país interior”. Esse entendimento justifica a leitura dos conselhos para o bom governo no 3º poema do Daodejing (道德經) como governo de si:

A pessoa sagrada governa                                                                                                  Esvazia seu coração                                                                                                             Enche seu ventre                                                                                                            Enfraquece suas vontades                                                                                           Robustece seus ossos

O coração é a sede do shén (): tem o sentido amplo de mente, ao mesmo tempo pensamento e emoção. O ventre, a barriga, remete ao centro do corpo, a região em torno do umbigo, a raiz ou origem fetal (胎元). Vontades aqui são desejos. Robustecer os ossos é um dos efeitos do cultivo da vida (命功). Assim a pessoa sábia cultiva a serenidade do coração, a plenitude do e a simplicidade no modo de vida. E vivendo assim obtém a combinação de longevidade e serenidade.

Mas o país interior pode ter ainda conotações mais literais: composto de mar, campos, bosques e montanhas, por palácios nos quais estão divindades que habitam os órgãos e regem a saúde, como no célebre diagrama do Neijingtu, abaixo.

Compreender o Tao: 2. saber com o próprio corpo

Nesta segunda postagem da série Compreender o Tao, dou seguimento ao argumento anterior. Se as palavras e os conceitos  são meros indicadores,  não a via para o Tao,  como percorrer o caminho? A transmissão da tradição ocorreu e ocorre ainda por vários meios:  palavra falada,  palavra escrita (principalmente narrativa ou poética), imagem  (diagrama, desenho, pintura), recursos audiovisuais modernos, música, movimento e postura corporal. O treinamento é o meio, por excelência, para compreender o Tao. Cada método é a expressão de um (ou mais) princípio(s), o meio para atualizá-lo(s) como experiência pessoal. Os métodos são fundamentalmente técnicas corporais, no sentido maussiano, que induzem um certo “modo somático de atenção” (CSORDAS, 2008), uma forma culturalmente específica de prestar atenção com o corpo. Portanto, se por meio das palavras, o Tao é inapreensível, torna-se acessível por meio da experiência sensorial, motora e afetiva do corpo vivido.

Version 2

Por exemplo, ao abraçar o Taiji, colocando as mãos sobre a região do umbigo (taiyuan), ao mesmo tempo que, literalmente, trazemos  a atenção para nosso centro de gravidade,  a origem de nossa vida,  encarnamos o simbolismo do  Taiji (☯), como centro dinâmico vivo. O elemento central não é o conceito ou o símbolo, mas como isso se atualiza numa experiência corporal. Obviamente, não se trata simplesmente da eficácia do gesto, mas do fato de fazê-lo com plena atenção e consciência.

Treinar é cultivar um hábito. Assim, ao abraçar o Taiji regularmente, nos acostumamos à manter a atenção no centro, com consequências motoras e posturais, perceptivas e afetivas. Esse é um método básico de qigong e meditação taoista, que é praticado em nossa linhagem ao final de cada exercício, mas que também é adotado como postura básica de meditação, e um recurso para acalmar a mente e recuperar as energias a qualquer momento do dia. O índice para a eficácia do Abraço do Taiji justamente é o grau de profundidade de seu efeito sobre o corpo/consciência.