O Elogio à inutilidade

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Esta é mais uma postagem sobre taoismo e mundo contemporâno. A pergunta que desejo responder é: como a crítica anti-utilitarista do taoismo pode ser relevante nos dias de hoje? Em outras palavras, qual o benefício de ser inútil? O elogio à inutilidade é uma conversa sobre o anti-utilitatismo taoista e sua relevância hoje. Revisitaremos, como imagem chave, a “árvore inútil”de Zhuangzi.

Se preferir assistir em vídeo, está aqui. 😉

Por que é preciso saber ser inútil?

Em tempos de ideologia do empreendedorismo, de obsessão pela atividade incessante, pela produtividade, pelo excesso de informação, é preciso fazer um elogio à inutilidade. Em primeiro lugar, o ensinamento do Tao e as recomendações básicas da medicina chinesa para a saúde apontam a necessidade de equilíbrio entre atividade e repouso, ou entre movimento e quietude.

O excesso de estímulos e demandas

Um dos grandes males contemporâneos se traduz como inquietude em todos os níveis. Tanto o trabalho quanto o lazer se caracterizam hoje pela exigência de uma atenção dispersa multitarefa. A conectividade incessante das tecnologias portáteis de comunicação e informação agravaram essa situação. Por causa dela, estamos diante de uma demanda constante de interação. Se não desligarmos o celular, podemos estar 24 horas à disposição. Não apenas de nosso trabalho e relações, mas também das notificações das mídias sociais.

Além disso, estas mídias sociais nos bombardeiam com um excesso de estímulos sensoriais e de informação irrelevante. É preciso saber desconectar-se, desabilitar as notificações, para ter alguns momentos diários de paz.

Seus algoritmos mapeiam nossas preferências, em busca da fórmula para nos engajar pelo maior tempo possível. Há uma lógica viciante na forma pela qual as postagens aparecem numa timeline, ou os aplicativos nos fazem sugestões de novos conteúdos, sem falar dos anúncios publicitários, plantando falsas necessidades, a solução para problemas imaginários.

Por isso, é preciso fazer um elogio à inutilidade. Precisamos saber como não sermos arrastados por esta avalanche de estímulos e informação. Recuperar nosso próprio ritmo natural é um primeiro benefício de ser inútil.

O convite à auto-exploração

O empreendedorismo promove uma ilusão: basta esforçar-se para garantir prosperidade e sucesso. É como se não houvesse desigualdades nas oportunidades, nem exclusão estrutural. Ao omitir este detalhe, convida a uma corrida incessante, como uma “rodinha de hamster”.

Além da exploração que toda pessoa que trabalha é submetida pelo sistema capitalista, há agora um novo tipo de exploração, aquela praticada por nós mesmos, por ambição e suposto investimento no próprio sucesso e felicidade. O tempo antes dedicado ao descanso e ao lazer se tornou um tempo disponível para aceitar mais trabalho, ou para investir nos estudos em busca de melhor qualificação profissional. No passado, a melhor formação do trabalhador era responsibilidade do patrão, mas agora passou a ser uma responsabilidade individual, para se manter “competitivo no mercado”.

O resultado de tudo isso é a síndrome de Burnout, a depressão e a ansiedade. Porque não sabemos apreciar o descanso, o lazer, o ócio como parte necessária da vida, acabamos nos esgotando. Em alguns casos, inclusive, pode ocorrer uma morte súbita precoce, por pura exaustão. Como uma chama que se extingue porque queimou todo o combustível rápido demais.

No Daodejing, texto fundante da filosofia taoista, Laozi aconselha:

知足不辱,
zhī zú bù rǔ, 
知止不殆
zhī zhǐ bù dài, 
可以長久
kě yǐ cháng jiǔ.
“Sabendo se contentar, não se humilha,
Sabendo parar, não se arrisca,
Pode por meio disso durar muito tempo”
(Daodejing, poema 44).

Mestre Liu Pailin, pioneiro do taoismo, do Taichi e da medicina chinesa no Brasil, aconselhava: “pessoas de meia-idade, andem devagar [a caminho do cemitério]”. Um segundo benefício de ser inútil é saber se preservar. Não desperdiçar nem encurtar a própria vida por causa de ambições excessivas é mais um motivo para fazer um elogio à inutilidade.

A árvore inútil de Zhuangzi

“A árvore inútil” é um importante tema nos escritos de Zhuangzi, o segundo personagem fundante da filosofia taoista, depois de Laozi. Há várias versões desta história. Vou mencionar apenas algumas edições em português, caso leitores e leitoras queiram estudá-la de perto, o que recomendo.

Na minha tese de doutorado, publicada como O Retorno à Raiz (Bizerril, 2007), cito as versões traduzidas por Thomas Merton e por Burton Watson. Publicada mais recentemente, uma edição interessante é a de Giorgio Sinedino. No capítulo IV, intitulado “Autoconfiança”, vemos duas versões desta história. Como é uma anedota importante para fazer um elogio à inutilidade, vou comentar as duas aqui. A primeira se chama “O espírito do Carvalho”(Sinedino, 2022, p. 212-215). E a segunda, “O fedor que salva”(Sinedino, 2022, p. 218-219).

“O espírito do carvalho”

Nesta primeira história, que reconto aqui com minhas palavras, o mestre artesão Shi Bo viajava com seus aprendizes, quando avistou um carvalho colossal, consagrado na região como Altar da Terra (社). Alto como uma montanha, com um tronco de duzentas braças de largura, caberiam milhares de bois na sua sombra.

Depois de uns instantes maravilhado, Shi Bo se retirou imediatamente, sem olhar novamente. Mas um dos aprendizes mais jovens ficou para trás, contemplando a árvore. Lembrem que o olhar de um carpinteiro para uma árvore é utilitário. Pois ele enxerga que objetos poderia fazer com a madeira, em qual quantidade e de que qualidade.

O jovem aprendiz, que ficara para trás, correu para reencontrar o mestre. E perguntou, surpreso, porque ele ficou indiferente diante daquela maravilha. O mestre, impaciente, respondeu: a árvore era inútil! Pois sua madeira não servia para construir barcos, que afundariam; nem caixões, que apodrederiam; nem utensílios, que rachariam; nem portas, que ficariam manchadas pela seiva; nem pilares, que seriam comidos pelos cupins. Enfim, uma árvore completamente inútil.

A lição a aprender

Após a longa jornada de volta ao lar, Shi Bo adormeceu, exausto. Então sonhou com o espírito do carvalho gigante, que lhe contou o destino das árvores úteis. As árvores frutíferas são violentadas e humilhadas quando seus frutos são colhidos, tendo seus galhos torcidos e quebrados. Por isso não podem viver a duração dos anos concedidos pelo Céu. Generosamente, o carvalho explicou a Shi Bo sobre o benefício de ser inútil: exatamente porque ninguém o cortou nem arrancou seus frutos, ele pôde tornar-se tão grande e frondoso, desenvolver-se plenamente e viver até o fim da duração natural de sua vida.

Árvores e humanos existem entre o Céu e a Terra, mas os humanos tratam as árvores como coisas, em vez de seres. E como também tratam outros humanos como coisas, daí a vantagem para as pessoas de saberem ser inúteis, escondendo suas habilidades de caça-talentos, gestores e políticos, para não serem exploradas.

Essa imagem faz mais sentido se lembrarmos que, na China antiga, os governantes saíam em busca de pessoas sábias e talentosas para empregar como ministros e conselheiros. Caso aceitassem o encargo, tais pessoas se veriam enredadas nas intrigas da corte e exaustas com inúmeras tarefas de grande responsabilidade. Por causa disso, muitos mestres taoistas esconderam sua sabedoria, fingindo ser pessoas simplórias e até loucas, para evitar este destino e ter a liberdade necessária para continuar cultivando o Tao.

“O fedor que salva”

Nesta segunda história, também narrada com minhas próprias palavras, o imortal Guo Ziqi encontra uma árvore assombrosamente gigante, tão grande que poderia esconder mil carros de guerra em sua sombra.

Examinando-a com mais cuidado, reparou que os galhos eram finos e retorcidos. Assim, não serviriam para fazer vigas. Suas raízes grossas e arrendondadas estavam rachadas no meio. Por isso, não serviam para fazer caixões. Suas folhas, em vez de ter propriedades medicinais, feriam a língua de quem as provar. Por fim, em vez de aromáticos, os ramos eram tão fedorentos que ele desmaiou ao cheirá-los e só acordou vários dias depois.

Em casa e ainda de cama, Guo Ziqi elogiou a árvore que conseguira crescer até tocar o Céu, graças a sua inutilidade.

A lição a aprender

Aqui também se trata do benefício de ser inútil. Esta árvore gigantesca pôde alcançar um tamanho colossal porque seus galhos, raízes e folhas e ramos não serviam para absolutamente nada, de modo semelhante ao carvalho da história anterior.

Assim, quem deseja cultivar o Tao, que também não serve para nada, exceto para o mais importante que é saber bem viver, precisa se desprender do utilitarismo, pois ele nos rouba o mais importante na vida, substituindo a serenidade e o contentamento por ambições desnecessárias e preocupações evitáveis.

Claro que tudo isso não se refere a nós desconsiderarmos as nossas responsabilidades sociais básicas, de garantir nosso sustento, de cuidar da nossa vida, da nossa casa e das pessoas que dependem de nós. Mas, sim, é um antídoto para esse excesso, na vida contemporânea, de ambição, de vontade de fama, de sucesso e de riqueza, de ter dinheiro para desfrutar prazeres. E, neste processo, nós arruinamos nossa sanidade mental, a saúde do nosso corpo e a tranquilidade do nosso coração.

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