O Elogio à inutilidade

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Esta é mais uma postagem sobre taoismo e mundo contemporâno. A pergunta que desejo responder é: como a crítica anti-utilitarista do taoismo pode ser relevante nos dias de hoje? Em outras palavras, qual o benefício de ser inútil? O elogio à inutilidade é uma conversa sobre o anti-utilitatismo taoista e sua relevância hoje. Revisitaremos, como imagem chave, a “árvore inútil”de Zhuangzi.

Se preferir assistir em vídeo, está aqui. 😉

Por que é preciso saber ser inútil?

Em tempos de ideologia do empreendedorismo, de obsessão pela atividade incessante, pela produtividade, pelo excesso de informação, é preciso fazer um elogio à inutilidade. Em primeiro lugar, o ensinamento do Tao e as recomendações básicas da medicina chinesa para a saúde apontam a necessidade de equilíbrio entre atividade e repouso, ou entre movimento e quietude.

O excesso de estímulos e demandas

Um dos grandes males contemporâneos se traduz como inquietude em todos os níveis. Tanto o trabalho quanto o lazer se caracterizam hoje pela exigência de uma atenção dispersa multitarefa. A conectividade incessante das tecnologias portáteis de comunicação e informação agravaram essa situação. Por causa dela, estamos diante de uma demanda constante de interação. Se não desligarmos o celular, podemos estar 24 horas à disposição. Não apenas de nosso trabalho e relações, mas também das notificações das mídias sociais.

Além disso, estas mídias sociais nos bombardeiam com um excesso de estímulos sensoriais e de informação irrelevante. É preciso saber desconectar-se, desabilitar as notificações, para ter alguns momentos diários de paz.

Seus algoritmos mapeiam nossas preferências, em busca da fórmula para nos engajar pelo maior tempo possível. Há uma lógica viciante na forma pela qual as postagens aparecem numa timeline, ou os aplicativos nos fazem sugestões de novos conteúdos, sem falar dos anúncios publicitários, plantando falsas necessidades, a solução para problemas imaginários.

Por isso, é preciso fazer um elogio à inutilidade. Precisamos saber como não sermos arrastados por esta avalanche de estímulos e informação. Recuperar nosso próprio ritmo natural é um primeiro benefício de ser inútil.

O convite à auto-exploração

O empreendedorismo promove uma ilusão: basta esforçar-se para garantir prosperidade e sucesso. É como se não houvesse desigualdades nas oportunidades, nem exclusão estrutural. Ao omitir este detalhe, convida a uma corrida incessante, como uma “rodinha de hamster”.

Além da exploração que toda pessoa que trabalha é submetida pelo sistema capitalista, há agora um novo tipo de exploração, aquela praticada por nós mesmos, por ambição e suposto investimento no próprio sucesso e felicidade. O tempo antes dedicado ao descanso e ao lazer se tornou um tempo disponível para aceitar mais trabalho, ou para investir nos estudos em busca de melhor qualificação profissional. No passado, a melhor formação do trabalhador era responsibilidade do patrão, mas agora passou a ser uma responsabilidade individual, para se manter “competitivo no mercado”.

O resultado de tudo isso é a síndrome de Burnout, a depressão e a ansiedade. Porque não sabemos apreciar o descanso, o lazer, o ócio como parte necessária da vida, acabamos nos esgotando. Em alguns casos, inclusive, pode ocorrer uma morte súbita precoce, por pura exaustão. Como uma chama que se extingue porque queimou todo o combustível rápido demais.

No Daodejing, texto fundante da filosofia taoista, Laozi aconselha:

知足不辱,
zhī zú bù rǔ, 
知止不殆
zhī zhǐ bù dài, 
可以長久
kě yǐ cháng jiǔ.
“Sabendo se contentar, não se humilha,
Sabendo parar, não se arrisca,
Pode por meio disso durar muito tempo”
(Daodejing, poema 44).

Mestre Liu Pailin, pioneiro do taoismo, do Taichi e da medicina chinesa no Brasil, aconselhava: “pessoas de meia-idade, andem devagar [a caminho do cemitério]”. Um segundo benefício de ser inútil é saber se preservar. Não desperdiçar nem encurtar a própria vida por causa de ambições excessivas é mais um motivo para fazer um elogio à inutilidade.

A árvore inútil de Zhuangzi

“A árvore inútil” é um importante tema nos escritos de Zhuangzi, o segundo personagem fundante da filosofia taoista, depois de Laozi. Há várias versões desta história. Vou mencionar apenas algumas edições em português, caso leitores e leitoras queiram estudá-la de perto, o que recomendo.

Na minha tese de doutorado, publicada como O Retorno à Raiz (Bizerril, 2007), cito as versões traduzidas por Thomas Merton e por Burton Watson. Publicada mais recentemente, uma edição interessante é a de Giorgio Sinedino. No capítulo IV, intitulado “Autoconfiança”, vemos duas versões desta história. Como é uma anedota importante para fazer um elogio à inutilidade, vou comentar as duas aqui. A primeira se chama “O espírito do Carvalho”(Sinedino, 2022, p. 212-215). E a segunda, “O fedor que salva”(Sinedino, 2022, p. 218-219).

“O espírito do carvalho”

Nesta primeira história, que reconto aqui com minhas palavras, o mestre artesão Shi Bo viajava com seus aprendizes, quando avistou um carvalho colossal, consagrado na região como Altar da Terra (社). Alto como uma montanha, com um tronco de duzentas braças de largura, caberiam milhares de bois na sua sombra.

Depois de uns instantes maravilhado, Shi Bo se retirou imediatamente, sem olhar novamente. Mas um dos aprendizes mais jovens ficou para trás, contemplando a árvore. Lembrem que o olhar de um carpinteiro para uma árvore é utilitário. Pois ele enxerga que objetos poderia fazer com a madeira, em qual quantidade e de que qualidade.

O jovem aprendiz, que ficara para trás, correu para reencontrar o mestre. E perguntou, surpreso, porque ele ficou indiferente diante daquela maravilha. O mestre, impaciente, respondeu: a árvore era inútil! Pois sua madeira não servia para construir barcos, que afundariam; nem caixões, que apodrederiam; nem utensílios, que rachariam; nem portas, que ficariam manchadas pela seiva; nem pilares, que seriam comidos pelos cupins. Enfim, uma árvore completamente inútil.

A lição a aprender

Após a longa jornada de volta ao lar, Shi Bo adormeceu, exausto. Então sonhou com o espírito do carvalho gigante, que lhe contou o destino das árvores úteis. As árvores frutíferas são violentadas e humilhadas quando seus frutos são colhidos, tendo seus galhos torcidos e quebrados. Por isso não podem viver a duração dos anos concedidos pelo Céu. Generosamente, o carvalho explicou a Shi Bo sobre o benefício de ser inútil: exatamente porque ninguém o cortou nem arrancou seus frutos, ele pôde tornar-se tão grande e frondoso, desenvolver-se plenamente e viver até o fim da duração natural de sua vida.

Árvores e humanos existem entre o Céu e a Terra, mas os humanos tratam as árvores como coisas, em vez de seres. E como também tratam outros humanos como coisas, daí a vantagem para as pessoas de saberem ser inúteis, escondendo suas habilidades de caça-talentos, gestores e políticos, para não serem exploradas.

Essa imagem faz mais sentido se lembrarmos que, na China antiga, os governantes saíam em busca de pessoas sábias e talentosas para empregar como ministros e conselheiros. Caso aceitassem o encargo, tais pessoas se veriam enredadas nas intrigas da corte e exaustas com inúmeras tarefas de grande responsabilidade. Por causa disso, muitos mestres taoistas esconderam sua sabedoria, fingindo ser pessoas simplórias e até loucas, para evitar este destino e ter a liberdade necessária para continuar cultivando o Tao.

“O fedor que salva”

Nesta segunda história, também narrada com minhas próprias palavras, o imortal Guo Ziqi encontra uma árvore assombrosamente gigante, tão grande que poderia esconder mil carros de guerra em sua sombra.

Examinando-a com mais cuidado, reparou que os galhos eram finos e retorcidos. Assim, não serviriam para fazer vigas. Suas raízes grossas e arrendondadas estavam rachadas no meio. Por isso, não serviam para fazer caixões. Suas folhas, em vez de ter propriedades medicinais, feriam a língua de quem as provar. Por fim, em vez de aromáticos, os ramos eram tão fedorentos que ele desmaiou ao cheirá-los e só acordou vários dias depois.

Em casa e ainda de cama, Guo Ziqi elogiou a árvore que conseguira crescer até tocar o Céu, graças a sua inutilidade.

A lição a aprender

Aqui também se trata do benefício de ser inútil. Esta árvore gigantesca pôde alcançar um tamanho colossal porque seus galhos, raízes e folhas e ramos não serviam para absolutamente nada, de modo semelhante ao carvalho da história anterior.

Assim, quem deseja cultivar o Tao, que também não serve para nada, exceto para o mais importante que é saber bem viver, precisa se desprender do utilitarismo, pois ele nos rouba o mais importante na vida, substituindo a serenidade e o contentamento por ambições desnecessárias e preocupações evitáveis.

Claro que tudo isso não se refere a nós desconsiderarmos as nossas responsabilidades sociais básicas, de garantir nosso sustento, de cuidar da nossa vida, da nossa casa e das pessoas que dependem de nós. Mas, sim, é um antídoto para esse excesso, na vida contemporânea, de ambição, de vontade de fama, de sucesso e de riqueza, de ter dinheiro para desfrutar prazeres. E, neste processo, nós arruinamos nossa sanidade mental, a saúde do nosso corpo e a tranquilidade do nosso coração.

Aprender práticas taoistas na era do imediatismo

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

As práticas taoistas são a expressão de um modo de viver a vida. São métodos não só para atingir finalidades pragmáticas, como curar doenças, preservar a boa saúde, atingir a longevidade. Mas são também meios para compreender pela experiência conceitos filosóficos complexos: Tao, não ação, espontaneidade, Vazio. E, porque não, também para realizar o Tao, o estado natural. Mas como fazer para aprender práticas taoistas na era do imediatismo? Como tornar relevantes no mundo de hoje estes métodos milenares? Esta é mais uma postagem da série taoismo e mundo contemporâneo.

Assista aqui a versão em vídeo desta postagem.

Parece que, para muitas pessoas, a vida cotidiana normal precisa ser vivida em velocidade crescente. O filósofo Byul Chung-Han descreveu a sociedade contemporânea como uma Sociedade do Cansaço. Nela, o sujeito da performance explora-se a si próprio voluntariamente, pois acredita que deve se mostrar constantemente produtivo, bem sucedido e feliz, mesmo às custas da sua saúde e sanidade.

Como instrutor de práticas taoistas, tenho encontrado uma situação curiosa. Pessoas têm me perguntado sobre cursos de formação para instrutor de Qigong. Em si, esta é uma boa notícia. Mas o curioso é querer ser instrutor sem antes ser aprendiz. Algumas pessoas nunca praticaram e já pensam em como seria ensinar. Esta vontade de “queimar etapas” é uma característica do nosso tempo. Então como ensinar práticas taoistas na era do imediatismo?

A formação tradicional

Como é a formação tradicional? Resumidamente: iniciante, estudante, praticante experiente, e só então instrutor, professor, e talvez mestre.

Mestre Liu Pallin (1907-2000), pioneiro do taoismo, da medicina chinesa e do Taichi.

Primeiro, somos iniciantes. Quer dizer, não sabemos nada, ou quase nada. Então, depois de um tempo como aprendizes, começamos a nos familiarizar com os princípios das artes taoistas. O treino traz consigo uma mudança de hábitos, primeiro motores e posturais, depois das atitudes habituais. Para isso, basta ter 1 professor/a qualificado/a e um pouco de dedicação e interesse em aprender.

Depois, com mais algumas semanas ou meses de treino, começamos a sentir os benefícios de praticar. Primeiro, nossa vitalidade aumenta. Gradualmente, alguns problemas crônicos de saúde começam a melhorar. Algumas dores que tínhamos no corpo não nos visitam mais. Percebemos também que o estresse diminuiu. Se continuarmos a praticar, esses benefícios se aprofundam. Além disso, começamos a memorizar as sequências de exercícios. E aprimorar nossa consciência corporal.

E, quando memorizamos as sequências, podemos também treinar fora das aulas. Veja bem, quanto mais repetir o treino, maior o benefício. Isso é, se tiver compreendido como praticar corretamente.

Turma da formação em espada Taichi com o professor Ronaldo, Brasília, 2000-2001. O professor Ronaldo está agachado, ao centro. O autor está de pé, logo atrás dele.

Como me disse um dos meus professores: “o treino começa a se revelar para você depois de aprender a sequência”. A partir deste momento a prática se baseia mais na experiência de mover e sentir o corpo. É neste contexto que aprendemos a sentir o Qi. Esta percepção se manifesta primeiro como sensações no nosso próprio corpo.

Mas é um processo lento. Leva alguns anos até integrar todos os conhecimentos e experiências no nível necessário para conseguir ensinar adequadamente. E, além de praticar muitos anos, é importante a orientação de uma pessoa qualificada, mais experiente.

Pois no passado, treinava-se todos os dias com um mestre, ano após ano. Um belo dia, chegava um momento que o mestre promovia o estudante a instrutor, para auxiliar na transmissão dos conhecimentos. E com mais maturidade, poderia então partir para abrir sua própria escola. Mas mesmo entre praticantes avançados/as, nem todo mundo se aprofundaria no caminho a ponto de se tornar mestre.

Treino de Qigong, seminário com mestre Liu Chihming, São Paulo, 2000. O autor é a segunda pessoa à esquerda. (foto da organização do evento).

Que alternativas temos no mundo contemporâneo? A formação na era do imediatismo

Nas nossas vidas urbanas agitadas, cheias de ocupações, atividades e distrações, como começar este caminho? Para começar, encontre tempo em sua agenda conturbada. Pelo menos uma aula por semana é um bom começo. E alguns minutos por dia é uma necessidade, se você deseja progredir.

Tenho uma sugestão, se você sente que não tem tempo. Quem sabe você pode substituir o tempo perdido com distrações excessivas, por alguns minutos de foco e relaxamento. Como resultado, você vai dispor de mais energia para empregar no que realmente importa.

Mas tome cuidado para não cair na armadilha da produtividade infinita. Nem tudo é trabalho, lucro, performance. O momento para treinar uma prática taoista é um momento para o cultivo de si. Mas, paradoxalmente, não é para produzir um eu maior e melhor, justo o contrário. Praticamos Taijiquan, Qigong, meditação para recuperar a capacidade de relaxar. Esta é uma capacidade natural, mas muitas vezes perdida devido a uma vida muito estressante. Quanto a isso, um fator particularmente gerador de estress é a necessidade de cultivar, defender e fortalecer nossa identidade pessoal. A necessidade de ser alguém, alguém especial, é uma das grandes fontes de sofrimento. E com o aumento da individualização no mundo atual, esse sofrimento se tornou ainda maior.

Também praticamos para recuperar nossas energias. É preciso manter o equilíbrio entre atividade e repouso, ou em termos taoistas, movimento e quietude, Yang e Yin. A prática correta deve revigorar, em vez de cansar, ao contrário da ideia convencional de “fazer exercício”. E acima de tudo, quando o corpo está em equilíbrio, é mais fácil ter uma mente calma.

Praticando Baguazhang com mestre Liu Chihming e professor Ronaldo Fernandes, São Paulo, 2000. (foto da organização do evento).

Como conciliar a formação tradicional nas práticas taoistas na era do imediatismo?

Para a maioria das pessoas, talvez não seja mais possível praticar com um mestre dia após dia, por anos a fio. Ainda assim, tendo encontrado uma fonte confiável, é possível aprender com ela. Basta fazer os devidos ajustes na nossa rotina e na nossa ambição por resultados mirabolantes e rápidos.

Encontre espaços em sua rotina, para fazer das práticas taoistas de sua preferência, um hábito diário, nem que seja por alguns minutos. Faça aulas regulares com uma pessoa qualificada, que aprendeu de um mestre autêntico e tem paciência e generosidade para responder de forma clara às suas dúvidas e dificuldades. Treine individualmente para se apropriar dos treinos, memorize as técnicas, repita e aperfeiçoe os movimentos, descubra os seus efeitos com sua experiência. Pois o benefício sentido é o melhor incentivo para continuar a praticar.

É fundamental ter um/a professor/a de referência, que pode acompanhar o seu desenvolvimento, fazer correções e tirar dúvidas. Mas afora isso, é possível aprender com outras pessoas, inclusive utilizar as novas tecnologias de aula ou curso online.

Depois de ter amadurecido sua própria prática e colhido seus frutos, aí então é o melhor momento para compartilhar este tesouro com outras pessoas. Converse com sua professor ou professora, para avaliar se já pode ensinar o que aprendeu.

Se deseja seguir este caminho, vale a pena fazer uma formação para instrutor/a, ou passar pela avaliação certificada por sua escola.

A minha própria experiência aprendendo as práticas taoistas

Como aprendi as práticas taoistas na era do imediatismo? O começo da minha caminhada com as práticas taoistas também foi marcado pela era do imediatismo, só que por outro motivo. Em 1998, estava em trabalho de campo antropológico na escola taoista de mestre Liu Pai Lin em São Paulo. Minha metodologia era participativa e incluía aprender o Taichi e outras práticas como parte do processo de minha etnografia. Eu era um sujeito jovem, ambicioso, experiente nas artes marciais e em dedicação exclusiva. Resultado: aprendi a sequência do Tai Chi de 37 movimentos em apenas 30 dias. E fiquei orgulhoso do meu feito. Ainda não tinha entendido que o verdadeiro aprendizado é para vida toda!

O que começou como pesquisa antropológica virou, contudo, um caminho de vida. Assim, nunca mais parei de treinar. Aprendi novas técnicas e sequências, ano após ano. Em primeiro lugar, para resistir ao estresse e desgaste da vida de professor. E anos mais tarde, porque compreendi que, além dos benefícios óbvios para saúde, havia muito mais. Era uma aprendizado sobre o viver.

Para continuar a aprender e aprofundar o que já sabia, foi um longo percurso. Fiz aulas particulares (de taichi, espada, Baguazhang, meditação), frequentei seminários com os mestres sobre práticas e filosofia taoista e cursos de formação (Taichi Pai Lin, Espada Taichi, I Ching Taoista), fiz as provas de certificação para instrutor de Taijiquan e Baguazhang. Em 2015, fui a Taiwan receber uma iniciação para tornar-me oficialmente discípulo da linhagem Kunlun, uma das várias linhagens do mestre Liu Pailin. Ao todo, foram mais de 20 anos de aprendizado, estudo e prática para poder me considerar um instrutor da minha escola.

Participantes do seminário com mestre Liu Chihming, São Paulo, 2017. O autor está sentado próximo ao canto inferior esquerdo. (foto da organização do evento)

Princípios do Qigong

Se preferir, assista ao vídeo desta postagem no nosso canal no Youtube.

Introdução

Neste artigo, compartilho os conteúdos da masterclass online “Princípios do Qigong: o segredo da prátida bem sucedida”. Nossa conversa hoje é sobre princípios gerais, não sobre as instruções para praticar uma sequência específica. Primeiro, explicarei o que é Qigong. Em seguida, desnvolverei os seguintes aspectos:

  • Como e de quem aprender?
  • Quando, o que e com que frequência praticar?
  • Onde praticar?
  • Postura, alinhamento e ritmo corporal
  • A atitude mental

Depois, falarei dos benefícios do Qigong. E, no final, contarei um pouco da minha história, para você entender como aprendi o que compartilho aqui.

Que é Qigong?

Qìgōng (pronuncie Tchi kung em português) é um termo moderno geral para toda prática que trabalha, treina ou cultiva (gōng 功) o Qi. Geralmente traduzido como energia, Qì (氣 ou 炁) é nossa potência de vida e movimento. Existem diversas escolas, de origem taoista, budista, confucionista, médica e marcial, etc. Os exercícios mais antigos provém da alquimia interna taoista e da medicina tradicional e já eram praticados antes da era cristã, como podemos constatar pelos achados arqueológicos de Mawangdui, datados da dinastia Han (200 a.C.-220d.C.), e de Guodian, datados do período dos Reinos Combatentes (475-221 a.C). Há referências a eles também em textos importantes como o Clássico do Caminho e da Virtude (Dàodéjīng) e no  Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng). Respectivamente, o primeiro é o mais famoso texto filosófico taoista e o segundo o mais famoso texto antigo de medicina chinesa.

Os dois pictogramas para Qì: à esquerda o fogo original do Céu representa o Qi pré-natal. À direita, a combinação de vapor e arroz represetna o Qi pós-natal, que provém da respiração e dos alimentos.

Como e de quem aprender?

O primeiro princípio do Qigong é saber de quem aprender. Uma pessoa é confiável porque está qualificada para ensinar. Ela recebeu a transmissão de uma linhagem autêntica. E praticou e vivenciou os benefícios dos métodos que ensina. Além disso, conhece os princípios do Qigong. Sabe explicá-los e tem paciência, e tempo, para ensinar e tirar dúvidas. Aprendemos por imitação, repetição, treinando junto, escutando as instruções e corrigindo os erros conforme as orientações que recebemos.

O professor ou professora ideal, no nível mais elevado, é um mestre ou mestra que realizou o Tao, alguém de vasto conhecimento, compaixão e sabedoria. Estas pessoas são muito raras. Então, de modo mais realista, basta um instrutor ou instrutora experiente, com permissão de seu mestre ou mestra para ensinar.

Atenção! O conhecimento nunca está completo nos livros. Sempre há detalhes fundamentais que só aprendemos diretamente com uma pessoa mais experiente.

No Qigong, além das posturas e movimentos visíveis, há também a intenção. Com ela, direcionamos a circulação de Qi. Assim, também precisamos de explicações sobre o aspecto invisível da prática.

Quando e com que frequência praticar?

O segundo princípio do Qigong diz respeito ao momento da prática. Preste atenção nos horários do dia e nas estações do ano para escolher o que praticar. Por exemplo, exercícios respiratórios, só da madrugada até 11:00 da manhã. Evite exercícios pesados no meio do dia. Não pratique sob as árvores à noite. Evite praticar durante tempestades. E leve em consideração seu estado de saúde e o momento do seu ciclo de vida. Por exemplo, alguns treinamentos são desaconselhados durante o período menstrual e a gestação, outros são mais importantes quando estamos convalescentes, ou quando queremos prevenir determinadas doenças, e assim por diante.

Treine regularmente, de preferência todos os dias. Pois não há progresso sem regularidade. Após 49 a 100 dias de treinamento contínuo, você começa a perceber diferenças na sua vitalidade.

Se você conhece vários tipos de treinamentos, então pode organizar a prática de duas maneiras, dependendo do horário.

De manhã, siga esta sequência:

  • meditação,
  • respiração de limpeza,
  • qigong estático,
  • qigong de movimento
  • e arte marcial.

À noite, inverta a sequência, retirando a respiração.

Onde praticar?

O terceiro princípio do Qigong diz respeito ao local da prática. Há duas opções básicas: ao ar livre ou dentro de casa.

Se você quer treinar em contato com a natureza, evite expor-se a condições climáticas extremas: calor, frio, umidade, vento e secura excessivos. Por exemplo, não se exponha ao sol forte, à chuva, ao vento. E evite pisar descalço num terreno frio ou molhado.

Além disso, escolha um ambiente natural com Qi abundante e de boa qualidade: ar puro, água límpida, árvores, montanhas, clima ameno. Se isto não é possível, onde você mora, recomenda-se viajar periodicamente para ter contato com a natureza. Os antigos taoistas viajavam para florestas e montanhas remotas para obter o ambiente com o fengshui mais propício para treinar.

Quando você pratica na cidade, ao ar livre, é melhor praticar em parques e jardins, mas ao abrigo do sol forte, do vento e da chuva. Evite ambientes movimentados, barulhentos e poluídos.

Em casa, pratique em um cômodo limpo, iluminado e com ventilação, mas sem se expor diretamente a correntes de ar.

Mas qualquer que seja o ambiente, é importante ter suficiente conforto térmico, acústico, luminoso e segurança, para que possamos relaxar durante a prática, temporariamente sem desconfortos, preocupações e interrupções.

O Corpo

O quarto princípio do Qigong diz respeito ao corpo: sua postura, alinhamento e ritmo.

A prática do Qigong de longa vida visa promover a circulação do Qi correto no nosso corpo, a eliminação do Qi patogênico e a captação do Qi límpido da natureza. E para isso, é importante manter o corpo alinhado e relaxado. Pois o alinhamento favorece a ligação com o Qi do Céu e da Terra. Observe, também, as Seis harmonias entre as articulações: ombros-quadris, cotovelos-joelhos, pulsos-tornozelos. Por sua vez, o relaxamento favorece a livre circulação de Qi e Sangue no corpo. Mas, relaxar não é desabar, a postura continua estável e alinhada.

No Qigong taoista de longevidade, o tônus muscular vem da postura e dos movimentos, não contraímos os músculos com força, deliberadamente. Por isto, é importante usar apenas a força necessária.

Além disso, praticamos com atenção à nossa consciência corporal. Perceba  a distribuição do peso do corpo: nos dois pés, predominante em um dos pés ou apenas em um só pé. Faça alongamentos suaves, respeitando os limites do corpo. A repetição suave e consciente desenvolve e mantém a flexibilidade.

Já a respiração é natural, pelo nariz, movendo a barriga como um bebê. Exceto em exercícios respiratórios com instruções específicas. Nào confunda Qigong com um sinônimo de exercício respiratório.

O ritmo dos movimentos é lento, contínuo e fluido. Por que mover-se “em câmera lenta”? Por vários motivos! Porque isso favorece a circulação equilibrada de Qi e Sangue. Remove bloqueios. Previne lesões (causadas por movimentos bruscos combinados à má postura). Acalma a mente e desenvolve a consciência corporal.

E, por fim, o Qi se manifesta como sensação corporal (calor, formigamento, eletricidade, frio, magnetismo, pulsação, etc). O conhecimento do Qigong não é apenas conceitual. É baseado na experiência e sentido no corpo, não um um mero conceito ou crença..

A mente

O quinto princípio do Qigong diz respeito ao papel da mente. Um dito clássico da medicina chinesa afirma que a Intenção guia o Qi e o Qi guia o Sangue. Portanto, Qigong não é apenas uma ginástica, o efeito depende de nossa consciência presente. Os movimentos são acompanhados por um direcionamento da consciência.

Qigong se pratica com atenção, não é um exercício mecânico, pois precisa de consciência para ser totalmente eficaz. Por isto mesmo, além de prática para saúde é também meditação em movimento.

Antes de começar, fazemos uma preparação interior, tomando consciência do eixo e do centro do corpo. Após concluir, fazemos uma pausa, levando a atenção para o centro do corpo.

Repare que uma sessão de prática reproduz a antiga cosmologia chinesa: partimos do Wújí (無極), para o Tàijí (太極), para as “dez mil coisas”; ao final retornamos ao Tàijí e finalmente ao Wújí. Ou seja, do Vazio, para a unidade dinâmica dos opostos, que se manifesta de mil formas diferentes, e de volta ao Vazio. Logo, esta sequência implica diferentes formas de posicionar nossa consciência durante a prática, alternando entre ficar focado/a e ficar vazio/a.

Outra filosofia do exercício

O Qigong taoista tem outra filosofia do exercício. A prática correta é relaxante e revigorante, gera calma e bem estar. Podemos suar levemente, o coração pode bater um pouco mais forte. Mas não precisamos sentir dor, exaustão, nem ficar ofegantes após os exercícios.

Aqui, a instrução chave é: “sem forçar”. Respeitamos nossos limites corporais e psicológicos. À medida que praticamos com paciência e nos familiarizamos com os exercícios, o corpo vai ficar mais forte, vigoroso e flexível, a mente vai ficar mais calma. Com o tempo, aprendemos a diminuir a tensão física e mental habitual, relaxando o esforço desnecessário.

Praticando assim, podemos vivenciar experiências de fluxo: uma sensação de unidade entre corpo, consciência e ação sem esforço.

Benefícios do Qigong

Ao entrevistar dezenas de praticantes no meu trabalho de campo, foram frequentes os relatos de melhoras nas condições de saúde, inclusive em doenças crônicas graves (Bizerril, 2007).

Quando praticamos regularmente, percebemos um aumento de vitalidade, melhora na digestão, na respiração, no ciclo menstrual das mulheres, no equilíbrio, flexibilidade, coordenação motora. Constatei isso também por experiência própria.

Um efeito ainda mais sutil é sobre nossos estados de humor e paisagem mental. Com o tempo, a mente fica mais calma. As emoções ficam mais estáveis e equilibradas. Até as dificuldades e problemas da vida abalam menos.

Devido ao coração mais sereno e ao corpo mais relaxado, reagimos de forma mais adequada e proporcional às situações desafiadoras. Pois aprendemos a usar apenas a força necessária, com mais sensibilidade ao contexto e à ação necessária.

Qigong e filosofia taoista

A  prática bem orientada do Qigong tem também profundas consequências existenciais. E pode produzir mudanças de estilo e de ritmo de vida. Depois de praticar por algum tempo, começamos a sentir que a pressa, a agitação e o estresse habitual não são benéficos nem necessários.

E tem também consequências filosóficas. Pois a experiência corporal permite compreender conceitos filosóficos difíceis, como Caminho Natural (Dào 道), Taichi (Tàijí 太極), não ação (wúwéi 無為), vacuidade (wú 無, xū 虛), Qi (氣)… Isto acontece por meio do processo que a antropologia da corporeidade chama de “corporificação” (embodiment).

É assim porque os conceitos da filosofia taoista são indicadores de experiências. A naturalidade, a integração dos contrários, a fluidez, a ação sem esforço ou identidade, podem ser vivenciadas por meio de prática corporal regular.

Como tudo começou?

Mestre Liu Pailin (劉百齡 Liú Bǎilíng) (Tianjin,1907- São Paulo, 2000), pioneiro da divulgação do Taichi, do taoismo e da medicina chinesa no Brasil

Em 1998, parti para São Paulo, em trabalho de campo antropológico para minha tese de doutorado. Lá conheci o mestre Liu Pai Lin, em seus últimos anos de vida. Utilizando um metodologia participativa, aprendi e pratiquei intensivamente o Taichi Pai Lin, entrevistei e convivi com praticantes de todos os níveis, observei o cotidiano e anotei, como faz um etnógrafo em pesquisa de campo.

O encontro com o mestre foi tão impactante que, ao voltar para casa, continuei a praticar e nunca mais parei. Havia algo diferente naquele senhor de pouco mais de 90 anos. Uma alegria de viver, uma energia que parecia inesgotável, a velhice sem sinais de decrepitude, os olhos brilhantes de uma inteligência viva, uma grande flexibilidade de corpo e mente. E, pela primeira vez na vida, aprendi a importância de relaxar e fluir, em vez de usar a força de vontade e lutar.

Quem sou eu?

Defendi minha tese de doutorado, O Retorno à Raiz: uma linhagem taoista no Brasil, em janeiro de 2001. No período de 2001 a 2018, publiquei artigos, capítulos de livro e o livro da tese, sobre a tradição taoista no Brasil. Iniciei carreira como professor universitário e pesquidador, função que exerci até julho de 2017.

Paralelamente a isso, passei anos praticando diariamente, seguindo a orientação dos mestres, e sob supervisão de professores/as. Aprofundei minha compreensão do Qigong, Taijiquan, Espada Taiji, Baguazhang, Daoyin, meditação taoista, medicina chinesa e filosofia taoista. Em 2016, tornei-me instrutor certificado de práticas taoistas. Em 2015, viajei a Taiwan pela primeira vez e tornei-me discípulo da linhagem taoista Kunlun Xianzong. Fiz outras viagens para visitar meu professor de meditação taoista desta linhagem e continuar aprofundando a minha prática. Tornei-me também acupunturista. Após 17 anos de carreira acadêmica e cerca de 20 anos de estudos acadêmicos e prática pessoal da tradição taoista, decidi me dedicar a ensinar estes conhecimentos tradicionais chineses.

O resultado disso é o projeto Qigong Taoista, presente nas redes sociais e neste sítio web.

Como a compreensão do Daodejing e outros clássicos antigos pode contribuir para a boa prática da acupuntura?

Essa é uma pergunta que exige uma resposta cuidadosa e precisa. Obviamente, quem já leu o Clássico do Caminho e da Virtude (Dàodéjīng 道德經) sabe que este não é um texto médico, mas sim um texto filosófico. Lá não há nenhuma receita, nenhuma técnica terapêutica, nenhuma referência explícita à medicina chinesa.

Contudo, é um texto sobre o Caminho Natural (Dào 道). Essa palavra se refere à natureza das coisas, se preferirem, aos processos da natureza. Quem entende o Caminho, age com o mínimo de intervenção. Daí o uso da expressão paradoxal “não ação” (wúwéi 無謂). Compreender a natureza e intervir de forma não invasiva são habilidades que com certeza interessam ao/à acupunturista.

Embora esse conceito de Caminho, ou Tao, venha acompanhado de adjetivos como insondável, profundo e misterioso, a tradição oral taoista facilita nossa compreensão:

“Tao é Taichi. E Taichi é Yin e Yang em harmonia”.

A harmonia de Yin e Yang é o princípio básico para definir saúde no contexto da medicina chinesa. E resume o objetivo da prática terapêutica. E para isso, precisamos entender melhor Yin e Yang.

Nessa tarefa, o estudo dos clássicos chinesas traz uma grande contribuição. Pois a medicina chinesa é baseada em um tipo de raciocínio que se desenvolveu na civilização chinesa, bem diferente do pensamento ocidental que deu origem à ciência moderna. A medicina chinesa também se baseia em milênios de observação sistemática da natureza e no desenvolvimento de tratamentos por meio da experiência clínica de gerações de profissionais. Mas a linguagem que organiza esse raciocínio e informa a prática clínica é outra. Seus fundamentos são a filosofia Yin-Yang e a teoria dos Cinco Movimentos.

É aqui que entra o interesse pelo Daodejing. Seu autor, Laozi, nos explica com poemas, como funciona a natureza e como uma pessoa sábia deveria atuar, baseando-se nessa compreensão.

Vou ilustrar como este texto é rico, citando dois trechos de seus poemas:

“Existência e inexistência geram-se uma a outra,
Difícil e o fácil completam-se um ao outro,
Longo e curto estabelecem-se um pelo outro,
Alto e o baixo inclinam-se um pelo outro” (Daodejing, poema 2).

O que fica evidente neste trecho é que Yin e Yang, ao contrário da crença comum, não são duas coisas, que existem independentemente uma da outra. Em vez disso, são aspectos contrastantes e complementares de um fenômeno, que aparecem na nossa percepção. Assim, um termo só faz sentido em relação ao outro. Não existe algo difícil ou fácil em si, longo ou curto em si, alto ou baixo em si. Tudo isso depende de um termo de comparação, de um critério de medida. E é desse jeito para todos os pares de opostos que a imaginação humana possa criar.

Neste outro trecho, vemos a tendência natural à autorregulação:

“O Tao do Céu é como retesar o arco:
A parte superior abaixa, a parte inferior sobe.
A parte que possui sobra é diminuída,
A parte não suficiente é completada”
(Daodejing, poema 77).

O equilíbrio decorre de diminuir o excesso e suprir a falta. E esse processo é justamente representado de forma genial pelo símbolo do Taichi ☯: quando algo chega ao máximo se transforma no seu oposto. O movimento não pode seguir incessantemente, então se transforma em quietude, que por sua vez se transforma em movimento. Ao expandir até o máximo, é preciso contrair; ao contrair até o máximo, só nos resta expandir. Entendendo profundamente esse princípio, a civilização chinesa desenvolveu todas as suas artes e conhecimentos tradicionais, incluindo a medicina. Adquirindo maestria nesse entendimento dos movimentos da natureza, é possível reduzir nossos esforços e intervenções ao mínimo necessário, de tal modo, que parece que quase não fizemos nada especial, mas que tudo aconteceu sozinho, da melhor forma. E isso é a chamada “não ação”.

Esta pequena introdução é meu convite para estudarmos mais esse clássico precioso, o texto chinês mais traduzido para outras línguas em todo o mundo.

Medicina Chinesa: 03. Que é um ponto de acupuntura?

Uma particularidade da acupuntura é que as agulhas não são inseridas de modo aleatório ou meramente intuitivo no corpo de um/a paciente. Existe todo um conhecimento técnico prévio, uma compreensão desenvolvida ao longo dos milênios de existência da medicina chinesa, por meio da prática clínica e do estudo do corpo humano. Na maior parte das vezes, cada agulha é inserida em uma localização bastante específica, chamada “ponto de acupuntura” (xuédào 穴道).

Gravura médica chinesa do século XVIII, ilustrando pontos de acupuntura, acervo da British Library

O capítulo 58 das Questões Simples (Sùwén 素聞), livro que compõe o Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng 黃帝內經), afirma que “o ser humano tem 365 acupontos que correspondem ao número de dias do ano”.

A sinóloga Elizabeth Rochat de la Vallée, estudiosa dos clássicos médicos e taoistas chineses.

Em todos esses casos, um ponto de acupuntura é uma localização anatômica precisa, uma pequena região circular que pode ser identificada por palpação, com uma consistência diferente das áreas adjacentes. Simplificando, quando tocamos um ponto de acupuntura com a ponta do dedo, sentimos uma sensação diferente, como uma cavidade. De fato, essa seria uma tradução literal para o termo chinês xué (穴): cavidade, gruta, caverna, morada, vala, toca de animal, como explica a sinóloga Elizabeth Rochat de la Vallée em sua análise precisa dos 101 conceitos-chave da medicina chinesa.

Normalmente, quando se vê os pontos de acupuntura em um tratado de referência, podemos identificar quatro situações: o ponto pertence a um dos doze canais ordinários, correspondente ao sistema dos órgãos e vísceras (臟腑), que percorrem o corpo, cada qual num trajeto específico; o ponto pertence ao Vaso da Concepção (任脈) ou ao Vaso Governador (脈); localizados na linha central do tronco, respectivamente na frente e nas costas; o ponto influencia algum dos Oito Vasos Maravilhosos (categoria a que pertencem o Vaso da Concepção e o Vaso Governador), mas pertence a um dos 12 canais ordinários; o ponto é classificado como “ponto extra”, não é considerado como pertencente a um dos canais.

Em geral os pontos tem referências anatômicas claras próximas a eles, como por exemplo protuberâncias ósseas, tendões, o espaço entre músculos, etc. Além disso, um ponto de acupuntura não coincide totalmente com um vaso sanguíneo maior: a agulha de acupuntura não deve transpassar uma veia ou artéria. O tratamento por sangria funciona de forma diferente de uma sessão de acupuntura com agulha filiforme, e será explicado em outra postagem.

Para o/a acupunturista, a localização precisa do ponto tem como consequência uma inserção mais fácil e eficaz da agulha.

Medicina Chinesa: 02. como funciona o diagnóstico

A acupuntura pode tratar diversas doenças, segundo a Organização da Saúde, como mencionado na postagem anterior. No entanto, como é parte de uma medicina tradicional completa, a medicina chinesa, seu uso terapêutico depende de um cuidadoso diagnóstico, com uma lógica específica.

A tradição médica chinesa fala de quatro métodos diagnósticos (sìzhěn 四診): observar, auscultar/cheirar, interrogar e palpar. Cada um deles é uma prática bastante detalhada. A observação inclui não apenas o exame da face, da compleição, do olhar, da língua e das partes do corpo afetadas por uma doença, mas também, uma percepção global do comportamento, da constituição, do estado geral e mesmo da saúde mental dx paciente. Auscultação inclui prestar atenção em alterações de som e cheiro do corpo dx paciente. Interrogar corresponde a uma cuidadosa entrevista diagnóstica, na qual ouvimos não apenas a queixa principal e o histórico de saúde, mas indagamos sobre: sono; alimentação; sede; estilo de vida; dores; doenças crônicas; acidentes e cirurgias; fezes e urina; transpiração; frio e calor, febre; saúde sexual/reprodutiva; etc. Por fim, a palpação inclui não apenas tocar as partes do corpo afetadas pela doença e identificar pontos de acupuntura sensíveis, com finalidade diagnóstica.

Aquarela de Jean Droit, por volta de 1915, retratando um médico chinês examinando o pulso de uma paciente aristocrática. Disponível em Fine Art America.

Além disso, um método diagnóstico importante e complexo é a pulsologia. A forma mais conhecida é a tomada do pulso da arterial radial simultaneamente nos dois braços, que oferece indicadores detalhados sobre o estado de saúde, particularmente dos órgãos internos. Por meio do exame do pulso é possível avaliar a vitalidade dx paciente, identificar a presença de desequilíbrios sistêmicos e inclusive fazer prognósticos sobre o desenvolvimento do caso clínico.

Por meio do uso cuidadoso desses métodos diagnósticos, 1 profissional pode diferenciar as síndromes, de modo mais geral, segundo Oito Princípios (bāgāng 八綱): frio e calor; deficiência e excesso; interior e exterior; Yin e Yang. E, de modo mais específico, segundo os Órgãos e Vísceras (zàngfǔ biànzhèng 臟腑辨證). Os Oito Princípios permitem identificar a natureza da síndrome. E a Investigação dos Órgãos e Vísceras permite localizá-la de forma mais precisa.

Com esse entendimento, é possível traçar uma estratégia terapêutica mais eficaz do que apenas tratar sintomas isolados.

Meditação Taoista: 03. Afinal, para que meditar?

Na postagem de hoje, a ideia é oferecer ao público interessado uma explicação simples, sem tecnicalidades, sobre o que é meditação taoista e para que praticá-la. Um ponto de partida simples é entender que a meditação é um método. Mas um método para que?

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Vamos à resposta mais direta: no nível mais profundo, a meditação taoista é um método para cultivar o que os antigos chineses chamaram de Caminho Natural, que é uma tradução razoável para o termo Tao. Em vez de usar termos filosoficamente complicados, digamos que, na prática, a meditação é um método que desenvolve gradualmente em nós a capacidade de passar cada vez mais tempo em um estado que combina relaxamento, serenidade, sensibilidade ao ambiente à nossa volta, e prontidão para agir em conformidade com o que a situação demanda em um momento específico. Ou seja, não meditamos para sermos pessoas melhores, nem obter algo. Nem se trata de ficar passivo/a, insensível ou indiferente. Em vez disso, meditamos para aprender a reduzir toda tensão, força e identidade desnecessárias, permitindo que as qualidades de nossa natureza essencial se manifestem. Quando nos acostumamos a permanecer em um estado de relaxamento alerta, menos identificados/as com uma identidade sólida associada a desejos e metas, viver fica mais simples. Então, a tradição taoista confia no potencial para bem viver, presente em todos/as nós, que se revela quando nosso está equilibrado e a tensão se dissolve.

Os métodos taoistas se dividem em treinos de movimento e treinos de serenidade. A meditação silenciosa na postura sentada é o treino de serenidade por excelência. Nela, trabalhamos ao mesmo tempo a serenidade e a vitalidade, como expliquei na primeira postagem dessa série. A primeira etapa na prática desse tipo de meditação é o restabelecimento de nossa vitalidade e do equilíbrio de nosso organismo, descrito pelos antigos chineses em termos de Yin e Yang e dos chamados cinco “elementos” (metal, água, madeira, fogo e terra), que correspondem aos órgãos, tecidos e funcionamento de nosso corpo, como tenho explicado desde a primeira postagem sobre medicina tradicional chinesa. Como na concepção chinesa não há uma separação entre corpo e mente, o equilíbrio de nosso organismo está diretamente ligado ao equilíbrio emocional. Assim, quando nossas energias estão equilibradas, é mais fácil meditar. E ao mesmo tempo, na medida que praticamos meditação, aumenta nossa capacidade de autorregulação, o que permite lidar com situações que antes nos deixariam doentes, exaustas/os ou agitadas/os.

O que a meditação oferece é um momento com condições ideias para cultivar a serenidade e “recarregar nossas baterias“. Paramos temporariamente nossas atividades cotidianas, largamos os projetos e preocupações, sentamos em um local silencioso e que inspire tranquilidade. E nessas condições praticamos algumas técnicas para favorecer o relaxamento, a lucidez e a vitalidade. Mas com o tempo de prática regular, os estados de serenidade, relaxamento e vigor que vivenciamos durante a sessão formal de meditação podem ser vivenciados no cotidiano quando não estamos meditando. Algo em nós mudou sem que tenhamos deliberadamente tentado mudar ou aperfeiçoar nada.

Pintura em nanquim, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

Assim como a água que brota de uma nascente e se torna disponível para nutrir a vida dos seres vivos que ali habitam, ou o sol que nasce a cada dia iluminando e aquecendo a terra, espontaneamente se manifesta um potencial para ação eficaz que é benéfico para nós mesmos/as e para quem está à nossa volta. Quando estamos revigorados/as e relaxados/as fica mais fácil estar disponível para os/as outros/as do que quando estamos tensos/as, ensimesmados/as, focados/as em nossas dores e dificuldades. E como explicou o mestre Pailin, esse é o sentido de ter uma vida longa e saudável: poder expressar nosso potencial para benefício coletivo, compartilhando e apoiando o desenvolvimento dos/as outros/as.

Caso deseje aprender a praticar, em março de 2020 teremos um curso de introdução em Brasília.

O Clássico do Imperador Amarelo: 04. recomendações sobre alimentação

Na medicina clássica chinesa, existem recomendações sobre alimentação e saúde. Diferente do conhecimento moderno sobre nutrição que leva em consideração o aspecto bioquímico dos alimentos, quais nutrientes e calorias presentes, a dietoterapia chinesa associa os sabores e as cores aos Cinco Movimentos (wŭxíng 五行) (madeira, fogo, terra, metal e água) e classifica os alimentos por sua natureza e efeito. Assim, uma alimentação equilibrada é uma das bases da manutenção da saúde, visto que o ar e o alimento são o fundamento do pós-natal. Além disso, num nível mais introdutório da explicação, alimentos específicos podem ser recomendados como tratamento para suprir o que está deficiente e reduzir o que está em excesso, visando restabelecer o equilíbrio de Yin e Yang, mas também dos Cinco Movimentos, considerando a associação dos alimentos com as 5 cores e 5 sabores correspondentes aos Cinco Movimentos.

Página da edição chinesa do Suwen, que forma parte do Huangdineijing. Acervo da World Digital Library.

O capítulo 3 das Questões Simples (Sùwén 素聞) associa os cinco sabores aos cinco órgãos (zàng 臟): o azedo ao fígado; o salgado aos rins; o doce ao baço; o amargo ao coração; e o picante aos pulmões. Ainda segundo o clássico, se estão em excesso, os sabores podem contribuir para produzir uma relação de agressão entre os cinco movimentos. Se o fígado está em excesso, prejudica o do baço. Se os rins estão em excesso, pode lesar os ossos e músculos, e prejudicar o coração. Se o baço está em excesso, ocorre dispneia, pode restringir o o dos rins. Se o coração está em excesso, o clássico afirma que o baço não consegue se umedecer e surge secura perversa no estômago. Aqui vemos uma descontinuidade no raciocínio apresentado, que não faz menção ao pulmão, mas sim ao estômago, a víscera Yang corresponde ao órgão Yin da terra, o baço. O texto continua, afirmando que, se o pulmão está em excesso, restringe a madeira do fígado, enfraquecendo os tendões e, pelo efeito de dispersão, o excesso de picante consome o espírito. Ressalto aqui que neste e em outros trechos há variações no texto clássico que divergem das tabelas de correspondência dos cinco movimentos nos textos modernos de medicina chinesa, mais lineares.

Já no capítulo 4, que continua a enumerar as correspondências dos Cinco Movimentos com direções, cores, estações, órgãos,sabores, carnes, cereais, planetas, notas musicais e odores, o clássico faz as seguintes associações: o fígado está associado à madeira e, quanto aos alimentos, ao galo e ao trigo; o coração está associado ao fogo e, quanto aos alimentos, ao carneiro e ao sorgo vermelho; o baço está associado à terra e, quantos alimentos, à vaca e ao painço; os pulmões estão associados ao metal e, quanto aos alimentos, ao cavalo e ao arroz com casca; os rins estão associados à água e, quanto aos alimentos, ao porco e ao feijão (de soja) preto. Ainda num nível introdutório, pode-se associar as cores aos Cinco Movimentos e seus órgãos respectivos. Assim, alimentos verdes tonificam a madeira; alimentos vermelhos tonificam o fogo; alimentos amarelos tonificam a terra; alimentos brancos tonificam o metal; e alimentos pretos tonificam os rins.

Ilustração do Siwubencao, texto de matéria dietética da dinastia Ming:
colhendo água de ameixa. Fonte: Wellcome Gallery Collection.

Obviamente, isso não resume todos os princípios da seleção dos alimentos na dietoterapia chinesa, mas dá uma ideia de sua racionalidade, como está presente nas Questões Simples, do Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdìnèijīng 黃帝內經). Textos posteriores de matéria dietética elaboram de formas mais complexas e específicas sobre o uso medicinal dos alimentos, de modo que a medicina chinesa possui uma verdadeira culinária terapêutica no seu repertório de conhecimentos tradicionais.

Meditação Taoista: 02. a postura de meditação

A postagem de hoje dá seguimento à série sobre meditação. Dessa vez, o foco é no aspecto prático, mas sem perder de vista os fundamentos. A consciência da postura durante a prática formal de meditação é um aspecto que precisa ser considerado na suas devidas proporções; não é toda a prática, nem é algo que deveria ser negligenciado. Saber que postura assumir é uma parte importante do conhecimento prático sobre como meditar.

Se a meditação é uma prática do Tao, então a naturalidade é algo que precisa ser cultivado nela. Por isso, aqui o princípio de base é “não forçar”. Persistindo com paciência, há um desenvolvimento gradual. Ao forçar em busca de resultados, há o risco que ficarmos exaustos/as, frustrados/as e, assim, desistir.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Cada tradição meditativa tem suas próprias convenções, recomendações e atitudes sobre a postura de meditação. Foi o que aprendi estudando as instruções de escolas diferentes. No caso do taoismo, a meditação pode ser praticada em várias posturas imóveis, sejam de pé, sentado ou deitado. E mesmo em movimento, como é o caso quando praticamos Qigong ou Taijiquan de forma particularmente lenta, serena e focada, com atenção ao menor gesto. Quanto à postura sentada, podemos imaginar erroneamente que a meditação só ocorre se formos capazes de manter uma perfeita postura de lótus. E isso pode chegar mesmo a se tornar uma obsessão que nos desvia do objetivo de meditar. Mas a postura não é algo que assumimos para impressionar outras pessoas, nem é uma proeza, ou uma meta. Em vez disso, é um dos pontos de partida para nossa prática, pois a meditação também é uma prática corporal. O corpo em equilíbrio, livre de tensão, desconforto e doença, medita com mais facilidade.

O alinhamento, a estabilidade e o relaxamento de nossa postura ajudam a permanecer um tempo quietos/as, sem tensão. Então, a postura deve estar de acordo com os limites e possibilidades de nosso corpo, em função da nossa flexibilidade, disposição vital, faixa etária, etc. Devemos ser capazes de relaxar nela, sem adormecer e sem perder o alinhamento postural. E para isso, não é necessário atingir uma postura de lótus perfeita, embora essa seja considerada por muitas pessoas uma postura excelente para meditação. Pois ela é útil para a prática desde que o/a praticante seja capaz de permanecer nela confortavelmente. Se não é o caso, podemos meditar em meio lótus, ou simplesmente de pernas cruzadas, mas também sentando em uma cadeira, sem reclinar o corpo e encurvar a coluna. Como aqui o foco não está no controle, na força de vontade ou na resistência a estímulos desagradáveis, é importante que a postura de meditação seja suficientemente confortável para permitir que prestemos atenção no treinamento que vamos praticar, e não nas dores e tensões no corpo e na mente que surgem do desafio de manter uma postura forçada.

Com essa orientação, a meditação passa a ser um momento de descanso, de “recarregar as baterias”, e não de luta para alcançar algo. Meditando durante um lapso de tempo em que a postura está confortável, podemos estender gradualmente as sessões, até sermos capazes de permanecer um longo tempo praticando.

Esse e outros aspectos serão abordados em mais detalhes em um curso que será dado pela primeira vez em março de 2020.

Meditação Taoista: 01. dificuldades básicas

Meditação começou a se tornar um tema popular em contextos globais já faz algumas décadas, talvez pelo menos desde os anos 60 do século XX, objeto de estudo de eruditos acadêmicos, de curiosidade em circuitos contraculturais, mesmo um bem simbólico rentável no mercado espiritual new age e, mais recentemente, um método terapêutico reconhecido por setores da ciência médica e psicológica convencional (como é o caso do sistema mindfulness, originalmente desenvolvido por neurocientistas a partir das técnicas budistas clássicas de meditação Shamata). Várias tradições asiáticas praticam métodos contemplativos há milênios e os circuitos contemporâneos de comunicação intercultural global permitiram a sua difusão para outros contextos culturais. Além disso, há toda sorte de novas sínteses e experimentações e literalmente milhares de professores e professoras de meditação, nem sempre devidamente treinadxs e suficientemente experientes para ensinar, pelos critérios tradicionais. Em nossos tempos de excesso de individualismo, a meditação tem inclusive sido erroneamente incorporada ao arsenal de tecnologias de empoderamento individual, em consonância com o que foi chamado de “materialismo espiritual” pelo controverso mestre budista tibetano Chogyam Trungpa.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Aqui, o assunto é a meditação taoista em um contexto por assim dizer mais fiel à sua origem: o cultivo simultâneo da vida e do espírito. Quando falamos de meditação taoista, é importante lembrar que há vários métodos, a depender da linhagem. No caso do taoismo no Brasil, e referindo-me ao legado do mestre Pailin, o que ensinou a seus discípulos e discípulas, foi principalmente técnicas de meditação silenciosa que combinam o cultivo da serenidade, do Vazio e a circulação do por certos centros e trajetos (como o Pequeno Universo, a Via Láctea e os Oito Vasos Maravilhosos).

Mestre Liu recomendava a meditação “Sentar na Calma” como parte do treinamento para quem buscava a saúde e a longevidade, mas também para desenvolver sua espiritualidade latente, entendendo isso sem nenhum teor religioso. E explicava os fundamentos filosóficos da prática, citando clássicos taoistas como o Daodejing e o Yijing.

Falando do ponto de vista do iniciante, é preciso um entendimento intelectual correto do que é a prática e para que praticar. É preciso também obter instruções confiáveis para não perder tempo e não arriscar a saúde e a sanidade.

Detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor setembro de 2018.

Do ponto de vista do entendimento intelectual, dos vários conceitos presentes nos textos filosóficos e manuais taoistas, talvez um dos que gere mais confusão, não apenas para iniciantes, é o Vazio. Por um lado, essa palavra tem nas línguas ocidentais uma conotação negativa, até niilista. Ao falarmos em Vazio, quem não está familiarizado com a terminologia taoista e budista pode imaginar, erroneamente, negação, ausência, falta, nada. E consequentemente sentir angústia. Então é preciso primeiro entender que o Vazio, ou vacuidade, aqui se refere metaforicamente ao espaço aberto da potencialidade, onde tudo acontece e se manifesta. É como o silêncio antes e entre os sons, a quietude antes e entre os movimentos, o espaço entre os objetos e fenômenos. E não uma ausência dolorosa ou negação da vida. Em vez disso, é uma aspecto necessário da vida. A própria vida é uma alternância contínua entre quietude e movimento, como está expresso graficamente no símbolo do Taiji ☯. Embora a vacuidade seja uma experiência que não é totalmente descritível, é importante um entendimento inicial na direção correta.

Detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor setembro de 2018.

Do contrário, surgem dificuldades para por em prática instruções sobre cultivar o Vazio na meditação. Com a postura corporal, o método e a atitude mental corretas, surgem espontaneamente momentos de grande quietude na meditação, uma lucidez relaxada e silenciosa. A atividade mental agitada e incessante que os chineses chamaram de “macaco dos pensamentos” se detém espontaneamente. Esse é um momento para cultivar o Vazio. Não se trata de ficar pensando a respeito do vazio, para entendê-lo intelectualmente. Nem de passar um tempo imaginando como seria esse vazio. Muito menos de imaginar as coisas como vazias. Outro erro comum é imaginar que meditar depende de impedir pela força o fluxo da consciência, para chegar a um estado artificial totalmente livre de pensamentos. Isso não só é exaustivo e improdutivo, mas é também um erro tem efeitos colaterais nocivos. O capítulo 3 do Zuò Wàng Lùn (Tratado sobre Sentar e Esquecer), afirma que, ao proceder assim, cortando bruscamente toda atividade mental durante a meditação, a pessoa desenvolve uma dificuldade crescente de raciocinar e pensar, que não é o objetivo da meditação.

Para concluir, se a meditação é um método para atingir o estado natural, é possível começar a entender o que é meditação taoista por eliminação: não visa estados extraordinários, mas sim revelar algo que já está presente em nosso ser quando relaxamos; não é fugir da realidade, “viajar” ou adormecer, mas estar alerta e consciente; mas isso não se faz por uma concentração forçada, e sim por um foco relaxado que permite repousar a consciência.

Em março de 2020 está agendado um curso de meditação taoista em Brasília .