O Elogio à inutilidade

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Esta é mais uma postagem sobre taoismo e mundo contemporâno. A pergunta que desejo responder é: como a crítica anti-utilitarista do taoismo pode ser relevante nos dias de hoje? Em outras palavras, qual o benefício de ser inútil? O elogio à inutilidade é uma conversa sobre o anti-utilitatismo taoista e sua relevância hoje. Revisitaremos, como imagem chave, a “árvore inútil”de Zhuangzi.

Se preferir assistir em vídeo, está aqui. 😉

Por que é preciso saber ser inútil?

Em tempos de ideologia do empreendedorismo, de obsessão pela atividade incessante, pela produtividade, pelo excesso de informação, é preciso fazer um elogio à inutilidade. Em primeiro lugar, o ensinamento do Tao e as recomendações básicas da medicina chinesa para a saúde apontam a necessidade de equilíbrio entre atividade e repouso, ou entre movimento e quietude.

O excesso de estímulos e demandas

Um dos grandes males contemporâneos se traduz como inquietude em todos os níveis. Tanto o trabalho quanto o lazer se caracterizam hoje pela exigência de uma atenção dispersa multitarefa. A conectividade incessante das tecnologias portáteis de comunicação e informação agravaram essa situação. Por causa dela, estamos diante de uma demanda constante de interação. Se não desligarmos o celular, podemos estar 24 horas à disposição. Não apenas de nosso trabalho e relações, mas também das notificações das mídias sociais.

Além disso, estas mídias sociais nos bombardeiam com um excesso de estímulos sensoriais e de informação irrelevante. É preciso saber desconectar-se, desabilitar as notificações, para ter alguns momentos diários de paz.

Seus algoritmos mapeiam nossas preferências, em busca da fórmula para nos engajar pelo maior tempo possível. Há uma lógica viciante na forma pela qual as postagens aparecem numa timeline, ou os aplicativos nos fazem sugestões de novos conteúdos, sem falar dos anúncios publicitários, plantando falsas necessidades, a solução para problemas imaginários.

Por isso, é preciso fazer um elogio à inutilidade. Precisamos saber como não sermos arrastados por esta avalanche de estímulos e informação. Recuperar nosso próprio ritmo natural é um primeiro benefício de ser inútil.

O convite à auto-exploração

O empreendedorismo promove uma ilusão: basta esforçar-se para garantir prosperidade e sucesso. É como se não houvesse desigualdades nas oportunidades, nem exclusão estrutural. Ao omitir este detalhe, convida a uma corrida incessante, como uma “rodinha de hamster”.

Além da exploração que toda pessoa que trabalha é submetida pelo sistema capitalista, há agora um novo tipo de exploração, aquela praticada por nós mesmos, por ambição e suposto investimento no próprio sucesso e felicidade. O tempo antes dedicado ao descanso e ao lazer se tornou um tempo disponível para aceitar mais trabalho, ou para investir nos estudos em busca de melhor qualificação profissional. No passado, a melhor formação do trabalhador era responsibilidade do patrão, mas agora passou a ser uma responsabilidade individual, para se manter “competitivo no mercado”.

O resultado de tudo isso é a síndrome de Burnout, a depressão e a ansiedade. Porque não sabemos apreciar o descanso, o lazer, o ócio como parte necessária da vida, acabamos nos esgotando. Em alguns casos, inclusive, pode ocorrer uma morte súbita precoce, por pura exaustão. Como uma chama que se extingue porque queimou todo o combustível rápido demais.

No Daodejing, texto fundante da filosofia taoista, Laozi aconselha:

知足不辱,
zhī zú bù rǔ, 
知止不殆
zhī zhǐ bù dài, 
可以長久
kě yǐ cháng jiǔ.
“Sabendo se contentar, não se humilha,
Sabendo parar, não se arrisca,
Pode por meio disso durar muito tempo”
(Daodejing, poema 44).

Mestre Liu Pailin, pioneiro do taoismo, do Taichi e da medicina chinesa no Brasil, aconselhava: “pessoas de meia-idade, andem devagar [a caminho do cemitério]”. Um segundo benefício de ser inútil é saber se preservar. Não desperdiçar nem encurtar a própria vida por causa de ambições excessivas é mais um motivo para fazer um elogio à inutilidade.

A árvore inútil de Zhuangzi

“A árvore inútil” é um importante tema nos escritos de Zhuangzi, o segundo personagem fundante da filosofia taoista, depois de Laozi. Há várias versões desta história. Vou mencionar apenas algumas edições em português, caso leitores e leitoras queiram estudá-la de perto, o que recomendo.

Na minha tese de doutorado, publicada como O Retorno à Raiz (Bizerril, 2007), cito as versões traduzidas por Thomas Merton e por Burton Watson. Publicada mais recentemente, uma edição interessante é a de Giorgio Sinedino. No capítulo IV, intitulado “Autoconfiança”, vemos duas versões desta história. Como é uma anedota importante para fazer um elogio à inutilidade, vou comentar as duas aqui. A primeira se chama “O espírito do Carvalho”(Sinedino, 2022, p. 212-215). E a segunda, “O fedor que salva”(Sinedino, 2022, p. 218-219).

“O espírito do carvalho”

Nesta primeira história, que reconto aqui com minhas palavras, o mestre artesão Shi Bo viajava com seus aprendizes, quando avistou um carvalho colossal, consagrado na região como Altar da Terra (社). Alto como uma montanha, com um tronco de duzentas braças de largura, caberiam milhares de bois na sua sombra.

Depois de uns instantes maravilhado, Shi Bo se retirou imediatamente, sem olhar novamente. Mas um dos aprendizes mais jovens ficou para trás, contemplando a árvore. Lembrem que o olhar de um carpinteiro para uma árvore é utilitário. Pois ele enxerga que objetos poderia fazer com a madeira, em qual quantidade e de que qualidade.

O jovem aprendiz, que ficara para trás, correu para reencontrar o mestre. E perguntou, surpreso, porque ele ficou indiferente diante daquela maravilha. O mestre, impaciente, respondeu: a árvore era inútil! Pois sua madeira não servia para construir barcos, que afundariam; nem caixões, que apodrederiam; nem utensílios, que rachariam; nem portas, que ficariam manchadas pela seiva; nem pilares, que seriam comidos pelos cupins. Enfim, uma árvore completamente inútil.

A lição a aprender

Após a longa jornada de volta ao lar, Shi Bo adormeceu, exausto. Então sonhou com o espírito do carvalho gigante, que lhe contou o destino das árvores úteis. As árvores frutíferas são violentadas e humilhadas quando seus frutos são colhidos, tendo seus galhos torcidos e quebrados. Por isso não podem viver a duração dos anos concedidos pelo Céu. Generosamente, o carvalho explicou a Shi Bo sobre o benefício de ser inútil: exatamente porque ninguém o cortou nem arrancou seus frutos, ele pôde tornar-se tão grande e frondoso, desenvolver-se plenamente e viver até o fim da duração natural de sua vida.

Árvores e humanos existem entre o Céu e a Terra, mas os humanos tratam as árvores como coisas, em vez de seres. E como também tratam outros humanos como coisas, daí a vantagem para as pessoas de saberem ser inúteis, escondendo suas habilidades de caça-talentos, gestores e políticos, para não serem exploradas.

Essa imagem faz mais sentido se lembrarmos que, na China antiga, os governantes saíam em busca de pessoas sábias e talentosas para empregar como ministros e conselheiros. Caso aceitassem o encargo, tais pessoas se veriam enredadas nas intrigas da corte e exaustas com inúmeras tarefas de grande responsabilidade. Por causa disso, muitos mestres taoistas esconderam sua sabedoria, fingindo ser pessoas simplórias e até loucas, para evitar este destino e ter a liberdade necessária para continuar cultivando o Tao.

“O fedor que salva”

Nesta segunda história, também narrada com minhas próprias palavras, o imortal Guo Ziqi encontra uma árvore assombrosamente gigante, tão grande que poderia esconder mil carros de guerra em sua sombra.

Examinando-a com mais cuidado, reparou que os galhos eram finos e retorcidos. Assim, não serviriam para fazer vigas. Suas raízes grossas e arrendondadas estavam rachadas no meio. Por isso, não serviam para fazer caixões. Suas folhas, em vez de ter propriedades medicinais, feriam a língua de quem as provar. Por fim, em vez de aromáticos, os ramos eram tão fedorentos que ele desmaiou ao cheirá-los e só acordou vários dias depois.

Em casa e ainda de cama, Guo Ziqi elogiou a árvore que conseguira crescer até tocar o Céu, graças a sua inutilidade.

A lição a aprender

Aqui também se trata do benefício de ser inútil. Esta árvore gigantesca pôde alcançar um tamanho colossal porque seus galhos, raízes e folhas e ramos não serviam para absolutamente nada, de modo semelhante ao carvalho da história anterior.

Assim, quem deseja cultivar o Tao, que também não serve para nada, exceto para o mais importante que é saber bem viver, precisa se desprender do utilitarismo, pois ele nos rouba o mais importante na vida, substituindo a serenidade e o contentamento por ambições desnecessárias e preocupações evitáveis.

Claro que tudo isso não se refere a nós desconsiderarmos as nossas responsabilidades sociais básicas, de garantir nosso sustento, de cuidar da nossa vida, da nossa casa e das pessoas que dependem de nós. Mas, sim, é um antídoto para esse excesso, na vida contemporânea, de ambição, de vontade de fama, de sucesso e de riqueza, de ter dinheiro para desfrutar prazeres. E, neste processo, nós arruinamos nossa sanidade mental, a saúde do nosso corpo e a tranquilidade do nosso coração.

Aprender práticas taoistas na era do imediatismo

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

As práticas taoistas são a expressão de um modo de viver a vida. São métodos não só para atingir finalidades pragmáticas, como curar doenças, preservar a boa saúde, atingir a longevidade. Mas são também meios para compreender pela experiência conceitos filosóficos complexos: Tao, não ação, espontaneidade, Vazio. E, porque não, também para realizar o Tao, o estado natural. Mas como fazer para aprender práticas taoistas na era do imediatismo? Como tornar relevantes no mundo de hoje estes métodos milenares? Esta é mais uma postagem da série taoismo e mundo contemporâneo.

Assista aqui a versão em vídeo desta postagem.

Parece que, para muitas pessoas, a vida cotidiana normal precisa ser vivida em velocidade crescente. O filósofo Byul Chung-Han descreveu a sociedade contemporânea como uma Sociedade do Cansaço. Nela, o sujeito da performance explora-se a si próprio voluntariamente, pois acredita que deve se mostrar constantemente produtivo, bem sucedido e feliz, mesmo às custas da sua saúde e sanidade.

Como instrutor de práticas taoistas, tenho encontrado uma situação curiosa. Pessoas têm me perguntado sobre cursos de formação para instrutor de Qigong. Em si, esta é uma boa notícia. Mas o curioso é querer ser instrutor sem antes ser aprendiz. Algumas pessoas nunca praticaram e já pensam em como seria ensinar. Esta vontade de “queimar etapas” é uma característica do nosso tempo. Então como ensinar práticas taoistas na era do imediatismo?

A formação tradicional

Como é a formação tradicional? Resumidamente: iniciante, estudante, praticante experiente, e só então instrutor, professor, e talvez mestre.

Mestre Liu Pallin (1907-2000), pioneiro do taoismo, da medicina chinesa e do Taichi.

Primeiro, somos iniciantes. Quer dizer, não sabemos nada, ou quase nada. Então, depois de um tempo como aprendizes, começamos a nos familiarizar com os princípios das artes taoistas. O treino traz consigo uma mudança de hábitos, primeiro motores e posturais, depois das atitudes habituais. Para isso, basta ter 1 professor/a qualificado/a e um pouco de dedicação e interesse em aprender.

Depois, com mais algumas semanas ou meses de treino, começamos a sentir os benefícios de praticar. Primeiro, nossa vitalidade aumenta. Gradualmente, alguns problemas crônicos de saúde começam a melhorar. Algumas dores que tínhamos no corpo não nos visitam mais. Percebemos também que o estresse diminuiu. Se continuarmos a praticar, esses benefícios se aprofundam. Além disso, começamos a memorizar as sequências de exercícios. E aprimorar nossa consciência corporal.

E, quando memorizamos as sequências, podemos também treinar fora das aulas. Veja bem, quanto mais repetir o treino, maior o benefício. Isso é, se tiver compreendido como praticar corretamente.

Turma da formação em espada Taichi com o professor Ronaldo, Brasília, 2000-2001. O professor Ronaldo está agachado, ao centro. O autor está de pé, logo atrás dele.

Como me disse um dos meus professores: “o treino começa a se revelar para você depois de aprender a sequência”. A partir deste momento a prática se baseia mais na experiência de mover e sentir o corpo. É neste contexto que aprendemos a sentir o Qi. Esta percepção se manifesta primeiro como sensações no nosso próprio corpo.

Mas é um processo lento. Leva alguns anos até integrar todos os conhecimentos e experiências no nível necessário para conseguir ensinar adequadamente. E, além de praticar muitos anos, é importante a orientação de uma pessoa qualificada, mais experiente.

Pois no passado, treinava-se todos os dias com um mestre, ano após ano. Um belo dia, chegava um momento que o mestre promovia o estudante a instrutor, para auxiliar na transmissão dos conhecimentos. E com mais maturidade, poderia então partir para abrir sua própria escola. Mas mesmo entre praticantes avançados/as, nem todo mundo se aprofundaria no caminho a ponto de se tornar mestre.

Treino de Qigong, seminário com mestre Liu Chihming, São Paulo, 2000. O autor é a segunda pessoa à esquerda. (foto da organização do evento).

Que alternativas temos no mundo contemporâneo? A formação na era do imediatismo

Nas nossas vidas urbanas agitadas, cheias de ocupações, atividades e distrações, como começar este caminho? Para começar, encontre tempo em sua agenda conturbada. Pelo menos uma aula por semana é um bom começo. E alguns minutos por dia é uma necessidade, se você deseja progredir.

Tenho uma sugestão, se você sente que não tem tempo. Quem sabe você pode substituir o tempo perdido com distrações excessivas, por alguns minutos de foco e relaxamento. Como resultado, você vai dispor de mais energia para empregar no que realmente importa.

Mas tome cuidado para não cair na armadilha da produtividade infinita. Nem tudo é trabalho, lucro, performance. O momento para treinar uma prática taoista é um momento para o cultivo de si. Mas, paradoxalmente, não é para produzir um eu maior e melhor, justo o contrário. Praticamos Taijiquan, Qigong, meditação para recuperar a capacidade de relaxar. Esta é uma capacidade natural, mas muitas vezes perdida devido a uma vida muito estressante. Quanto a isso, um fator particularmente gerador de estress é a necessidade de cultivar, defender e fortalecer nossa identidade pessoal. A necessidade de ser alguém, alguém especial, é uma das grandes fontes de sofrimento. E com o aumento da individualização no mundo atual, esse sofrimento se tornou ainda maior.

Também praticamos para recuperar nossas energias. É preciso manter o equilíbrio entre atividade e repouso, ou em termos taoistas, movimento e quietude, Yang e Yin. A prática correta deve revigorar, em vez de cansar, ao contrário da ideia convencional de “fazer exercício”. E acima de tudo, quando o corpo está em equilíbrio, é mais fácil ter uma mente calma.

Praticando Baguazhang com mestre Liu Chihming e professor Ronaldo Fernandes, São Paulo, 2000. (foto da organização do evento).

Como conciliar a formação tradicional nas práticas taoistas na era do imediatismo?

Para a maioria das pessoas, talvez não seja mais possível praticar com um mestre dia após dia, por anos a fio. Ainda assim, tendo encontrado uma fonte confiável, é possível aprender com ela. Basta fazer os devidos ajustes na nossa rotina e na nossa ambição por resultados mirabolantes e rápidos.

Encontre espaços em sua rotina, para fazer das práticas taoistas de sua preferência, um hábito diário, nem que seja por alguns minutos. Faça aulas regulares com uma pessoa qualificada, que aprendeu de um mestre autêntico e tem paciência e generosidade para responder de forma clara às suas dúvidas e dificuldades. Treine individualmente para se apropriar dos treinos, memorize as técnicas, repita e aperfeiçoe os movimentos, descubra os seus efeitos com sua experiência. Pois o benefício sentido é o melhor incentivo para continuar a praticar.

É fundamental ter um/a professor/a de referência, que pode acompanhar o seu desenvolvimento, fazer correções e tirar dúvidas. Mas afora isso, é possível aprender com outras pessoas, inclusive utilizar as novas tecnologias de aula ou curso online.

Depois de ter amadurecido sua própria prática e colhido seus frutos, aí então é o melhor momento para compartilhar este tesouro com outras pessoas. Converse com sua professor ou professora, para avaliar se já pode ensinar o que aprendeu.

Se deseja seguir este caminho, vale a pena fazer uma formação para instrutor/a, ou passar pela avaliação certificada por sua escola.

A minha própria experiência aprendendo as práticas taoistas

Como aprendi as práticas taoistas na era do imediatismo? O começo da minha caminhada com as práticas taoistas também foi marcado pela era do imediatismo, só que por outro motivo. Em 1998, estava em trabalho de campo antropológico na escola taoista de mestre Liu Pai Lin em São Paulo. Minha metodologia era participativa e incluía aprender o Taichi e outras práticas como parte do processo de minha etnografia. Eu era um sujeito jovem, ambicioso, experiente nas artes marciais e em dedicação exclusiva. Resultado: aprendi a sequência do Tai Chi de 37 movimentos em apenas 30 dias. E fiquei orgulhoso do meu feito. Ainda não tinha entendido que o verdadeiro aprendizado é para vida toda!

O que começou como pesquisa antropológica virou, contudo, um caminho de vida. Assim, nunca mais parei de treinar. Aprendi novas técnicas e sequências, ano após ano. Em primeiro lugar, para resistir ao estresse e desgaste da vida de professor. E anos mais tarde, porque compreendi que, além dos benefícios óbvios para saúde, havia muito mais. Era uma aprendizado sobre o viver.

Para continuar a aprender e aprofundar o que já sabia, foi um longo percurso. Fiz aulas particulares (de taichi, espada, Baguazhang, meditação), frequentei seminários com os mestres sobre práticas e filosofia taoista e cursos de formação (Taichi Pai Lin, Espada Taichi, I Ching Taoista), fiz as provas de certificação para instrutor de Taijiquan e Baguazhang. Em 2015, fui a Taiwan receber uma iniciação para tornar-me oficialmente discípulo da linhagem Kunlun, uma das várias linhagens do mestre Liu Pailin. Ao todo, foram mais de 20 anos de aprendizado, estudo e prática para poder me considerar um instrutor da minha escola.

Participantes do seminário com mestre Liu Chihming, São Paulo, 2017. O autor está sentado próximo ao canto inferior esquerdo. (foto da organização do evento)

Meditação Taoista: 03. Afinal, para que meditar?

Na postagem de hoje, a ideia é oferecer ao público interessado uma explicação simples, sem tecnicalidades, sobre o que é meditação taoista e para que praticá-la. Um ponto de partida simples é entender que a meditação é um método. Mas um método para que?

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Vamos à resposta mais direta: no nível mais profundo, a meditação taoista é um método para cultivar o que os antigos chineses chamaram de Caminho Natural, que é uma tradução razoável para o termo Tao. Em vez de usar termos filosoficamente complicados, digamos que, na prática, a meditação é um método que desenvolve gradualmente em nós a capacidade de passar cada vez mais tempo em um estado que combina relaxamento, serenidade, sensibilidade ao ambiente à nossa volta, e prontidão para agir em conformidade com o que a situação demanda em um momento específico. Ou seja, não meditamos para sermos pessoas melhores, nem obter algo. Nem se trata de ficar passivo/a, insensível ou indiferente. Em vez disso, meditamos para aprender a reduzir toda tensão, força e identidade desnecessárias, permitindo que as qualidades de nossa natureza essencial se manifestem. Quando nos acostumamos a permanecer em um estado de relaxamento alerta, menos identificados/as com uma identidade sólida associada a desejos e metas, viver fica mais simples. Então, a tradição taoista confia no potencial para bem viver, presente em todos/as nós, que se revela quando nosso está equilibrado e a tensão se dissolve.

Os métodos taoistas se dividem em treinos de movimento e treinos de serenidade. A meditação silenciosa na postura sentada é o treino de serenidade por excelência. Nela, trabalhamos ao mesmo tempo a serenidade e a vitalidade, como expliquei na primeira postagem dessa série. A primeira etapa na prática desse tipo de meditação é o restabelecimento de nossa vitalidade e do equilíbrio de nosso organismo, descrito pelos antigos chineses em termos de Yin e Yang e dos chamados cinco “elementos” (metal, água, madeira, fogo e terra), que correspondem aos órgãos, tecidos e funcionamento de nosso corpo, como tenho explicado desde a primeira postagem sobre medicina tradicional chinesa. Como na concepção chinesa não há uma separação entre corpo e mente, o equilíbrio de nosso organismo está diretamente ligado ao equilíbrio emocional. Assim, quando nossas energias estão equilibradas, é mais fácil meditar. E ao mesmo tempo, na medida que praticamos meditação, aumenta nossa capacidade de autorregulação, o que permite lidar com situações que antes nos deixariam doentes, exaustas/os ou agitadas/os.

O que a meditação oferece é um momento com condições ideias para cultivar a serenidade e “recarregar nossas baterias“. Paramos temporariamente nossas atividades cotidianas, largamos os projetos e preocupações, sentamos em um local silencioso e que inspire tranquilidade. E nessas condições praticamos algumas técnicas para favorecer o relaxamento, a lucidez e a vitalidade. Mas com o tempo de prática regular, os estados de serenidade, relaxamento e vigor que vivenciamos durante a sessão formal de meditação podem ser vivenciados no cotidiano quando não estamos meditando. Algo em nós mudou sem que tenhamos deliberadamente tentado mudar ou aperfeiçoar nada.

Pintura em nanquim, acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor em setembro de 2018.

Assim como a água que brota de uma nascente e se torna disponível para nutrir a vida dos seres vivos que ali habitam, ou o sol que nasce a cada dia iluminando e aquecendo a terra, espontaneamente se manifesta um potencial para ação eficaz que é benéfico para nós mesmos/as e para quem está à nossa volta. Quando estamos revigorados/as e relaxados/as fica mais fácil estar disponível para os/as outros/as do que quando estamos tensos/as, ensimesmados/as, focados/as em nossas dores e dificuldades. E como explicou o mestre Pailin, esse é o sentido de ter uma vida longa e saudável: poder expressar nosso potencial para benefício coletivo, compartilhando e apoiando o desenvolvimento dos/as outros/as.

Caso deseje aprender a praticar, em março de 2020 teremos um curso de introdução em Brasília.

Meditação Taoista: 02. a postura de meditação

A postagem de hoje dá seguimento à série sobre meditação. Dessa vez, o foco é no aspecto prático, mas sem perder de vista os fundamentos. A consciência da postura durante a prática formal de meditação é um aspecto que precisa ser considerado na suas devidas proporções; não é toda a prática, nem é algo que deveria ser negligenciado. Saber que postura assumir é uma parte importante do conhecimento prático sobre como meditar.

Se a meditação é uma prática do Tao, então a naturalidade é algo que precisa ser cultivado nela. Por isso, aqui o princípio de base é “não forçar”. Persistindo com paciência, há um desenvolvimento gradual. Ao forçar em busca de resultados, há o risco que ficarmos exaustos/as, frustrados/as e, assim, desistir.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, foto do autor em setembro de 2018.

Cada tradição meditativa tem suas próprias convenções, recomendações e atitudes sobre a postura de meditação. Foi o que aprendi estudando as instruções de escolas diferentes. No caso do taoismo, a meditação pode ser praticada em várias posturas imóveis, sejam de pé, sentado ou deitado. E mesmo em movimento, como é o caso quando praticamos Qigong ou Taijiquan de forma particularmente lenta, serena e focada, com atenção ao menor gesto. Quanto à postura sentada, podemos imaginar erroneamente que a meditação só ocorre se formos capazes de manter uma perfeita postura de lótus. E isso pode chegar mesmo a se tornar uma obsessão que nos desvia do objetivo de meditar. Mas a postura não é algo que assumimos para impressionar outras pessoas, nem é uma proeza, ou uma meta. Em vez disso, é um dos pontos de partida para nossa prática, pois a meditação também é uma prática corporal. O corpo em equilíbrio, livre de tensão, desconforto e doença, medita com mais facilidade.

O alinhamento, a estabilidade e o relaxamento de nossa postura ajudam a permanecer um tempo quietos/as, sem tensão. Então, a postura deve estar de acordo com os limites e possibilidades de nosso corpo, em função da nossa flexibilidade, disposição vital, faixa etária, etc. Devemos ser capazes de relaxar nela, sem adormecer e sem perder o alinhamento postural. E para isso, não é necessário atingir uma postura de lótus perfeita, embora essa seja considerada por muitas pessoas uma postura excelente para meditação. Pois ela é útil para a prática desde que o/a praticante seja capaz de permanecer nela confortavelmente. Se não é o caso, podemos meditar em meio lótus, ou simplesmente de pernas cruzadas, mas também sentando em uma cadeira, sem reclinar o corpo e encurvar a coluna. Como aqui o foco não está no controle, na força de vontade ou na resistência a estímulos desagradáveis, é importante que a postura de meditação seja suficientemente confortável para permitir que prestemos atenção no treinamento que vamos praticar, e não nas dores e tensões no corpo e na mente que surgem do desafio de manter uma postura forçada.

Com essa orientação, a meditação passa a ser um momento de descanso, de “recarregar as baterias”, e não de luta para alcançar algo. Meditando durante um lapso de tempo em que a postura está confortável, podemos estender gradualmente as sessões, até sermos capazes de permanecer um longo tempo praticando.

Esse e outros aspectos serão abordados em mais detalhes em um curso que será dado pela primeira vez em março de 2020.

Tao: o silêncio entre as palavras

Compreender o Tao é paradoxal. Por isso Laozi disse: “Minha palavra é bastante fácil de compreender/ bastante fácil de praticar/ mas, sob o céu, ninguém consegue compreendê-la/ ninguém consegue praticá-la” (Dàodéjīng, poema 70) . O que os antigos chineses chamaram de Caminho ou Caminho Natural é algo que está sempre presente a cada experiência, simplesmente como as coisas são. Mas está tão perto, é tão simples, que, por isso mesmo, está aquém ou além das palavras. Daí, no contexto taoista, desde a antiguidade aos dias atuais, pessoas sábias utilizaram termos como “indescritível”, “sem nome”, “profundo”, “grande”, “misterioso” ou “maravilha”, na tentativa de apontar a direção, de ensinar-nos a reconhecer do que se trata, por meio de nossa própria experiência.

Imortal voando num dragão, detalhe de pintura do acervo do National Palace Museum, Taipei. Foto do autor, setembro de 2018.
Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, setembro de 2018.

Não é algo que o intelecto consegue apreender, não é algo que possa ser explicado, mensurado, provado. Mas é algo que pode ser percebido, treinando a sensibilidade. E quando isso acontece, e temos a sorte de contar coma orientação de 1 mestre ou mestra competente, temos uma experiência nítida e livre de dúvida. Lendo as biografias de mestres e imortais do passado, podemos encontrar tanto perfis mais contemplativos, pessoas que se recolheram em montanhas e florestas para cultivar o Tao, quanto pessoas que tiveram uma existência comum, com uma vida simples em família e ganhando seu sustento com uma profissão. Se não temos o desejo de viver reclusos/as nas montanhas, ou a condição para fazê-lo, podemos praticar na vida que vivemos, na cidade. Mais importante dos que as condições externas ideais para praticar – como as que foram buscadas por eremitas, monges e monjas ao longo da história da China – é a capacidade de encontrar o silêncio em nós mesmos/as, pelo menos alguns instantes todos os dias. Uma maneira estruturada para fazer disso um hábito é aprender um método confiável de meditação. Mas se diz que a base para praticar, antes mesmo de aprender qualquer técnica, é regular o coração (Tiáoxīn 調心): isso significa simplificar a vida, reduzindo desejos, necessidades e ambições desnecessárias.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, setembro de 2018.

E de posse dessa simplicidade básica, não só a meditação, mas qigong, artes marciais, pintura, caligrafia, música, medicina, enfim todas as artes tradicionais praticadas por taoistas, podem ser um porta de entrada para o Tao. Todas elas valorizaram o aprendizado prático, o refinamento da sensibilidade, a fluidez do gesto, a atenção combinada ao relaxamento, o ajuste à situação concreta do presente. Na quietude da meditação formal; nos movimentos lentos e circulares do qigong; nos movimentos ágeis e precisos das artes marciais (seja o combate com as mãos livres, ou com armas, como a espada); no pincel que traça paisagens ou palavras entremeadas de espaços vazios; nas notas musicais que ressoam ritmicamente entre silêncios; na acuidade dos métodos diagnósticos e no uso eficaz dos tratamentos (com massagem, agulhas, ventosas, moxabustão). etc. Em todas essas situações está presente o potencial para entrar em contato com as qualidades do estado natural, a união de quietude e movimento contínuo. Mas além de todas as artes tradicionais, com sua beleza, cada atividade trivial do cotidiano também é uma preciosa oportunidade para perceber o estado natural, desde que estejamos vivos/as, relaxados/as e atentos/as.

O Tao e a ação na vida

Existe um motivo para que os antigos textos taoistas tenham atravessado tantas gerações, é a sabedoria que eles contêm. Há algo a aprender com as experiências desses seres humanos extraordinários que habitaram épocas, paisagens e mundos culturais tão distantes dos nossos. Os clássicos taoistas preservaram uma compreensão profunda sobre o viver, nascida da capacidade de ficar em silêncio e observar a natureza, nela incluída a humanidade. Observando as mudanças e seus ciclos, presentes em todos os níveis, sintetizaram seu entendimento refinado em símbolos, como o do Taichi (Tàijí ), ou os hexagramas do Yìjīng, ou em versos, como os do Dàodéjīng, porque o que havia a dizer sobre a vida não cabe muito bem na linguagem linear do intelecto. A reflexão de hoje trata do que podemos aprender com o Tao sobre a ação.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.
Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

E, ao pensar em ação numa abordagem taoista, haveria duas direções a seguir: os princípios que orientam a conduta e a importância da espontaneidade. Falar em conduta poderia nos levar a pensar em termos de moral, e até de uma moral religiosa, visto que o taoismo tem sido objeto de estudo no campo da religião comparada, da história e da antropologia da religião. Mas sem ir nessa direção, acho mais interessante apontar para o essencial. A inspiração que encontro nos clássicos como orientação para a conduta são três princípios que vimos em postagens anteriores, e descritos por Laozi como três tesouros: amorosidade, simplicidade e não querer ser o primeiro sobre a terra. Esses princípios dão o tom de uma atitude existencial, mas não equivalem a regras ou mandamentos. Inclusive, o apelo ao moralismo é sintoma da perda de contato com as qualidades naturais do Tao, como podemos ver no poema 18 do Dàodéjing: “Quando se perde o Grande Caminho/ Surgem a bondade e a justiça/ Quando aparece a inteligência / Surge a grande hipocrisia / Quando os seis parentes não estão em paz / Surgem o amor filial e o amor paternal / Quando há desordem e confusão no reino/ Surge o patriota”.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, do acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

O Huáinánzĭ, que também está entre os mais importantes clássicos taoistas, ilustra a atitude taoista marcada por um certo relativismo moral, mas que não se confunde com cinismo. Pelo contrário, reflete um senso de adequação à situação, que depende de uma sensibilidade contextual , que oferece uma alternativa ao moralismo. Para dar uma ideia do que se trata, alguns fragmentos: “Certo e errado são situacionais. Na situação apropriada, nada é errado. Sem a situação apropriada, nada é certo”. Ou ainda: “O que é certo em um caso não é certo em outro, o que é errado em um caso não é errado em outro”. E mais adiante, na mesma sessão, conclui: “Portanto, líderes esclarecidos não impõem leis inúteis ou ouvem palavras ineficazes”.

Por fim, o tema da espontaneidade é central para o taoismo, sendo essa uma das características dos seres iluminados. Mas não se trata de espontaneidade, como frequentemente entendemos, no sentido de seguir os próprios impulsos sem discernimento, de fazer o que der na telha. A espontaneidade do Tao, é não ação, no sentido que a ação brota do vazio, da serenidade do coração e da receptividade que responde perfeitamente à necessidade da situação. Acontece assim, porque naquele instante não há uma identidade pessoal que protagoniza a ação como marca da sua presença no mundo. Não é um eu que age, há apenas o agir em harmonia com as circunstâncias, por isso, parece que nada foi feito, ou que ninguém agiu, mas ainda assim, ocorreu o que era necessário e eficaz. Quem sabe cada 1 de nós pôde experimentar isso, ainda que brevemente, mesmo uma única vez. Que isso possa nos inspirar a praticar formas de esquecermos de nós mesmos/as, para o bem de todos/as nós.

O Tao e o corpo contemporâneo

As preocupações com saúde e longevidade na civilização chinesa estão documentadas pelo menos desde o primeiro capítulo das Questões Simples (素問), livro que compõe o Clássico da Medicina Interna do Imperador Amarelo (黃帝內經): nele, Huangdi, o Imperador Amarelo, um dos soberanos míticos fundadores da civilização chinesa, pergunta ao seu conselheiro médico, Qibo, porque as pessoas no passado viviam até os cem anos com saúde enquanto “atualmente” (no terceiro milênio a.C.) vivem apenas algumas décadas e adoecem frequentemente. Desde os primórdios da tradição taoista, uma das expressões de um estado de equilíbrio com a natureza foi viver bem, o que inclui a saúde, vitalidade e longa vida. Talvez este seja um dos aspectos que permitiram esses conhecimentos terem um espaço no mundo contemporâneo globalizado. No entanto, aqui a preocupação com o corpo atingiu um novo patamar, uma verdadeira obsessão com a perfeição corporal…

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016.

Obviamente, generalizações de larga escala falam mais de uma norma ou prática cultural, ou de uma tendência sistêmica que pode ser percebida e descrita. É uma estratégia útil para perceber certos fenômenos, mas não esgota as particularidades e contradições concretas do mundo.

“Decay”, foto de Julia Wang , licenciada para uso público por Creative Commons, CC BY-NC 4.0

Ainda assim, o que se pode concluir de diversos estudos das ciências sociais sobre o tema do corpo nas sociedades globalizadas contemporâneas é a emergência de uma nova “cultura somática” ou até mesmo uma espécie de “corpolatria”. Embora a justificativa seja a saúde, o que está em jogo é a boa forma, ou seja o valor da aparência corporal em conformidade com certos ideais estéticos quase inalcançáveis, como um indicador do caráter do sujeito. O “corpo perfeito”(sic.) se torna um objetivo em si, a ser alcançado por meio de uma combinação de fitness, dieta, recursos farmacológicos e modificações cirúrgicas. E, claro, a exibição dessas conquistas nas redes sociais, por meio de imagens digitalmente corrigidas. Nesse sentido, essa norma corporal é a contraparte da subjetividade contemporânea descrita na postagem anterior, marcada pelas mesmas angústias em torno da visibilidade.

Detalhe de pintura em papel, da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Na contracorrente disso, o corpo na tradição taoista não tem valor como base para uma identidade pessoal, porque essa é vista como fonte de preocupação e desgaste. Em vez disso, cultiva-se o corpo como um “pequeno universo”: suas estruturas e as substâncias que o compõem são as mesmas do mundo. Assim, o cultivo visa colocar-nos em harmonia com o Tao, com a natureza. E disso decorre a saúde e a longevidade. Os cinco movimentos (fogo, água, madeira, metal e água) que compõem o corpo, estando em harmonia, são a base para um equilíbrio existencial. Esse equilíbrio facilita a prática contemplativa, mas também relações harmônicas com o mundo. Por isso, a civilização clássica chinesa entendia que uma pessoa sábia, apenas com sua presença, podia influenciar beneficamente os seres à sua volta. O Clássico da Pureza e da Serenidade (清靜經) diz: “embora se fale em realizar o Tao, não há nada a atingir. Simplesmente os seres começam a se transformar por si mesmos”.

O Tao e o consumo contemporâneo

Continuando o diálogo sobre o mundo contemporâneo, o tema de hoje é o consumo. Vários autores definiram as sociedades globalizadas atuais como sociedades de consumo. Essa ordem de coisas tem algumas consequências: a exaustão dos recursos naturais e a produção de uma quantidade imensa de lixo; o aumento da porcentagem da população mundial excluída dos direitos e serviços básicos, a formação de um novo tipo de subjetividade consumista. “Os consumidores são acima de tudo acumuladores de sensações“, como afirmou o sociólogo Zygmunt Bauman. Poderíamos dizer que um dos motores da sociedade de consumo é o desejo individual incessante. O contentamento não é bom para os negócios, pois um consumidor satisfeito não é levado a consumir mais. Óbvio, essa constatação não se aplica a bilhões de miseráveis e excluídos da globalização, desprovidos dos recursos e confortos básicos, mas é sobre saber se contentar quando se tem o suficiente, a virtude taoista da simplicidade, ou moderação.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016

Para Laozi, justamente o excesso de desejos é uma das raízes do infortúnio, como é descrito nos poemas 44 e 46 do Daodejing. Por isso, o elogio à simplicidade (no poema 67), também traduzida como moderação. Não é que não deveríamos desfrutar a vida, o problema são os excessos e o desperdício de recursos (justamente o que caracteriza o consumo, a lógica de jogar fora o que ainda é útil e está em bom estado, para continuar a consumir, de comer e beber quando já nos saciamos). Não faz sentido recomendar uma atitude ascética como alternativa ao consumismo, em tempos de obsessão pelo prazer e pelo bem estar. De fato, bastaria ter algum senso de proporção, exercitar algum contentamento.

Detalhe de pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.
Detalhe da mesma pintura da exposição temporária sobre os imortais, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor.

“As cinco cores tornam os olhos humanos cegos/ As cinco notas tornam os ouvidos humanos surdos/ Os cinco sabores tornam a boca humana insensível/ Carreiras de caça no campo tornam o coração humano enlouquecido/ Os bens de difícil obtenção tornam a caminhada humana prejudicada” (Daodejing, Poema 12). Esses versos antigos podem nos lembrar a cena do consumo contemporâneo: em busca de novas sensações, prazeres e experiências, vagando sem descanso. Fáceis de se entediar, incapazes de tolerar pequenas frustrações, os indivíduos consumidores vivem uma vida de conforto aparente, e insatisfação de bastidores.

O excesso de estímulos é cansativo e deixa o coração agitado. Na agitação, perdemos a sensibilidade. Nas grandes metrópoles, ficar insensibilizado diante da quantidade de imagens, do ruído excessivo, dos odores da poluição, do ritmo nervoso, das frustrações, relações ásperas e tensões diárias, é quase uma resposta de sobrevivência, mas que a longo prazo pode nos embrutecer e adoecer. De tempos em tempos, coisas simples, como um pouco de sol e ar puro, uma caminhada no parque, um banho de cachoeira, exercícios ao ar livre, olhar o céu, assim como um contato humano autêntico, podem nos devolver o estado de relaxamento que é necessário para ter alguma sensibilidade. E essa sensibilidade é necessária para desfrutar a vida.

O Tao e a exaustão contemporânea

Na postagem de hoje, damos continuidade ao diálogo entre a tradição taoista e o mundo contemporâneo. Já há algumas décadas o estresse e as doenças dele decorrentes foram consideradas um dos grandes problemas mundiais de saúde pública nas grandes cidades. Mais recentemente, a Organização Mundial da Saúde lançou um alerta sobre os danos causados pelo estresse no ambiente de trabalho. Não é que a tensão e a exaustão fossem desconhecidas de nossos ancestrais. Em sua análise sobre a origem das doenças, o excesso de trabalho foi considerado pela medicina tradicional chinesa como um fator de adoecimento, por desgastar os recursos do organismo, esgotando precocemente o e o jīng. Quem deseja viver muito deveria buscar um equilíbrio entre atividade e repouso, não simplesmente entre trabalho e lazer. Essa advertência é uma aplicação elementar da filosofia yīn-yáng ao manejo da saúde e o cultivo da vida. Para que haja equilíbrio, onde há movimento precisa haver também quietude, em uma saudável alternância, um tàijí ☯.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016

No entanto, em nossos tempos de aceleração constante, de movimento desenfreado, essa questão se tornou mais aparente e urgente. Hoje em dia, são muitos os apelos para a corrida desenfreada: incontáveis estímulos, tarefas, conexões, informações, atividades, desejos de consumo, imperativos da sobrevivência. Agitadxs e nervosxs, acabamos ficando exaustxs, por excesso de trabalho, mas também na tentativa de aliviar a tensão, nos momentos de lazer. Relaxar, uma resposta natural do organismo, que pode ocorrer periodicamente a qualquer momento, tornou-se um luxo, algo que necessita de todo um aparato técnico para ser obtida por alguns instantes. Uma civilização do excesso. Mas onde queremos chegar, correndo assim? Adoecemos e envelhecemos precocemente, antes de poder desfrutar dos resultados de nossos esforços. Como já dizia, repetidas vezes, o mestre Pailin: “pessoas de meia idade, andem devagar” (a caminho do cemitério)!

A população urbana tem desaprendido o valor do silêncio, do repouso, da contemplação. A vida contemporânea é pautada por um verdadeiro horror à quietude, ao espaço vazio, à pausa. E não é simplesmente insensatez individual, mas uma insanidade coletiva, sistêmica. É um imperativo dessa entidade metafísica insaciável, o Mercado: trabalhe, produza, enriqueça, lucre. Mas é também um hábito profundamente entranhado em nossos corpos. Mesmo quando deixamos o ambiente de trabalho, seguimos em uma atividade incessante, nem que seja entreter-se na tela de um dispositivo eletrônico. E assim avançamos, dia a dia, à beira do colapso. Não são apenas trabalhadores e trabalhadores exploradxs que vivem assim, mas também seus patrões. De fato, é preciso estar numa posição muito privilegiada no mundo profissional para poder recusar trabalho, estabelecer limites, desfrutar de horas suficientes de descanso e lazer. Não é uma questão apenas de discernimento individual e sabedoria, mas de condições sociais objetivas.

O filósofo Byung-Chul Han (1959-)

O filósofo Byung-Chul Han descreve a situação atual em seu livro “Sociedade do Cansaço“. Vivemos em uma sociedade do desempenho, formada por “empresários de si mesmos”(p.23), individualmente responsáveis por seu próprio sucesso ou fracasso, que naufragam na depressão quando não conseguem cumprir a obrigação de ter sucesso. Essa exigência constante de sucesso, visibilidade, produtividade é que nos leva à exaustão. O excesso exaustivo de desempenho tornou-se sinônimo de investir na própria carreira e até na própria vida, uma forma de autoexploração. Daí a epidemia de depressão, como “cansaço de fazer e de poder”(p.29), numa sociedade em que é preciso poder tudo. O excesso não está somente no trabalho, mas também nos estímulos, informações e desejos. Daí, uma atenção dispersa, incapaz de contemplar, que se entendia com facilidade e odeia o tédio. Han faz um elogio à contemplação profunda e ao lento, que embora não se refira às práticas taoistas e sua arte da existência, bem que podem nos servir aqui: “Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. […] No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas” (p. 36).

Detalhe de pintura da exposição temporária “imortais”, acervo do National Palace Museum, Taipei, foto do autor em setembro de 2018.

Séculos antes da crise civilizatória atual, a tradição taoista já havia descoberto o valor da contemplação, cultivada na imobilidade do corpo por meio da meditação, e nos movimentos suaves e lentos das técnicas que hoje chamamos de qìgōng e tàijíquán, mas cujos princípios são muito mais antigos que esses nomes modernos. Silêncio e quietude, não como conceitos abstratos, mas como experiências saboreadas com o corpo. A serenidade não só como aspecto de um caminho contemplativo, se preferirem espiritual, mas como parte integrante do cultivo da vida, da boa saúde, aqui compreendida como equilíbrio dinâmico, não como justificativa para a obsessão pela boa forma.

O Tao e as tecnologias de comunicação

O Taoismo (道家) é uma contribuição da civilização chinesa ao patrimônio cultural da humanidade. Essa antiga tradição, no entanto, não é uma peça de museu, um fóssil vivo, um documento arqueológico do passado distante, nem um tempero exótico com o qual consumidores e consumidoras das grandes cidades globalizadas possam apimentar a vida com mais distrações e experiências interessantes. Chegou até os dias de hoje por ter algo a dizer sobre o mundo em que vivemos. Ou melhor, porque tem algo a ensinar sobre a vida. Além disso, sobreviveu porque dialogou com as circunstâncias históricas, as culturas locais e as vidas cotidianas das pessoas que o praticaram, na China e pelo mundo afora. E particularmente, no momento atual, um ponto importante desse diálogo tem relação com as tecnologias de comunicação e seu impacto em nossas vidas. Esse é o tema da postagem de hoje.

Os três deuses da boa fortuna (da direita para a esquerda, Fú 福, Lù 祿 e Shòu 夀), detalhe sobre a entrada de um templo taoista em Zhulishan, New Taipei. Foto do autor, janeiro de 2016

Como já disse antes, a forma tradicional de transmitir o Tao é pela palavra falada e pelo gesto do mestre. Essa continua a ser a forma preferida pelos mestres e mestras taoistas, por ser a mais eficaz, a mais direta. No entanto, os tempos mudaram. Há algumas décadas o mundo se tornou mais conectado em termos de comunicação, informação e mesmo de deslocamento espacial de pessoas, coisas e símbolos. O que eram mundos culturais locais se abriram a novas misturas e conexões. Assim, as populações das grandes cidades do mundo passaram a estar expostas a uma multiplicidade de culturas, seja pelas migrações, seja pelos circuitos de arte, cultura e entretenimento, ou simplesmente pelas conexões digitais ao alcance da mão, em um celular ou computador.

Os tesouros culturais de mundos locais passaram a circular globalmente. No Brasil, foram milhares de imigrantes asiáticos que trouxeram consigo suas tradições. Esse foi o caso do mestre Liu Pailin, chegado ao Brasil no final dos anos 70, em visita a seus familiares já radicados no país. Ele foi um dos pioneiros chineses portadores dos conhecimentos do Taijiquan, da medicina tradicional e da meditação taoista, que divulgou pelo país afora por cerca de 20 anos. Percorrendo o Brasil, visitando a Argentina e o México, ele transmitiu oralmente os ensinamentos e deixou poucos escritos, principalmente apostilas de circulação interna em sua escola, apenas um livro, originalmente publicado no Japão com um discípulo, que foi posteriormente traduzido ao português, em 2007.

Como outros mestres tradicionais, seu legado perdura não só na memória e nos corpos de seus discípulos e discípulas, mas também no registros multimídia que agora também povoam a rede mundial de computadores: páginas de internet; vídeos no Youtube; perfis nas redes sociais dedicados a divulgar seu trabalho.

Não há nada de surpreendente nisso. Em tempos que a vida online e off-line se misturam, mesmo os conhecimentos corporais e a transmissão oral ecoam por essa via. A informação se tornou acessível numa escala nunca antes possível na história da humanidade. Apesar da transmissão nunca estar na íntegra num livro ou documento multimídia, fazendo a presença viva de quem instrui ainda indispensável, vários conhecimentos antes secretos se tornaram públicos. E é possível, inclusive, não apenas ter notícia de eventos, escolas e mestres pela web, mas também acompanhá-los à distância por meios das redes sociais e outras ferramentas. Agora é mais fácil saber onde encontrar as fontes confiáveis, desde que tenhamos critérios para filtrar o excesso de informação e imagens.

O paradoxo é que, em meio a tanto ruído, as palavras ditas sobre o Tao devem nos lembrar da importância do silêncio, ainda maior em nosso mundo performático e acelerado. Afinal, como diz o poema 23 do Dàodéjīng: “Falar pouco é o natural/ Um redemoinho não dura uma manhã/ Uma rajada de chuva não dura um dia”. O risco, ao se tentar comunicar o Tao para uma audiência virtual, é se perder na tentação da exibição de si que ronda toda ação nas redes sociais, na superficialidade para alcançar um maior público, no número de curtidas como valor.