O Clássico Interno do Imperador Amarelo: 03. a vida humana e o qì da natureza

A medicina chinesa não separa o ser humano da natureza. Isso fica óbvio no capítulo 3 das Questões Simples (Sùwén 素聞), livro que compõe o Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng 黃帝內經), quando diz: “O ser humano é um pequeno universo, já que o corpo humano tem tudo que o universo tem”. E explica que somos feitxs dos mesmos Cinco Movimentos (wŭxíng 五行) (madeira, fogo, terra, metal e água) que formam todas as coisas do universo. E que se expressam na composição dos tecidos que compõem o corpo, nos órgãos internos (zàngfŭ 臟腑), suas funções fisiológicas e nossas faculdades e processos mentais, que lhes correspondem, segundo a concepção chinesa. E assim como os doze horários, correspondentes aos 12 ramos terrestres (dìzhī 地支), temos doze canais ordinários. Ou seja, em um único parágrafo do clássico, encontramos uma síntese dos fundamentos da medicina clássica chinesa. Este entendimento geral é a base para entender saúde como harmonia Yin-Yang e equilíbrio entre os Cinco Movimentos, de um lado; e os processos de adoecimento como desarmonia Yin-Yang, desequilíbrio entre os Cinco Movimentos e bloqueio do livre fluxo de qì e/ou sangue pelo corpo.

Página da edição chinesa do Suwen, que forma parte do Huangdineijing. Acervo da World Digital Library.

Portanto, esse capítulo do clássico explica também que a vida humana depende do Yin e Yang e dos Cinco Movimentos. No nível da terra, há uma correspondência entre os cinco movimentos e os três fatores climáticos Yin (frio, seco, molhado) e três fatores Yang (vento, fogo e calor de verão), que podem se tornar os fatores externos perversos, causadores de doenças. Particularmente, quando o clima das estações está em correspondência com a natureza das estações – isto é, “cálido na primavera, quente no verão, fresco no outono e frio no inverno em suas condições normais” (Questões Simples, capítulo 3) – isso não deveria causar doenças. Mas quando as condições climáticas estão particularmente anormais, isso pode prejudicar nosso qì e nossos órgãos internos. Além disso, se nosso se encontra enfraquecido ou desequilibrado, os fatores climáticos normais podem invadir e agredir nossos organismo, como é explicado mais adiante no clássico (Questões Simples, capítulo 4).

O clássico recomenda que façamos o nosso entrar em contato com o do universo,”numa circunstância de calma onde não há vento nem tempestade”. Isto é, quando o do ambiente natural e o nosso próprio não estão agitados. Embora não haja uma referência explícita aos treinamentos nesse trecho do clássico, esse é um importante conselho para a prática de qìgōng (氣功) e tàijíquán (太極拳) ao ar livre. Praticando corretamente, em um ambiente de abundante e harmônico, há benefícios para a mente: “pode-se manter o espírito quieto e claro como o céu azul, livre das perturbações do excesso de alegria ou da raiva violenta”. E para o corpo: “sua energia corpórea será substancial, e não será ferida mesmo que for atacada por fatores perversos”. Isso é possível se desenvolvemos a capacidade de nos adaptar aos movimentos do do céu e da terra e preservar nosso próprio , o que caracteriza, para o clássico, uma pessoa sábia.

Na natureza como no corpo humano, a vida está associada ao Yang : “a operação incessante do céu depende do brilho do sol, e a saúde corporal do ser humano, depende dua energia Yang clara e flutuante, que se guarde contra o exterior”. Exterior aqui equivale aos fatores climáticos que tem um efeito perverso quando invadem o corpo: o clássico menciona explicitamente calor, frio, umidade e vento. Mas discorre também sobre os fatores mistos: excesso de trabalho, ascensão do yang por uma explosão de raiva, lesões dos tendões, excessos alimentares. Mas de todos esses fatores causadores de doenças, nesse capítulo o clássico destaca um: “o vento é a principal fonte de várias doenças”.

Pintura retratando o canal zuyangming, correspondente ao estômago, data e autor desconhecidos, Welcome Collection Gallery, disponível em Wikimedia Commons.

O clássico recomenda adaptar-se ao tempo e cuidar do corpo e do espírito, em conformidade com a lei de Yin e Yang. Em uma postagem anterior falamos das estações do ano. Aqui o texto refere-se ao ciclo diário de ascensão e declínio do Yang , como também está descrito no capítulo 4, acontece simultaneamente no corpo humano e na natureza, de modo que aqui cuidar-se é manter-se em harmonia com as fases desse ciclo durante as atividades. A este respeito, ver as recomendações do mestre Liu Pailin sobre os horários de treinamento.

Por fim, uma citação do clássico que resume suas conclusões nesse capítulo:

Se as energias Yin e Yang do ser humano forem mantidas em estado de equilíbrio, seu corpo será forte e seu espírito saudável, se suas energias Yin e Yang falharem em sua comunicação, sua energia vital irá declinar e finalmente ficará esgotada.

Clássico Interno do Imperador Amarelo, Questões Simples, capítulo 3.

Aprender o Tao: 2. o lugar da imagem

Nessa segunda postagem da série, abordaremos o papel da iconografia na transmissão do Tao. Como ponto de partida, digamos que, no princípio está a experiência cinestésica, um corpo que sente e se move, no domínio pré-objetivo, sem a necessidade de palavras. Em segundo lugar, vem a imagem: símbolo, emblema, diagrama, pintura, síntese visual não só de uma experiência, mas de todo um entendimento não verbal acerca do mundo. Aqui cabem os dizeres geniais da obra clássica de Marcel Granet: o pensamento chinês é de natureza sintética. Ou dito de outro modo: poucos princípios, infinitas aplicações.

Imortal voando num dragão, detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2019.
O símbolo do Taiji rodeado do Bagua do Céu Anterior, com os trigramas Zhen e Xun atravessados pela espada, conforme utilizado pela linhagem taoista Pailin.

Tomemos como exemplo o símbolo mais central da tradição taoista, aquele que engloba seu traço mais distintivo. Uma verdadeira pérola da civilização chinesa. O símbolo do Tàijí (太極) ☯: yīn (陰) e yáng(陽) unidos em um movimento incessante de alternância, oposição, complementaridade e inseparabilidade. Uma só imagem que não apenas descreve de forma genial a natureza processual de todos os fenômenos, micro e macro, pessoais e coletivos, sociais e naturais, mas também prescreve uma postura existencial, informando uma verdadeira arte da existência. Os oito trigramas (八卦), oito manifestações básicas das possíveis combinações de yīn e yáng, nos três níveis da realidade: Céu (天), ser humano (人) e Terra (地) que compõem os 64 hexagramas do Clássico das Mutações (Yìjīng易經). Também eles são compostos de apenas duas possibilidades, yīn e yáng, dessa vez representados, respectivamente, por uma linha partida () ou uma linha contínua (). Resumindo, em uma representação iconográfica relativamente simples está contida toda uma filosofia da natureza, acessível à apreensão intuitiva.

Além de outras imagens clássicas da chamada filosofia yīn/yáng, como o Diagrama do Rio e o Livro Lo, poderíamos incluir como exemplos também as imagens alquímicas e mesmo as pinturas taoistas, nas quais o vazio tem pelo menos a mesma importância que as formas. Em certo sentido, a própria escrita chinesa, especialmente as formas mais estilizadas de caligrafia como estilo de pintura, tem essa característica imagética evocativa, habilmente utilizada também na poesia. O pictograma é uma palavra-imagem, com um poder evocativo distinto dos alfabetos das línguas ocidentais, ao menos para um/a leitor/a da língua chinesa suficientemente embebido/a em sua atmosfera cultural.

Detalhe de caligrafia sobre papel, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

No entanto, mais uma vez, para aprender o Tao não basta a imagem, pois em geral ela não se revela por si própria. É preciso um/a mestre/a que nos ensine a ver. Mais uma vez, é a presença corporal encarnada, em uma relação pessoal, que nos dá a ver o Tao por meio das imagens, assim como permitiu lê-lo ou ouvi-lo entre as palavras.