O Elogio à inutilidade

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Esta é mais uma postagem sobre taoismo e mundo contemporâno. A pergunta que desejo responder é: como a crítica anti-utilitarista do taoismo pode ser relevante nos dias de hoje? Em outras palavras, qual o benefício de ser inútil? O elogio à inutilidade é uma conversa sobre o anti-utilitatismo taoista e sua relevância hoje. Revisitaremos, como imagem chave, a “árvore inútil”de Zhuangzi.

Se preferir assistir em vídeo, está aqui. 😉

Por que é preciso saber ser inútil?

Em tempos de ideologia do empreendedorismo, de obsessão pela atividade incessante, pela produtividade, pelo excesso de informação, é preciso fazer um elogio à inutilidade. Em primeiro lugar, o ensinamento do Tao e as recomendações básicas da medicina chinesa para a saúde apontam a necessidade de equilíbrio entre atividade e repouso, ou entre movimento e quietude.

O excesso de estímulos e demandas

Um dos grandes males contemporâneos se traduz como inquietude em todos os níveis. Tanto o trabalho quanto o lazer se caracterizam hoje pela exigência de uma atenção dispersa multitarefa. A conectividade incessante das tecnologias portáteis de comunicação e informação agravaram essa situação. Por causa dela, estamos diante de uma demanda constante de interação. Se não desligarmos o celular, podemos estar 24 horas à disposição. Não apenas de nosso trabalho e relações, mas também das notificações das mídias sociais.

Além disso, estas mídias sociais nos bombardeiam com um excesso de estímulos sensoriais e de informação irrelevante. É preciso saber desconectar-se, desabilitar as notificações, para ter alguns momentos diários de paz.

Seus algoritmos mapeiam nossas preferências, em busca da fórmula para nos engajar pelo maior tempo possível. Há uma lógica viciante na forma pela qual as postagens aparecem numa timeline, ou os aplicativos nos fazem sugestões de novos conteúdos, sem falar dos anúncios publicitários, plantando falsas necessidades, a solução para problemas imaginários.

Por isso, é preciso fazer um elogio à inutilidade. Precisamos saber como não sermos arrastados por esta avalanche de estímulos e informação. Recuperar nosso próprio ritmo natural é um primeiro benefício de ser inútil.

O convite à auto-exploração

O empreendedorismo promove uma ilusão: basta esforçar-se para garantir prosperidade e sucesso. É como se não houvesse desigualdades nas oportunidades, nem exclusão estrutural. Ao omitir este detalhe, convida a uma corrida incessante, como uma “rodinha de hamster”.

Além da exploração que toda pessoa que trabalha é submetida pelo sistema capitalista, há agora um novo tipo de exploração, aquela praticada por nós mesmos, por ambição e suposto investimento no próprio sucesso e felicidade. O tempo antes dedicado ao descanso e ao lazer se tornou um tempo disponível para aceitar mais trabalho, ou para investir nos estudos em busca de melhor qualificação profissional. No passado, a melhor formação do trabalhador era responsibilidade do patrão, mas agora passou a ser uma responsabilidade individual, para se manter “competitivo no mercado”.

O resultado de tudo isso é a síndrome de Burnout, a depressão e a ansiedade. Porque não sabemos apreciar o descanso, o lazer, o ócio como parte necessária da vida, acabamos nos esgotando. Em alguns casos, inclusive, pode ocorrer uma morte súbita precoce, por pura exaustão. Como uma chama que se extingue porque queimou todo o combustível rápido demais.

No Daodejing, texto fundante da filosofia taoista, Laozi aconselha:

知足不辱,
zhī zú bù rǔ, 
知止不殆
zhī zhǐ bù dài, 
可以長久
kě yǐ cháng jiǔ.
“Sabendo se contentar, não se humilha,
Sabendo parar, não se arrisca,
Pode por meio disso durar muito tempo”
(Daodejing, poema 44).

Mestre Liu Pailin, pioneiro do taoismo, do Taichi e da medicina chinesa no Brasil, aconselhava: “pessoas de meia-idade, andem devagar [a caminho do cemitério]”. Um segundo benefício de ser inútil é saber se preservar. Não desperdiçar nem encurtar a própria vida por causa de ambições excessivas é mais um motivo para fazer um elogio à inutilidade.

A árvore inútil de Zhuangzi

“A árvore inútil” é um importante tema nos escritos de Zhuangzi, o segundo personagem fundante da filosofia taoista, depois de Laozi. Há várias versões desta história. Vou mencionar apenas algumas edições em português, caso leitores e leitoras queiram estudá-la de perto, o que recomendo.

Na minha tese de doutorado, publicada como O Retorno à Raiz (Bizerril, 2007), cito as versões traduzidas por Thomas Merton e por Burton Watson. Publicada mais recentemente, uma edição interessante é a de Giorgio Sinedino. No capítulo IV, intitulado “Autoconfiança”, vemos duas versões desta história. Como é uma anedota importante para fazer um elogio à inutilidade, vou comentar as duas aqui. A primeira se chama “O espírito do Carvalho”(Sinedino, 2022, p. 212-215). E a segunda, “O fedor que salva”(Sinedino, 2022, p. 218-219).

“O espírito do carvalho”

Nesta primeira história, que reconto aqui com minhas palavras, o mestre artesão Shi Bo viajava com seus aprendizes, quando avistou um carvalho colossal, consagrado na região como Altar da Terra (社). Alto como uma montanha, com um tronco de duzentas braças de largura, caberiam milhares de bois na sua sombra.

Depois de uns instantes maravilhado, Shi Bo se retirou imediatamente, sem olhar novamente. Mas um dos aprendizes mais jovens ficou para trás, contemplando a árvore. Lembrem que o olhar de um carpinteiro para uma árvore é utilitário. Pois ele enxerga que objetos poderia fazer com a madeira, em qual quantidade e de que qualidade.

O jovem aprendiz, que ficara para trás, correu para reencontrar o mestre. E perguntou, surpreso, porque ele ficou indiferente diante daquela maravilha. O mestre, impaciente, respondeu: a árvore era inútil! Pois sua madeira não servia para construir barcos, que afundariam; nem caixões, que apodrederiam; nem utensílios, que rachariam; nem portas, que ficariam manchadas pela seiva; nem pilares, que seriam comidos pelos cupins. Enfim, uma árvore completamente inútil.

A lição a aprender

Após a longa jornada de volta ao lar, Shi Bo adormeceu, exausto. Então sonhou com o espírito do carvalho gigante, que lhe contou o destino das árvores úteis. As árvores frutíferas são violentadas e humilhadas quando seus frutos são colhidos, tendo seus galhos torcidos e quebrados. Por isso não podem viver a duração dos anos concedidos pelo Céu. Generosamente, o carvalho explicou a Shi Bo sobre o benefício de ser inútil: exatamente porque ninguém o cortou nem arrancou seus frutos, ele pôde tornar-se tão grande e frondoso, desenvolver-se plenamente e viver até o fim da duração natural de sua vida.

Árvores e humanos existem entre o Céu e a Terra, mas os humanos tratam as árvores como coisas, em vez de seres. E como também tratam outros humanos como coisas, daí a vantagem para as pessoas de saberem ser inúteis, escondendo suas habilidades de caça-talentos, gestores e políticos, para não serem exploradas.

Essa imagem faz mais sentido se lembrarmos que, na China antiga, os governantes saíam em busca de pessoas sábias e talentosas para empregar como ministros e conselheiros. Caso aceitassem o encargo, tais pessoas se veriam enredadas nas intrigas da corte e exaustas com inúmeras tarefas de grande responsabilidade. Por causa disso, muitos mestres taoistas esconderam sua sabedoria, fingindo ser pessoas simplórias e até loucas, para evitar este destino e ter a liberdade necessária para continuar cultivando o Tao.

“O fedor que salva”

Nesta segunda história, também narrada com minhas próprias palavras, o imortal Guo Ziqi encontra uma árvore assombrosamente gigante, tão grande que poderia esconder mil carros de guerra em sua sombra.

Examinando-a com mais cuidado, reparou que os galhos eram finos e retorcidos. Assim, não serviriam para fazer vigas. Suas raízes grossas e arrendondadas estavam rachadas no meio. Por isso, não serviam para fazer caixões. Suas folhas, em vez de ter propriedades medicinais, feriam a língua de quem as provar. Por fim, em vez de aromáticos, os ramos eram tão fedorentos que ele desmaiou ao cheirá-los e só acordou vários dias depois.

Em casa e ainda de cama, Guo Ziqi elogiou a árvore que conseguira crescer até tocar o Céu, graças a sua inutilidade.

A lição a aprender

Aqui também se trata do benefício de ser inútil. Esta árvore gigantesca pôde alcançar um tamanho colossal porque seus galhos, raízes e folhas e ramos não serviam para absolutamente nada, de modo semelhante ao carvalho da história anterior.

Assim, quem deseja cultivar o Tao, que também não serve para nada, exceto para o mais importante que é saber bem viver, precisa se desprender do utilitarismo, pois ele nos rouba o mais importante na vida, substituindo a serenidade e o contentamento por ambições desnecessárias e preocupações evitáveis.

Claro que tudo isso não se refere a nós desconsiderarmos as nossas responsabilidades sociais básicas, de garantir nosso sustento, de cuidar da nossa vida, da nossa casa e das pessoas que dependem de nós. Mas, sim, é um antídoto para esse excesso, na vida contemporânea, de ambição, de vontade de fama, de sucesso e de riqueza, de ter dinheiro para desfrutar prazeres. E, neste processo, nós arruinamos nossa sanidade mental, a saúde do nosso corpo e a tranquilidade do nosso coração.

Aprender práticas taoistas na era do imediatismo

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

As práticas taoistas são a expressão de um modo de viver a vida. São métodos não só para atingir finalidades pragmáticas, como curar doenças, preservar a boa saúde, atingir a longevidade. Mas são também meios para compreender pela experiência conceitos filosóficos complexos: Tao, não ação, espontaneidade, Vazio. E, porque não, também para realizar o Tao, o estado natural. Mas como fazer para aprender práticas taoistas na era do imediatismo? Como tornar relevantes no mundo de hoje estes métodos milenares? Esta é mais uma postagem da série taoismo e mundo contemporâneo.

Assista aqui a versão em vídeo desta postagem.

Parece que, para muitas pessoas, a vida cotidiana normal precisa ser vivida em velocidade crescente. O filósofo Byul Chung-Han descreveu a sociedade contemporânea como uma Sociedade do Cansaço. Nela, o sujeito da performance explora-se a si próprio voluntariamente, pois acredita que deve se mostrar constantemente produtivo, bem sucedido e feliz, mesmo às custas da sua saúde e sanidade.

Como instrutor de práticas taoistas, tenho encontrado uma situação curiosa. Pessoas têm me perguntado sobre cursos de formação para instrutor de Qigong. Em si, esta é uma boa notícia. Mas o curioso é querer ser instrutor sem antes ser aprendiz. Algumas pessoas nunca praticaram e já pensam em como seria ensinar. Esta vontade de “queimar etapas” é uma característica do nosso tempo. Então como ensinar práticas taoistas na era do imediatismo?

A formação tradicional

Como é a formação tradicional? Resumidamente: iniciante, estudante, praticante experiente, e só então instrutor, professor, e talvez mestre.

Mestre Liu Pallin (1907-2000), pioneiro do taoismo, da medicina chinesa e do Taichi.

Primeiro, somos iniciantes. Quer dizer, não sabemos nada, ou quase nada. Então, depois de um tempo como aprendizes, começamos a nos familiarizar com os princípios das artes taoistas. O treino traz consigo uma mudança de hábitos, primeiro motores e posturais, depois das atitudes habituais. Para isso, basta ter 1 professor/a qualificado/a e um pouco de dedicação e interesse em aprender.

Depois, com mais algumas semanas ou meses de treino, começamos a sentir os benefícios de praticar. Primeiro, nossa vitalidade aumenta. Gradualmente, alguns problemas crônicos de saúde começam a melhorar. Algumas dores que tínhamos no corpo não nos visitam mais. Percebemos também que o estresse diminuiu. Se continuarmos a praticar, esses benefícios se aprofundam. Além disso, começamos a memorizar as sequências de exercícios. E aprimorar nossa consciência corporal.

E, quando memorizamos as sequências, podemos também treinar fora das aulas. Veja bem, quanto mais repetir o treino, maior o benefício. Isso é, se tiver compreendido como praticar corretamente.

Turma da formação em espada Taichi com o professor Ronaldo, Brasília, 2000-2001. O professor Ronaldo está agachado, ao centro. O autor está de pé, logo atrás dele.

Como me disse um dos meus professores: “o treino começa a se revelar para você depois de aprender a sequência”. A partir deste momento a prática se baseia mais na experiência de mover e sentir o corpo. É neste contexto que aprendemos a sentir o Qi. Esta percepção se manifesta primeiro como sensações no nosso próprio corpo.

Mas é um processo lento. Leva alguns anos até integrar todos os conhecimentos e experiências no nível necessário para conseguir ensinar adequadamente. E, além de praticar muitos anos, é importante a orientação de uma pessoa qualificada, mais experiente.

Pois no passado, treinava-se todos os dias com um mestre, ano após ano. Um belo dia, chegava um momento que o mestre promovia o estudante a instrutor, para auxiliar na transmissão dos conhecimentos. E com mais maturidade, poderia então partir para abrir sua própria escola. Mas mesmo entre praticantes avançados/as, nem todo mundo se aprofundaria no caminho a ponto de se tornar mestre.

Treino de Qigong, seminário com mestre Liu Chihming, São Paulo, 2000. O autor é a segunda pessoa à esquerda. (foto da organização do evento).

Que alternativas temos no mundo contemporâneo? A formação na era do imediatismo

Nas nossas vidas urbanas agitadas, cheias de ocupações, atividades e distrações, como começar este caminho? Para começar, encontre tempo em sua agenda conturbada. Pelo menos uma aula por semana é um bom começo. E alguns minutos por dia é uma necessidade, se você deseja progredir.

Tenho uma sugestão, se você sente que não tem tempo. Quem sabe você pode substituir o tempo perdido com distrações excessivas, por alguns minutos de foco e relaxamento. Como resultado, você vai dispor de mais energia para empregar no que realmente importa.

Mas tome cuidado para não cair na armadilha da produtividade infinita. Nem tudo é trabalho, lucro, performance. O momento para treinar uma prática taoista é um momento para o cultivo de si. Mas, paradoxalmente, não é para produzir um eu maior e melhor, justo o contrário. Praticamos Taijiquan, Qigong, meditação para recuperar a capacidade de relaxar. Esta é uma capacidade natural, mas muitas vezes perdida devido a uma vida muito estressante. Quanto a isso, um fator particularmente gerador de estress é a necessidade de cultivar, defender e fortalecer nossa identidade pessoal. A necessidade de ser alguém, alguém especial, é uma das grandes fontes de sofrimento. E com o aumento da individualização no mundo atual, esse sofrimento se tornou ainda maior.

Também praticamos para recuperar nossas energias. É preciso manter o equilíbrio entre atividade e repouso, ou em termos taoistas, movimento e quietude, Yang e Yin. A prática correta deve revigorar, em vez de cansar, ao contrário da ideia convencional de “fazer exercício”. E acima de tudo, quando o corpo está em equilíbrio, é mais fácil ter uma mente calma.

Praticando Baguazhang com mestre Liu Chihming e professor Ronaldo Fernandes, São Paulo, 2000. (foto da organização do evento).

Como conciliar a formação tradicional nas práticas taoistas na era do imediatismo?

Para a maioria das pessoas, talvez não seja mais possível praticar com um mestre dia após dia, por anos a fio. Ainda assim, tendo encontrado uma fonte confiável, é possível aprender com ela. Basta fazer os devidos ajustes na nossa rotina e na nossa ambição por resultados mirabolantes e rápidos.

Encontre espaços em sua rotina, para fazer das práticas taoistas de sua preferência, um hábito diário, nem que seja por alguns minutos. Faça aulas regulares com uma pessoa qualificada, que aprendeu de um mestre autêntico e tem paciência e generosidade para responder de forma clara às suas dúvidas e dificuldades. Treine individualmente para se apropriar dos treinos, memorize as técnicas, repita e aperfeiçoe os movimentos, descubra os seus efeitos com sua experiência. Pois o benefício sentido é o melhor incentivo para continuar a praticar.

É fundamental ter um/a professor/a de referência, que pode acompanhar o seu desenvolvimento, fazer correções e tirar dúvidas. Mas afora isso, é possível aprender com outras pessoas, inclusive utilizar as novas tecnologias de aula ou curso online.

Depois de ter amadurecido sua própria prática e colhido seus frutos, aí então é o melhor momento para compartilhar este tesouro com outras pessoas. Converse com sua professor ou professora, para avaliar se já pode ensinar o que aprendeu.

Se deseja seguir este caminho, vale a pena fazer uma formação para instrutor/a, ou passar pela avaliação certificada por sua escola.

A minha própria experiência aprendendo as práticas taoistas

Como aprendi as práticas taoistas na era do imediatismo? O começo da minha caminhada com as práticas taoistas também foi marcado pela era do imediatismo, só que por outro motivo. Em 1998, estava em trabalho de campo antropológico na escola taoista de mestre Liu Pai Lin em São Paulo. Minha metodologia era participativa e incluía aprender o Taichi e outras práticas como parte do processo de minha etnografia. Eu era um sujeito jovem, ambicioso, experiente nas artes marciais e em dedicação exclusiva. Resultado: aprendi a sequência do Tai Chi de 37 movimentos em apenas 30 dias. E fiquei orgulhoso do meu feito. Ainda não tinha entendido que o verdadeiro aprendizado é para vida toda!

O que começou como pesquisa antropológica virou, contudo, um caminho de vida. Assim, nunca mais parei de treinar. Aprendi novas técnicas e sequências, ano após ano. Em primeiro lugar, para resistir ao estresse e desgaste da vida de professor. E anos mais tarde, porque compreendi que, além dos benefícios óbvios para saúde, havia muito mais. Era uma aprendizado sobre o viver.

Para continuar a aprender e aprofundar o que já sabia, foi um longo percurso. Fiz aulas particulares (de taichi, espada, Baguazhang, meditação), frequentei seminários com os mestres sobre práticas e filosofia taoista e cursos de formação (Taichi Pai Lin, Espada Taichi, I Ching Taoista), fiz as provas de certificação para instrutor de Taijiquan e Baguazhang. Em 2015, fui a Taiwan receber uma iniciação para tornar-me oficialmente discípulo da linhagem Kunlun, uma das várias linhagens do mestre Liu Pailin. Ao todo, foram mais de 20 anos de aprendizado, estudo e prática para poder me considerar um instrutor da minha escola.

Participantes do seminário com mestre Liu Chihming, São Paulo, 2017. O autor está sentado próximo ao canto inferior esquerdo. (foto da organização do evento)

O Tao como vida em relação

“Tao é Taichi, e Taichi é harmonia de yin e yang”. Essa afirmação tradicional tem uma consequência no entendimento do caminho taoista como a unidade de uma compreensão sobre a vida e de uma arte de viver. A vida é percebida como um jogo dinâmico de aspectos complementares, opostos, alternados, sempre organizados em relações. E o bem viver seria um exercício de sensibilidade e ajuste às condições e relações do momento, visando o equilíbrio, a fluidez e a ação eficaz com o mínimo de desgaste. Compreendendo corretamente o funcionamento da natureza, ou do Céu e da Terra, e desenvolvendo pela prática uma sintonia com esse funcionamento, a vida fica mais simples. Assim, “filosofia” e “treinamento” taoista não são coisas separadas, mas os dois lados do caminho. Em uma época de tantas experiências de solidão, isolamento e excessivo individualismo, talvez os antigos sábios chineses tenham algo a nos ensinar…

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Certamente, há todo uma dimensão social nessas experiências, uma desagregação do espaço público, o desmantelamento de políticas de bem estar e seguridade social, associados a uma desregulamentação que favorece o mercado e prejudica as vidas das pessoas comuns, a ausência de projetos para o bem comum, tudo isso associado a uma excessiva individualização nos ambientes urbanos globalizados. Então, a solidão está associada uma instabilidade nas condições sociais, a um enfraquecimento da profundidade e diversidade de vínculos significativos e, ao mesmo tempo, a um aumento da importância individual e da necessidade de visibilidade e popularidade.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

No entanto, se voltamos à concepção taoista sobre a vida, nunca estamos de fato separados/as do mundo nem das demais pessoas. Estudando a filosofia taoista e a medicina tradicional chinesa, podemos nos dar conta disso em um nível intelectual. Praticando meditação e qigong podemos nos dar conta disso pela experiência vivida, de conexão com o mundo à nossa volta e seus habitantes. Um corpo vivo é feito dos mesmos materiais que a natureza. E é sua permeabilidade ao ar, à água, aos alimentos, ao que torna a vida possível. A metáfora ocidental fundadora da identidade pessoal – eu como algo dentro, enquanto o mundo está fora – induz a um erro de percepção, com consequências existenciais. O mundo não está fora de nós, nós sempre estivemos dentro do mundo. E os seres humanos vivem graças às relações: não teríamos chegado à idade adulta sem cuidados, ajuda e aprendizagem oferecida por outras pessoas; a maioria de nós não poderia sequer sobreviver sem o trabalho e os conhecimentos de outras pessoas. Resumindo, assim como não poderemos viver se destruirmos o ambiente natural, a vida também não é possível sem solidariedade e cuidado mútuo. Ou até é possível, mas às custas da nossa sanidade e até mesmo de nossa humanidade.

Certamente direitos e liberdades individuais são um ganho, mas se tornam uma maldição quando não vem acompanhados de responsabilidades coletivas e respeito aos mesmos direitos e liberdades das demais pessoas. A convivência íntima se torna uma tirania e as relações sociais se tornam formas de exploração e opressão.

O que aprendi de meus mestres é que o cuidado de si, o cultivo da vitalidade e da serenidade, a conquista da saúde e da longevidade, o despertar da sabedoria, é parte do processo de aprender a cuidar dos/as outros/as. É porque temos equilíbrio que podemos ser uma presença benéfica. Só tem sentido uma vida longa se com ela podemos beneficiar nossas comunidades e partilhar conhecimentos e experiência acumulada.

O Tao e as emoções

Estar vivo é ser capaz de sentir, perceber e tomar decisões. Logo, as emoções são parte integrante da vida. Podemos entendê-las, num sentido prático, como uma disposição para a ação e, num sentido mais psicológico, como as cores da nossa paisagem subjetiva. Para a civilização chinesa clássica, cada conjunto de emoções é expressão do de um dos cinco movimentos (wǔxíng 五行): madeira, fogo, terra, metal, água. Em si, portanto, isso é natural. No entanto, quando as emoções se tornam excessivas na sua intensidade e duração, tirando-nos do nosso eixo e centro, tornam-se para a medicina chinesa um fator patogênico interno, simultaneamente causa e sintoma do desequilíbrio do , que pode ficar estagnado ou fluir em direções contrárias à circulação normal do organismo saudável, além de apresentar condições de excesso ou deficiência, onde deveria haver proporção e equilíbrio dinâmico. No princípio, o desequilíbrio é sutil e relativamente simples de corrigir, mas quando se torna uma condição repetida ou persistente, que segue sem medidas corretivas, pode evoluir para enfermidades graves e difíceis de tratar. Em nossos tempos de incerteza, instabilidade, velocidade e agitação, uma relação sábia com as emoções se torna crucial.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Não é que a agitação e a angústia sejam algo novo, pois o contrário é testemunhado por Laozi, no poema 12 do Dàodéjīng. Mas, como disse em outras postagens, isso chegou a um novo patamar no mundo contemporâneo globalizado. Uma característica das sociedades urbanas contemporâneas é a coexistência paradoxal de um estado de insensibilidade/apatia coletiva e de uma excessiva agitação. Resumindo, é como se o excesso de estímulos sensoriais e exigências de desempenho, sem falar dos medos e angústias coletivas acabassem por nos embrutecer e dessensibilizar. Consequentemente, e como compensação, a busca por sensações cada vez mais intensas, no prazer, no lazer, no entretenimento. Além disso, é claro, também a tendência ao manejo dos estados de humor por meios farmacológicos. Não é casual o aumento das demandas coletivas por intensidade: o aumento estatístico do consumo de substâncias psicoativas legais e ilegais; a mudança na estética dominante na indústria do entretenimento para uma narrativa cada vez mais rápida e para uma expressão mais gráfica/explícita de conteúdos de violência e crueldade; a popularização dos esportes de risco e aventura entre pessoas que tem condições objetivas de vida marcadas pela segurança; o aumento do número de decibéis nos grandes espetáculos musicais; a indústria dos aditivos químicos realçadores de sabor; dos odores artificiais para perfumar corpos e ambientes; as promessas da indústria do sexo de prazeres novos e mais intensos; etc. Um mundo mais vertiginoso e mais intenso. E quando a intensidade se torna insuportável, a demanda por anestesia: analgésicos, reguladores de humor, medicação para dormir.

A alegoria taoista clássica: saboreando o Vinagre.

Um aspecto do caminho taoista como arte de viver, é o governo de si. Isso não tem nenhuma relação com ideias de autocontrole, mas sim, com aprender a favorecer os mecanismos naturais de autorregulação do corpo, manter o coração sereno diante dos acontecimentos e cultivar a simplicidade. Embora se diga que o cultivo é lidar com o mundo real sem agitar o coração, isso não tem nada a ver com insensibilidade ou indiferença. Ao contrário, é desenvolver uma sensibilidade inteligente, que nos permite reagir de forma apropriada ao que as situações da vida demandam. A prontidão para uma ação rápida e eficaz, que não se confunde com uma reação impulsiva. Estar vivo/a é ser capaz de sentir, desfrutar as belezas da vida, sem avidez nem compulsão, comover-se com o sofrimento alheio, mas sem sentimentalismo ou desespero. Daí a alegoria clássica taoista, ainda que um tanto tendenciosa, sobre as três grandes correntes civilizatórias da China clássica: taoismo, budismo e confucionismo, representadas por seus respectivos fundadores. Ao provar o vinagre, apenas Laozi sorri. A vida tem suas características naturais, e isso não é bom nem ruim.

Tao, natureza e cultura

Uma das traduções mais frequentes para Tao (Dào 道) é caminho ou, mais precisamente, “o caminho natural”. E o taoismo seria, portanto, uma tradição que ensina a seguir o Tao, portanto, a estar em harmonia com a natureza. Mas de que estamos falando quando usamos os termos “natural” e “natureza”?

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.
Pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor, setembro 2018.

Ao falar em natural, ou natureza, num sentido taoista, a primeira imagem que surge é a alternância de yīn e yáng, observável nos ciclos do mundo natural: dias e noites, movimentos dos astros, fases da lua, estações do ano, marés. Isso também é observável nas formas pelas quais animais e plantas respondem a esses ciclos. E no próprio corpo humano: a grande circulação diária do pelos doze canais ordinários, correspondentes aos órgãos e vísceras, e o próprio ciclo de vida, do nascimento à morte, conforme descrito pela medicina tradicional chinesa. Baseada numa longa observação desses e outros processos durante muitas gerações, a tradição taoisa desenvolveu estratégias para manter o equilíbrio de yīn e yáng no ser humano, adaptando-se de modo inteligente às circunstâncias do mundo natural, em vez de se prejudicar por causa delas. O primeiro sentido da expressão “caminho natural” é bastante literal: o modo como as coisas funcionam na natureza, seus ciclos e fluxos. E estar em harmonia com a natureza é, portanto, adequar o modo de vida a esses processos. Por exemplo, quanto a que tipos de treinamentos fazer em que horário do dia ou época do ano.

Mas será que esse amor à natureza, o valor do natural, precisa ser inimigo dos desenvolvimentos tecnológicos? Ao longo da história da China, justamente por seu gosto em observar a natureza, muitas inovações técnicas foram desenvolvidas por taoistas. Aqui, basta pensar nos desenvolvimentos significativos no campo da medicina chinesa, uma das tradições médicas mundiais reconhecidas pela OMS. Ou seja, o respeito à natureza não está em contradição com o desenvolvimento técnico. Por outro lado, não se trata de uma narrativa cosmológica do privilégio humano sobre os outros seres, como a que caracterizou a tradição judaico-cristã e seus desdobramentos na modernidade, não apenas em nações ocidentais, mas pelo mundo afora.

Foto de satélite dos incêndios na Amazônia visíveis do espaço em 13 de agosto. Fonte: Nasa Earth Observatory.

Num momento como o atual, em que a relação predatória com o meio ambiente chega a níveis trágicos e catastróficos, como é ilustrado pela crise climática global, pelas toneladas de plástico poluindo os oceanos e mais recentemente pelo incêndio devastador na floresta amazônica, é preciso questionar as bases dos modelos de desenvolvimento e de relação com a natureza que têm movido esse movimento coletivo insano e suicida nas sociedades globalizadas e, especificamente, em nosso país. O descaso com a vida do planeta, inclusive com as vidas humanas, movido por uma ganância irracional, produziu uma infraestrutura de exploração que funciona de forma automática na geração de lucro, sem limites éticos nem preocupação com danos e consequências, uma verdadeira máquina de autodestruição. O que está em jogo é o ar, a água, o solo, os animais e plantas que dividem o planeta conosco, nossa própria sobrevivência, ameaçada por um processo que trouxe consigo uma crescente desigualdade econômica. Recursos vitais que pertencem a todos os seres estão sendo esgotados e destruídos para o enriquecimento de poucos e a pobreza de muitos.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.

Neste sentido, dar ouvidos a outras vozes, ao saber acumulado de outras civilizações pode justamente inspirar uma atitude existencial mais respeitosa e abrangente com o mundo natural do qual fazemos parte, sem uma oposição entre o mundo humano e a natureza. Foi justamente a suposição de uma supremacia humana que tem justificado moralmente a devastação do meio ambiente, a extinção de outras formas de vida, a perturbação do delicado equilíbrio entre os diversos seres. Não se trata de negar o desenvolvimento tecnológico, mas de orientá-lo desde uma perspectiva de cuidado com a vida, de harmonia com a paisagem, de solidariedade entre seres humanos, fazendo uso dos recursos de uma forma mais sensata, que atente às gerações futuras, a reverter os danos causados até o presente e a gerar formas de extrair os recursos necessários sem exaurir a Terra.

Aqui faço essa reflexão inspirado pelas gerações de contemplativos taoistas que observaram com admiração o Céu, a Terra e os dez mil seres, no seu funcionamento cíclico, e buscaram meios para habitar o cosmo em harmonia com o fluxo da vida. Mas do mesmo modo, podemos buscar inspiração na sabedoria tradicional dos povos da floresta em nosso próprio país, que travam uma dura batalha pela sobrevivência.

O Tao e o corpo contemporâneo

As preocupações com saúde e longevidade na civilização chinesa estão documentadas pelo menos desde o primeiro capítulo das Questões Simples (素問), livro que compõe o Clássico da Medicina Interna do Imperador Amarelo (黃帝內經): nele, Huangdi, o Imperador Amarelo, um dos soberanos míticos fundadores da civilização chinesa, pergunta ao seu conselheiro médico, Qibo, porque as pessoas no passado viviam até os cem anos com saúde enquanto “atualmente” (no terceiro milênio a.C.) vivem apenas algumas décadas e adoecem frequentemente. Desde os primórdios da tradição taoista, uma das expressões de um estado de equilíbrio com a natureza foi viver bem, o que inclui a saúde, vitalidade e longa vida. Talvez este seja um dos aspectos que permitiram esses conhecimentos terem um espaço no mundo contemporâneo globalizado. No entanto, aqui a preocupação com o corpo atingiu um novo patamar, uma verdadeira obsessão com a perfeição corporal…

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Obviamente, generalizações de larga escala falam mais de uma norma ou prática cultural, ou de uma tendência sistêmica que pode ser percebida e descrita. É uma estratégia útil para perceber certos fenômenos, mas não esgota as particularidades e contradições concretas do mundo.

“Decay”, foto de Julia Wang , licenciada para uso público por Creative Commons, CC BY-NC 4.0

Ainda assim, o que se pode concluir de diversos estudos das ciências sociais sobre o tema do corpo nas sociedades globalizadas contemporâneas é a emergência de uma nova “cultura somática” ou até mesmo uma espécie de “corpolatria”. Embora a justificativa seja a saúde, o que está em jogo é a boa forma, ou seja o valor da aparência corporal em conformidade com certos ideais estéticos quase inalcançáveis, como um indicador do caráter do sujeito. O “corpo perfeito”(sic.) se torna um objetivo em si, a ser alcançado por meio de uma combinação de fitness, dieta, recursos farmacológicos e modificações cirúrgicas. E, claro, a exibição dessas conquistas nas redes sociais, por meio de imagens digitalmente corrigidas. Nesse sentido, essa norma corporal é a contraparte da subjetividade contemporânea descrita na postagem anterior, marcada pelas mesmas angústias em torno da visibilidade.

Detalhe de pintura em papel, da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Na contracorrente disso, o corpo na tradição taoista não tem valor como base para uma identidade pessoal, porque essa é vista como fonte de preocupação e desgaste. Em vez disso, cultiva-se o corpo como um “pequeno universo”: suas estruturas e as substâncias que o compõem são as mesmas do mundo. Assim, o cultivo visa colocar-nos em harmonia com o Tao, com a natureza. E disso decorre a saúde e a longevidade. Os cinco movimentos (fogo, água, madeira, metal e água) que compõem o corpo, estando em harmonia, são a base para um equilíbrio existencial. Esse equilíbrio facilita a prática contemplativa, mas também relações harmônicas com o mundo. Por isso, a civilização clássica chinesa entendia que uma pessoa sábia, apenas com sua presença, podia influenciar beneficamente os seres à sua volta. O Clássico da Pureza e da Serenidade (清靜經) diz: “embora se fale em realizar o Tao, não há nada a atingir. Simplesmente os seres começam a se transformar por si mesmos”.

O Tao e a subjetividade contemporânea

Um texto antigo como o Daodejing (道德經) já mencionava o apego a uma identidade sólida e a busca da fama como uma fonte de angústia: “Prestígio é inferior/ Ao obtê-lo ficamos assustados / ao perdê-lo ficamos assustados”(poema 13). No entanto, talvez em nossa época, o desejo de ser visto/a e admirado/a chegou a um novo patamar. E esse é o tema de hoje.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Um dos aspectos intrigantes do mundo contemporâneo é como novas condições sociais decorrentes dos processos globais favoreceram o surgimento de certo tipo de subjetividade coletiva. Além do aumento da velocidade, da fluidez, da instabilidade e consequentemente da imprevisibilidade da vida das populações urbanas globais, como vimos em uma postagem anterior, o desenvolvimento recente das tecnologias de comunicação tornou possível o acesso a uma quantidade e diversidade de informação nunca antes vista na história da humanidade, mas também um nível de exposição da intimidade e da vida cotidiana em escala inteiramente nova.

“Trailing lights”, foto de pranab.mund , licenciada por Creative Commons CC BY-SA 2.0

Isso tornou possível a promessa de uma rápida ascensão de pessoas comuns à fama e à visibilidade pública, particularmente por meio das mídias sociais, como apontou a pesquisadora argentina Paula Sibilia. E testemunha a passagem de uma subjetividade da interioridade a uma nova subjetividade exteriorizada. Antes da popularização da internet e da miniaturização das tecnologias multimídia em dispositivos portáteis, não só havia uma clara distinção entre os emissores das mensagens (mídia impressa, rádio, TV, cinema) e o público receptor (leitorxs, ouvintes, expectadorxs), como também havia nas sociedades ocidentalizadas uma noção de sujeito baseada na ideia de uma interioridade psicológica, de pensamentos e sentimentos, que definiam o indivíduo naquilo que tinha de mais precioso e único. Hoje são bilhões de pessoas que constroem seu senso de identidade online, em perfis de redes sociais, utilizam-nos para obter informação e se entreter, e nelas mantém uma parte significativa de seus contatos sociais. Não é que a vida off-line esteja totalmente desconectada da vida online, mas também não corresponde a ela totalmente. Mas assistir a vida passar pelas postagens de amigxs e conhecidxs, principalmente para quem anda triste ou desesperadx, pode dar a impressão que apenas nós não vivemos vidas maravilhosas, com relacionamentos perfeitos, viagens memoráveis, amizades profundas, sucesso profissional, etc. No entanto, aqui e ali, notícias da depressão de pessoas famosas ou do fim trágico e violento de relacionamentos amorosos aparentemente perfeitos rompe momentaneamente a ilusão.

Levada ao extremo, a subjetividade contemporânea globalizada pode ser imaginada como uma superfície refletora sobre a qual a intimidade de cada pessoa se expõe pública e voluntariamente . A metáfora dominante em séculos passados, da identidade pessoal como um núcleo profundo e íntimo, “um eu dentro mim”, inacessível aos demais, vai se tornando lentamente obsoleta. É como se o dever de “publicar ou perecer”, que pesava sobre escritores e mais recentemente sobre cientistas, agora pesasse sobre as pessoas comuns no manejo diário de seus perfis nas redes sociais, como verdadeiras empresárias e empresários de si. Aparentar vai se tornando o valor supremo: o dilema não é mais sobre ser ou ter. Hoje em dia, basta parecer. De certo modo, o número de curtidas e visualizações se tornou um índice de valor e sucesso, e sua ausência, fonte de angústia. E em termos de norma cultural, a aparência digital e a aparência corporal se sobrepõem, como bens que temos o dever de administrar, com investimentos de tempo e dinheiro. Não é por acaso que um tema comum de exibição digital são as imagens de nossos corpos.

detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

O centro do problema é a ideia de que investir no eu é a base da felicidade. A tradição taoista ensina justamente que é a crença em uma identidade pessoal sólida que é a raiz da preocupação e da insatisfação. A vida é fluxo, mudança, naturalmente, sem que tenhamos que buscar isso deliberadamente por meio de uma atualização (upgrade) incessante. E por outro lado, não é preciso esforçar-se para destruir o eu, já que um eu sólido e imutável é uma ilusão. Já faria grande diferença em nosso cotidiano se pudermos relaxar a tensão que deriva do nosso senso de importância própria e levar-nos menos a sério. As práticas meditativas podem nos ajudar a reconhecer isso por meio da experiência e não apenas pelo raciocínio. Como ensina o Clássico da Pureza e da Serenidade (清靜經), em um estado de serenidade, é possível observar mente, corpo e objetos e finalmente perceber que são vazios, no sentido de serem processos e não “coisas” sólidas.

O Tao e o consumo contemporâneo

Continuando o diálogo sobre o mundo contemporâneo, o tema de hoje é o consumo. Vários autores definiram as sociedades globalizadas atuais como sociedades de consumo. Essa ordem de coisas tem algumas consequências: a exaustão dos recursos naturais e a produção de uma quantidade imensa de lixo; o aumento da porcentagem da população mundial excluída dos direitos e serviços básicos, a formação de um novo tipo de subjetividade consumista. “Os consumidores são acima de tudo acumuladores de sensações“, como afirmou o sociólogo Zygmunt Bauman. Poderíamos dizer que um dos motores da sociedade de consumo é o desejo individual incessante. O contentamento não é bom para os negócios, pois um consumidor satisfeito não é levado a consumir mais. Óbvio, essa constatação não se aplica a bilhões de miseráveis e excluídos da globalização, desprovidos dos recursos e confortos básicos, mas é sobre saber se contentar quando se tem o suficiente, a virtude taoista da simplicidade, ou moderação.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016

Para Laozi, justamente o excesso de desejos é uma das raízes do infortúnio, como é descrito nos poemas 44 e 46 do Daodejing. Por isso, o elogio à simplicidade (no poema 67), também traduzida como moderação. Não é que não deveríamos desfrutar a vida, o problema são os excessos e o desperdício de recursos (justamente o que caracteriza o consumo, a lógica de jogar fora o que ainda é útil e está em bom estado, para continuar a consumir, de comer e beber quando já nos saciamos). Não faz sentido recomendar uma atitude ascética como alternativa ao consumismo, em tempos de obsessão pelo prazer e pelo bem estar. De fato, bastaria ter algum senso de proporção, exercitar algum contentamento.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.
Detalhe da mesma pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.

“As cinco cores tornam os olhos humanos cegos/ As cinco notas tornam os ouvidos humanos surdos/ Os cinco sabores tornam a boca humana insensível/ Carreiras de caça no campo tornam o coração humano enlouquecido/ Os bens de difícil obtenção tornam a caminhada humana prejudicada” (Daodejing, Poema 12). Esses versos antigos podem nos lembrar a cena do consumo contemporâneo: em busca de novas sensações, prazeres e experiências, vagando sem descanso. Fáceis de se entediar, incapazes de tolerar pequenas frustrações, os indivíduos consumidores vivem uma vida de conforto aparente, e insatisfação de bastidores.

O excesso de estímulos é cansativo e deixa o coração agitado. Na agitação, perdemos a sensibilidade. Nas grandes metrópoles, ficar insensibilizado diante da quantidade de imagens, do ruído excessivo, dos odores da poluição, do ritmo nervoso, das frustrações, relações ásperas e tensões diárias, é quase uma resposta de sobrevivência, mas que a longo prazo pode nos embrutecer e adoecer. De tempos em tempos, coisas simples, como um pouco de sol e ar puro, uma caminhada no parque, um banho de cachoeira, exercícios ao ar livre, olhar o céu, assim como um contato humano autêntico, podem nos devolver o estado de relaxamento que é necessário para ter alguma sensibilidade. E essa sensibilidade é necessária para desfrutar a vida.

O Tao e a exaustão contemporânea

Na postagem de hoje, damos continuidade ao diálogo entre a tradição taoista e o mundo contemporâneo. Já há algumas décadas o estresse e as doenças dele decorrentes foram consideradas um dos grandes problemas mundiais de saúde pública nas grandes cidades. Mais recentemente, a Organização Mundial da Saúde lançou um alerta sobre os danos causados pelo estresse no ambiente de trabalho. Não é que a tensão e a exaustão fossem desconhecidas de nossos ancestrais. Em sua análise sobre a origem das doenças, o excesso de trabalho foi considerado pela medicina tradicional chinesa como um fator de adoecimento, por desgastar os recursos do organismo, esgotando precocemente o e o jīng. Quem deseja viver muito deveria buscar um equilíbrio entre atividade e repouso, não simplesmente entre trabalho e lazer. Essa advertência é uma aplicação elementar da filosofia yīn-yáng ao manejo da saúde e o cultivo da vida. Para que haja equilíbrio, onde há movimento precisa haver também quietude, em uma saudável alternância, um tàijí ☯.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016

No entanto, em nossos tempos de aceleração constante, de movimento desenfreado, essa questão se tornou mais aparente e urgente. Hoje em dia, são muitos os apelos para a corrida desenfreada: incontáveis estímulos, tarefas, conexões, informações, atividades, desejos de consumo, imperativos da sobrevivência. Agitadxs e nervosxs, acabamos ficando exaustxs, por excesso de trabalho, mas também na tentativa de aliviar a tensão, nos momentos de lazer. Relaxar, uma resposta natural do organismo, que pode ocorrer periodicamente a qualquer momento, tornou-se um luxo, algo que necessita de todo um aparato técnico para ser obtida por alguns instantes. Uma civilização do excesso. Mas onde queremos chegar, correndo assim? Adoecemos e envelhecemos precocemente, antes de poder desfrutar dos resultados de nossos esforços. Como já dizia, repetidas vezes, o mestre Pailin: “pessoas de meia idade, andem devagar” (a caminho do cemitério)!

A população urbana tem desaprendido o valor do silêncio, do repouso, da contemplação. A vida contemporânea é pautada por um verdadeiro horror à quietude, ao espaço vazio, à pausa. E não é simplesmente insensatez individual, mas uma insanidade coletiva, sistêmica. É um imperativo dessa entidade metafísica insaciável, o Mercado: trabalhe, produza, enriqueça, lucre. Mas é também um hábito profundamente entranhado em nossos corpos. Mesmo quando deixamos o ambiente de trabalho, seguimos em uma atividade incessante, nem que seja entreter-se na tela de um dispositivo eletrônico. E assim avançamos, dia a dia, à beira do colapso. Não são apenas trabalhadores e trabalhadores exploradxs que vivem assim, mas também seus patrões. De fato, é preciso estar numa posição muito privilegiada no mundo profissional para poder recusar trabalho, estabelecer limites, desfrutar de horas suficientes de descanso e lazer. Não é uma questão apenas de discernimento individual e sabedoria, mas de condições sociais objetivas.

O filósofo Byung-Chul Han (1959-)

O filósofo Byung-Chul Han descreve a situação atual em seu livro “Sociedade do Cansaço“. Vivemos em uma sociedade do desempenho, formada por “empresários de si mesmos”(p.23), individualmente responsáveis por seu próprio sucesso ou fracasso, que naufragam na depressão quando não conseguem cumprir a obrigação de ter sucesso. Essa exigência constante de sucesso, visibilidade, produtividade é que nos leva à exaustão. O excesso exaustivo de desempenho tornou-se sinônimo de investir na própria carreira e até na própria vida, uma forma de autoexploração. Daí a epidemia de depressão, como “cansaço de fazer e de poder”(p.29), numa sociedade em que é preciso poder tudo. O excesso não está somente no trabalho, mas também nos estímulos, informações e desejos. Daí, uma atenção dispersa, incapaz de contemplar, que se entendia com facilidade e odeia o tédio. Han faz um elogio à contemplação profunda e ao lento, que embora não se refira às práticas taoistas e sua arte da existência, bem que podem nos servir aqui: “Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. […] No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas” (p. 36).

Detalhe de pintura da exposição temporária “imortais”, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Séculos antes da crise civilizatória atual, a tradição taoista já havia descoberto o valor da contemplação, cultivada na imobilidade do corpo por meio da meditação, e nos movimentos suaves e lentos das técnicas que hoje chamamos de qìgōng e tàijíquán, mas cujos princípios são muito mais antigos que esses nomes modernos. Silêncio e quietude, não como conceitos abstratos, mas como experiências saboreadas com o corpo. A serenidade não só como aspecto de um caminho contemplativo, se preferirem espiritual, mas como parte integrante do cultivo da vida, da boa saúde, aqui compreendida como equilíbrio dinâmico, não como justificativa para a obsessão pela boa forma.

O Tao e as angústias contemporâneas

A postagem de hoje aborda um outro aspecto do diálogo possível da tradição taoista com os dilemas do nosso tempo. Obviamente, os textos clássicos antigos não disseram nada específico a respeito do momento atual, pois foram escritos séculos antes, por pessoas que nunca vivenciaram essas condições históricas e culturais. No entanto, a riqueza desses textos, de sua interpretação por praticantes vivxs é o que torna os clássicos úteis. Clássicos, aqui, são aqueles textos que contêm o termo jīng (經) em seu título. Alguns deles tem sido citados nesse blog com frequência, como o “Clássico de Medicina Interna do Imperador Amarelo” (Huángdìnèijīng 黃帝內經), o “Clássico das Mutações” (Yìjīng 易經) ou o “Clássico do Caminho e da Virtude” (Dàodéjīng(道德經).

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016
Zygmunt Bauman (1925-2017)

Algumas análises sobre o mundo contemporâneo apontam para a instabilidade da condições sociais e suas consequências nas vidas individuais. Por questões de espaço, não vou me estender aqui sobre isso. Mas talvez um dos autores mais conhecidos seja o sociólogo Zygmunt Bauman. Ele descreveu o mundo contemporâneo das sociedades globalizadas como um momento de instabilidade, velocidade, fluidez, consequentemente de imprevisibilidade e precariedade. Daí o termo modernidade líquida, a passagem de uma sociedade da estabilidade, da ordem e da produção, para uma nova configuração, de instabilidade, desregulamentação e consumo: a liquefação da modernidade. Um mundo com mais possibilidades, mas ao mesmo tempo, com mais desamparo: o grande risco é o de se tornar redundante. Por isso, ao analisar as angústias do início do século XX, descritas por Freud em 1930, Bauman constata que as angústias atuais são outras: mais associadas à insegurança e ao excesso de referências contraditórias do que ao excesso de ordem e à repressão. Não é por acaso que as formas predominantes de sofrimento psíquico atual – particularmente no campo da depressão, ansiedade e pânico, por contraste com a histeria e a neurose da época de Freud – apontem para a falta de um terreno sólido onde se apoiar, de uma direção segura a seguir e dos recursos para tomar decisões eficazes. Paradoxalmente, com a crise das instituições que deram o tom da modernidade, e a consequente insegurança e desorientação, os discursos fundamentalistas de todo tipo tenham se tornado tão sedutores: a promessa de segurança no interior de uma comunidade de iguais, deixando do lado de fora a diferença que amedronta e incomoda. Mais recentemente, não é casual o crescimento das formas mais fundamentalistas de cristianismo no Brasil e a ascensão de um novo conservadorismo marcado por discursos de ódio. E por outro lado, a popularidade de discursos individualistas ingênuos, bem exemplificados pela explosão do coaching, como se nosso sucesso ou fracasso, felicidade ou infortúnio, dependesse exclusivamente de nossa vontade, e como se nossos destinos coletivos não estivessem interligadas.

E como a filosofia e o modo de vida taoista podem oferecer alternativas a esse cenário? Parte da minha resposta se refere ao fato de praticar o Tao ser uma arte de viver. Em primeiro lugar, sendo uma filosofia do movimento, podemos entender que nunca houve nada sólido a que se agarrar: a mudança é a própria característica definidora da vida. Então nunca estivemos no controle, temos apenas possibilidades relativas de nos posicionar diante de situações que não controlamos. Mas podemos aprender a fluir inteligentemente de acordo com as circunstâncias, desenvolvendo a sensibilidade e a lucidez. Em segundo lugar, as três virtudes taoistas básicas – amorosidade, simplicidade e “não querer ser o primeiro sobre a terra” – descritas por Laozi, podem ser um antídoto aos venenos contemporâneos da relação predatória e consumista com os outros e à ambição desmedida que iguala o valor pessoal ao desempenho. Há milênios que essa referência fundante do taoismo recomenda cuidar da terra e de seus habitantes, seres humanos e não-humanos; desfrutar dos prazeres sem excesso e não desperdiçar os recursos; evitar a rivalidade e a competição.

Detalhe de pintura da exposição sobre os imortais, acervo temporário do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Feitos com constância, os treinamentos podem minorar o estresse e auxiliar a recuperar a sanidade nesse mundo caótico. Se conseguimos relaxar um pouco, temos condição de estar mais sensíveis ao momento presente, mais disponíveis para fazer contato com as outras pessoas, menos predispostxs a adoecer, sofrer acidentes ou iniciar conflitos desnecessários. E quando mesmo assim entramos em desequilíbrio, a medicina tradicional pode apoiar a capacidade natural de nosso corpo de se autorregular.